sexta-feira, 18 de março de 2022

CRÔNICA: FESTA DE ANIVERSÁRIO - FERNANDO SABINO - COM GABARITO

 Crônica: Festa de aniversário

              Fernando Sabino

     Leonora chegou-se para mim, a carinha mais limpa deste mundo:

        -- Engoli uma tampa de Coca-Cola. 

        Levantei as mãos para o céu: mais esta, agora! Era uma festa de aniversário, o aniversário dela própria, que completava seis anos de idade. Convoquei imediatamente a família:

        -- Disse que engoliu uma tampa de Coca-Cola.

        A mãe, os tios, os avós, todos a cercavam, nervosos e inquietos.

        -- Abra a boca, minha filha. Agora não adianta: já engoliu. Deve ter arranhado. Mas engoliu como? Quem é que engole uma tampa de cerveja? De cerveja não: de Coca-Cola. Pode ter ficado na garganta -- urgia que déssemos uma providência, não ficássemos ali, feito idiotas. Tomei-a ao colo: -- Vem cá, minha filhinha, conta só para mim. Você engoliu coisa nenhuma, não é isso mesmo?

        -- Engoli sim, papai -- ela afirmava com decisão.

        Consultei o tio, baixinho:

        -- O que é que você acha?

        Ele foi buscar uma tampa de garrafa, separou a cortiça do metal:

        -- O que você engoliu: isto... ou isto?

        -- Cuidado que ela engole outra -- adverti.

        -- Isto -- e ela apontou com firmeza a parte de metal.

        Não tinha dúvida: Pronto-Socorro. Dispus-me a carregá-la, mas alguém sugeriu que era melhor que ela fosse andando: auxiliava a digestão.

        No hospital, o médico limitou-se a apalpar-lhe a barriguinha, cético:

        -- Dói aqui, minha filha?

        Quando falamos em radiografia, revelou-nos que o aparelho estava com defeito: só no Pronto-Socorro da cidade.

        Batemos para o Pronto-Socorro da cidade. Outro médico nos atendeu com solicitude.

        -- Vamos já ver isto.

        Tirada a chapa, ficamos aguardando ansiosos a revelação. Em pouco o médico regressava:

        -- Engoliu foi a garrafa.

        -- A garrafa?! -- exclamei. Mas era uma gracinha dele, cujo espírito passava ao largo da minha aflição: eu não estava para graças. Uma tampa de garrafa! Certamente precisaria operar -- não haveria de sair por si mesma.

        O médico pôs-se a rir de mim:

        -- Não engoliu coisa nenhuma. O senhor pode ir descansado.

        -- Engoli -- afirmou a menininha.

        Voltei-me para ela:

        -- Como é que você ainda insiste, minha filha?

        -- Que eu engoli, engoli.

        -- Pensa que engoliu -- emendei.

        -- Isso acontece -- sorriu o médico -- até com gente grande. Aqui já teve um guarda que pensou ter engolido o apito.

        -- Pois eu engoli mesmo -- comentou ela, intransigente.

        -- Você não pode ter engolido -- arrematei, já impaciente. -- Quer saber mais que o médico?

        -- Quero. Eu engoli, e depois desengoli -- esclareceu ela.

        Nada mais havendo a fazer, engoli em seco, despedi-me do médico e bati em retirada com toda a comitiva. 

Quadrante. Rio de Janiro, Editora do Autor, 1962.

Fonte: Português – Linguagem & Participação, 6ª Série – MESQUITA, Roberto Melo/Martos, Cloder Rivas – Ed. Saraiva, 1ª edição – 1998, p. 46-7.

Entendendo a crônica:

01 – Qual é o conteúdo desta crônica?

      É de conteúdo humorístico, de mal-entendido que aconteceu durante a festa de aniversário.

02 – Por que ela é considerada uma crônica?

      Porque transforma um assunto corriqueiro, como uma festa de aniversário, em matéria para uma crônica.

03 – Como em todo texto narrativo, tem alguém que conta a história. Quem é o narrador deste texto?

      É o pai de Leonora.

04 – Quem são as personagens do texto?

      Leonora, seu pai, familiares e os médicos do pronto-socorro.

05 – Qual o fato que se narra nesse texto?

      O desespero de um pai que pensa que a filha engoliu uma tampa de refrigerante.

 

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