sexta-feira, 18 de março de 2022

CONTO: UMA REVELAÇÃO INESPERADA - LUIZ GALDINO - COM GABARITO

 Conto: Uma revelação inesperada

            Luiz Galdino

        Giba iniciou, então, a distribuição do material. À medida que chamava, os boys pegavam os envelopes ou pacotes, ouviam as instruções e saíam pelo corredor interno.

        Zeca não perdia nada, atenção total nos gestos e palavras. E pelo que ouviu, concluiu que não havia grandes mistérios. As tarefas consistiam basicamente em entregar e retirar anúncios em jornais ou editoras, serviços de banco e correios, faturas para clientes e coisas do gênero. Exatamente o que imaginara: serviço de levar e trazer.

        Cada boy recebia o número de passes necessários para a condução, de acordo com o roteiro a ser percorrido. Reparou que eram passes escolares e animou-se com a ideia de se encontrar entre estudantes como ele.

        Por fim, ficaram apenas ele e mais um. O sujeito olhou para o seu lado com cara de poucos amigos, como se adivinhasse o que estava para acontecer. Quando pensou que Giba se dirigiria ao outro, ouviu na sua direção:

        — Hoje, você vai de acompanhante! Trate de aprender rapidinho, porque amanhã vai pra luta sozinho! Entendido?

        — Entendido — respondeu Zeca, levantando-se prontamente.

        — Não precisa ter pressa. Quando Maurício receber o material, você sai com ele.

        [...]

        Durante o intervalo em que aguardavam pelo material, os dois garotos não trocaram uma única palavra. Zeca percebeu que, vez ou outra, Maurício o observava, disfarçadamente. Porém, como o outro não tomasse a iniciativa do diálogo, manteve a boca fechada. No íntimo, justificava-se: se desse uma de enxerido, poderia talvez piorar a situação.

        Quando já não conseguia mais mascarar a apreensão, viu-se salvo pela intromissão da copeira, a mulher que conhecera na entrada da agência.

        — Você tomou café, Zeca?

        — Tomei, sim senhora.

        — Se quiser, é só ir na copa e se servir.

        — Obrigado.

        Ela passou a flanela sobre o tampo da mesa e interrogou:

        — E marmita? Não trouxe, não?

        — Não, senhora... Não trouxe...

        — Ah, o garotão almoça na lanchonete, é? — brincou ela.

        Zeca percebeu a intenção, tratou logo de desfazer o mal-entendido:

        — Que isso, dona Ermelinda... Eu não sabia que tinha onde esquentar. Amanhã eu trago!

        Ainda se explicava à copeira, no momento em que retornou a secretária, trazendo um pacote caprichosamente embalado.

        — Maurício... Sua encomenda — anunciou Sarita.

        — Pode entregar aí ao boy. Hoje, eu estou de instrutor — retrucou Maurício com displicência.

        Apesar da atitude do colega, Zeca sentiu alguma simpatia na sua voz. E apressou-se em pegar o pacote, que, apesar de volumoso e incômodo, pesava quase nada. Maurício apenas abriu a porta, indicando-lhe o corredor.

        Ermelinda veio até a porta observar e intrometeu-se:

        — Está vendo, Sarita? O Maurício arranjou assistente.

        — Quem pode, pode. Não é, Maurício? — comentou a secretária, sorrindo.

        Na recepção, foi a vez de Glorinha:

        — E aí, Maurício? Vai de mãos vazias?

        — Vou levar o garoto pra conhecer a cidade.

        — Ah, que gracinha! E não ajuda a carregar o pacote?

        — Eu queria, mas ele fez questão de carregar, não é mesmo? — afirmou e voltou-se para Zeca, pedindo confirmação.

        — Tadinho dele... — tornou ela e desatou a rir.

        Já na rua, Maurício interrogou, sério:

        — Pegou os passes?

        — Peguei.

        — Conhece bem a cidade?

        — Conheço... mais ou menos...

        — E as linhas de ônibus?

        — Mais ou menos.

        Maurício observou-o de lado, desaprovando:

        — Mais ou menos não serve! Boy tem de conhecer tudo! E não adianta enrolar que o Giba sabe o tempo que cada um precisa pra fazer o serviço!

        — Certo.

        Após quase dez minutos de silêncio, no ponto, tomaram o ônibus. Quando o veículo acelerou a marcha, Maurício interrogou como quem não quer mas está querendo:

        — Você é protegido de quem?

        Zeca surpreendeu-se com a pergunta direta e desentendeu:

        — Protegido como? Não entendi...

        — Se você não veio através de anúncio, alguém deve ter conseguido pra você!

        — Ah, foi o Batista.

        — Batista? — careteou o boy. — Que Batista?

        — Ele trabalha numa gráfica. Diz que vem sempre pegar e entregar serviço na agência...

        Maurício deu um intervalo, como se tentasse localizar mentalmente. Em seguida, arriscou:

        — Não é o Batista da Colorcor?

        — Esse mesmo! Ele é namorado de minha irmã Marilena... e como sabia que eu estava a fim de trabalhar...

        — Tudo bem — interrompeu o outro. — Quem tem padrinho não morre pagão, ué!

        Mais à vontade com o início de conversa, Zeca comentou:

        — Alguns boys não gostaram porque eu vim com indicação... Ficou uma situação meio chata.

        — Quem não gostou? Ah, você deve estar falando do Russinho e do Claudionor.

        — Acho que é.

        Sentado do lado da janela, Maurício falava sem perder de vista o trajeto do ônibus.

        — O pessoal fica desconfiado quando contratam alguém sem anunciar. Fica todo mundo imaginando que é um espião do Gervásio...

        — O chefe de pessoal?

        — Além disso, você não precisa se preocupar, que aqueles dois estão na mira do Gervásio. Não demora nada, vão pra rua.

        — Eles não trabalham direito?

        — Eles fazem o serviço, mas são muito folgados.

        Maurício voltou a examinar o trânsito. Depois, reatou:

        — Você também não tenha ilusão! Indicado ou não, se enrolar, vai pra rua!

        — Certo. Eu estou a fim de trabalhar sério. Preciso desse emprego.

        De repente, o movimento tornou-se mais lento por causa do trânsito ruim. Maurício fez uma careta e tornou ao assunto:

        — O pessoal está meio alvoroçado, também, porque mandaram o Tonho embora. Como você entrou no lugar dele, eles ficaram fazendo onda. Mas você não tem nada com isso.

        — Por que mandaram embora? Ele enrolava?

        — O Tonho? Era o melhor boy da agência!

        — O melhor? Então, por que despediram?

        O companheiro hesitou um instante, mas em seguida abriu-se:

        — Bateram uma carteira na agência e levaram uma grana alta da Claudete...

        — Você quer dizer que roubaram uma funcionária? Quem é a Claudete?

        — A Claudete é contato. Trabalha no atendimento de clientes.

        — E foi... foi o Tonho?

        — Foi nada!

        — Então, por que despediram?

        — O Gervásio cismou que foi ele!

        Zeca sentia-se confuso. Não entendia como podia acontecer um negócio tão sujo num ambiente daquele nível. Jamais imaginaria um ladrão naquela casa; não entre os funcionários. Pensou um pouco e arriscou:

        — Você acha que não foi o Tonho...

        — Tenho certeza que não!

        — E por que o Gervásio cismou com ele?

        — Porque ele era preto.

        A princípio, Zeca não entendeu:

        — Porque era preto?... Só por isso?

        — Você acha pouco? — interrogou Maurício, encarando-o. — Para o Gervásio é muito!

        [...]

Pega Ladrão. São Paulo, Ática, 1986. p. 11-5.

Fonte: Português – Linguagem & Participação, 6ª Série – MESQUITA, Roberto Melo/Martos, Cloder Rivas – Ed. Saraiva, 1ª edição – 1998, p. 179-184.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Fatura: relação que acompanha uma remessa de mercadorias, contendo a descrição de tais mercadorias.

·        Iniciativa: atitude.

·        Enxerido: intrometido.

·        Mascarar: esconder.

·        Apreensão: sentimento de preocupação.

·        Intromissão: ato de intrometer-se em assuntos alheios.

·        Retrucar: responder.

·        Displicência: falta de interesse, descaso.

·        Na mira: sob observação.

·        Reatar: estabelecer outra vez uma ligação ou uma conversa, retornar do ponto interrompido.

·        Trajeto: caminho, percurso.

02 – A ação do texto acontece em uma agência de publicidade. Qual é a situação que Zeca está vivendo no emprego?

      Zeca está começando a trabalhar como mensageiro ou boy.

03 – Como Maurício trata Zeca? Por que Maurício se comporta desta maneira?

      Maurício o trata com superioridade porque ele é mais experiente no emprego do que Zeca.

04 – Qual é a intenção de Dona Ermelinda com a frase: “Ah, o garotão almoça na lanchonete, é?

      Dona Ermelinda está brincando com Zeca, tentando descontrai-lo.

05 – Em que circunstância Zeca começou a trabalhar na agência?

      Zeca foi apresentado pelo namorado da irmã, que trabalha numa gráfica.

06 – Embora sem aparecer diretamente no texto, o que é possível perceber sobre Gervásio?

      Gervásio é o chefe de pessoal da agência. Ele despediu Tonho porque implicava com ele.

07 – Por que Tonho foi despedido?

      Tonho foi despedido porque houve um roubo na agência e Gervásio o considerou culpado por ser preto.

08 – Como você imagina que Tonho tenha se sentido ao ser tratado dessa forma?

      Resposta pessoal do aluno.

 

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