Relato: OS LIVROS E SUAS VOZES
Cecília Meireles
Texto I
Se há uma pessoa que possa, a qualquer
momento, arrancar da sua infância uma recordação maravilhosa, essa pessoa sou
eu. [...]
Tudo quanto, naquele tempo, vi, ouvi, toquei,
senti, perdura em mim com uma intensidade poética inextinguível. Não saberia
dizer quais foram as minhas impressões maiores. Seria a que recebi dos adultos
tão variados em suas ocupações e em seus aspectos? Das outras crianças? Dos
objetos? Do ambiente? Da natureza? [...]
Recordo céus estrelados, chuva nas
flores, frutas maduras, casas fechadas, estátuas, negros, aleijados, bichos,
suínos, realejos, cores de tapete, bacia de anil, nervuras de tábuas, vidros de
remédio, o limo dos tanques, a noite em cima das árvores, o mundo visto através
de um prisma de lustre, o encontro com o eco, essa música matinal dos sabiás,
lagartixas pelos muros, enterros, borboletas, o carnaval, retratos de álbum, o
uivo dos cães, o cheiro do doce de goiaba, todos os tipos populares, a pajem
que me contava com a maior convicção histórias do Saci e da Mula-sem-cabeça
(que ela conhecia pessoalmente); minha avó que me cantava rimances e me
ensinava parlendas... [...]
Mais tarde [...] os livros se abriram,
e deixaram sair suas realidades e seus sonhos, em combinação tão harmoniosa que
até hoje não compreendo como se possa estabelecer uma separação entre esses
dois tempos de vida, unidos como os fios de um pano. Foi ainda nessa área que
apareceram um dia os meus próprios livros, que não são mais do que o desenrolar
natural de uma vida encantada com todas as coisas [...]
Sempre gostei muito de livros e, além
dos livros escolares, li os de histórias infantis, e os de adultos: mas estes
não me pareciam tão interessantes, a não ser, talvez, Os Três
Mosqueteiros, numa edição monumental, muito ilustrada, que fora de meu
avô. Aquilo era uma história que não acabava nunca; e acho que esse era o seu
principal encanto para mim. Descobri o Dicionário, uma das invenções mais
simples e mais formidáveis e também achei que era um livro maravilhoso, por
muitas razões.
[...] Quando eu ainda não sabia ler,
brincava com livros e imaginava-os cheios de vozes, contando o mundo.
Cecília Meireles.
Obra poética. Rio de Janeiro: Aguilar, 1997. p.58-61.
Elias Canetti
Alguns meses depois de meu ingresso na
escola, aconteceu algo solene e excitante que determinou toda a minha vida
futura. Meu pai me trouxe um livro. Levou-me para um quarto dos fundos, onde as
crianças costumavam dormir, e o explicou para mim. Tratava-se de “The Arabian
Nights”, “As Mil e Uma Noites”, numa edição para crianças. Na capa havia uma
ilustração colorida, creio que de Aladim com a lâmpada maravilhosa. Falou-me,
de forma animadora e séria, de como era lindo ler. Leu-me uma das histórias:
tão bela como esta seriam também as outras do livro. Agora eu deveria tentar
lê-las, e à noite eu lhe contaria o que havia lido. Quando eu acabasse de ler
este livro, ele me traria outro. Não precisou dizê-lo duas vezes, e, embora na
escola começasse a aprender a ler, logo me atirei sobre o maravilhoso livro, e
todas as noites tinha algo para contar. Ele cumpriu sua promessa, sempre havia
um novo livro e não tive que interromper minha leitura um dia sequer.
Era uma série para crianças e todos os
livros tinham o mesmo formato; se diferenciavam pela ilustração colorida na
capa. As letras tinham o mesmo tamanho em todos os volumes e era como se
continuasse a ler sempre o mesmo livro. Como série, nunca houve outra igual.
Lembro-me de todos os títulos. Depois da Mil e uma noites vieram os Contos
Grimm, Robinson Crusoé, As viagens de Gulliver, Contos de Shakespeare, Dom
Quixote, Dante, Guilherme Tell.
Elias Canetti. A língua
absolvida. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 50.
Fonte: Livro-
PORTUGUÊS: Linguagens – Willian R. Cereja/Thereza C. Magalhães – 6ª Série – 2ª
edição - Atual Editora – 2002 – p. 181-4.
Entendendo os relatos:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Inextinguível: que não se extingue, não se apaga.
·
Limo: lodo.
·
Pajem: babá, criada, acompanhante.
·
Prisma: cristal que decompõe a luz.
·
Rimance: o mesmo que romance, poética popular.
02 – Os dois textos são
exemplos de relato, um gênero
textual em que os autores narram experiências pessoais vividas no passado.
a) Em que pessoa são narrados os textos: em 1ª ou em 3ª pessoa? Comprove sua resposta com alguns exemplos.
Em 1ª pessoa, conforme mostram as formas verbais vi, ouvi, toquei e
os pronomes mim, me, etc.
b) Dos três itens que seguem, qual é o que melhor traduz o assunto desses relatos?
·
Recordações da infância.
·
O poder transformador dos livros.
· A descoberta dos livros e da leitura na infância.
c)
Que palavras dos textos comprovam que os
relatos são fruto da memória e não
da imaginação?
Recordação, recordo (texto I); lembro-me (texto II).
03 – A autora do texto I, n
3° parágrafo, cita várias recordações de sua infância: algumas são de coisas
concretas, outras de coisas abstratas.
a) Cite três dessas coisas concretas.
Céus, chuva, frutas, casas, etc.
b) Quais são as recordações de coisas abstratas?
São as histórias, as parlendas e os romances que ouvia da pajem e da
avó.
04 – Os adultos
desempenharam um importante papel na vida dos dois escritores quando crianças.
a) Quem são os adultos citados no texto I?
A pajem e a avó.
b) E no texto II?
O pai.
c) O que os adultos fizeram de importante para essas crianças?
Iniciaram essas crianças no mundo da leitura e da literatura.
d) Por que essa iniciativa foi importante para a escolha profissional que essas crianças iriam fazer mais tarde?
Porque mais tarde se tornaram escritores.
05 – Releia estes fragmentos
dos textos:
“[...]
estes não me pareciam tão interessantes, a não ser, talvez, Os Três
Mosqueteiros, numa edição monumental, muito ilustrada [...]”.
“As Mil e Uma Noites”, numa edição para
crianças. Na capa havia uma ilustração colorida”.
O que os livros oferecidos às crianças tinham em comum, o que as atraía neles?
O fato de serem bem-ilustrados; por isso,
atraíam também como objetos.
06 – Os dois textos tratam
de viagens, embora não de forma
explícita.
a) Que tipo de viagem os autores, quando crianças, faziam pelos livros?
Eles faziam uma viagem pela fantasia e pela imaginação, estimulados
pelos livros.
b) Que tipo de viagem os autores fazem agora, já adultos?
Agora viajam pela memória, recordando a infância e a iniciação à
leitura.
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