quinta-feira, 10 de março de 2022

CRÔNICA: AQUI NÃO FALTA NADA - MARCOS REY - COM GABARITO

 Crônica: AQUI NÃO FALTA NADA

            Marcos Rey

        Carta

        TCHAU, MÃE:

        Estou me mandando.

        Vou pra São Paulo mas não esquente não. Já sei me virar e estou levando todo o dinheiro que guardei.

        Vila Grande não dá mais pé pra mim. Não pela cidade, que é bacana, mas por tudo que anda acontecendo. Você sabe, eu e o padrasto, a gente não se dá muito bem. Aquilo de estudar contabilidade podia ser bom pra empresa dele, pra sua frota de caminhões, não pra mim. Não nasci pra fazer contas. E um cano.

        Outro que me enche é o filho dele, o Silvano. Um chato, vive implicando comigo, provocando. Quem ele pensa que é?

        O jeito que encontrei pra me livrar disso tudo foi esse: dar o fora daqui, cair no mundo.

        Sei que você vai chorar, mas logo passa.

        Papai vai ser meu anjo da guarda, sempre por perto, aconselhando. E tudo acabará numa boa, como nos filmes de cinema.

Tchau, mãe!

Toni

Texto

        Dona Amélia entrou no quarto do filho, viu a carta sobre o travesseiro e adivinhou do que se tratava. As coisas em casa andavam tensas. Depois de ler o que Toni havia escrito, ela foi abrir o guarda-roupa do rapaz. Felizmente, ele levara as roupas de inverno. São Paulo é uma cidade fria.

        Na sala, fez uma ligação telefônica:

        — Me chamem o Antero, urgente.

        Um segundo e ouviu a voz do marido, sempre bronqueado, como Toni dizia.

        — Que aconteceu?

        — O Toni...

        — O que foi desta vez?

        — Fugiu de casa.

        — Ah...

        — Meu filho foge de casa e você só diz “ah...”?

        — O que quer que eu diga? Juízo ele nunca teve mesmo. Mas não se aflija, ele volta.

        — Acha que volta?

        — Acho sim. Vai ser uma lição para ele. Voltará dando mais valor ao que tinha aqui. Depois a gente conversa. Preciso despachar um caminhão.

        Dona Amélia saía da sala quando entrou o enteado, Silvano, recém-formado em administração de empresas, sempre bem-vestido e um tanto pretensioso. Com a madrasta era apenas educado e mais nada.

        — Toni fugiu — ela disse.

        Silvano não esboçou a menor reação. Com cara de quem um dia ia ser patrão, nunca se surpreendia.

        — Deve ter ido atrás de sua garota.

        — Garota? Que garota?

        — Lembra aquela que morava na esquina?

        — Uma que o pai trabalhava numa firma estrangeira?

        — Ele foi transferido e se mudou com a família pra São Paulo.

        — Toni não fugiria de casa por causa duma namorada — replicou dona Amélia, como se tivesse acabado de ouvir um absurdo.

        Silvano sentiu que poderia complicar a situação de Toni. Não suportava o meio-irmão nem à distância.

        — Que outro motivo Toni poderia ter, dona Amélia? Ele tinha a vida que pediu a Deus. Por acaso falta alguma coisa aqui?

        Era verdade, admitiu dona Amélia para si mesma. Durante o primeiro casamento e, depois, quando viúva, ela e o filho só conheceram aperturas. José, o falecido, jornalista de cidade pequena, nunca pôde dar conforto à família e, ao morrer, deixara uma sequência de zeros na conta bancária. Dona Amélia reconhecia que, com o segundo marido, Antero, próspero comerciante, a situação era outra, muito melhor.

        — Não, Silvano, aqui não falta nada — respondeu, dando as costas para o rapaz. Ela queria ficar sozinha para reler a carta de Toni. 

Marcos Rey. Na rota do perigo. São Paulo, Ática, 1993. p. 9-11.

Fonte: Português – Linguagem & Participação, 6ª Série – MESQUITA, Roberto Melo/Martos, Cloder Rivas – Ed. Saraiva, 1ª edição – 1998, p. 77-80.

Entendendo a crônica:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Afligir-se: preocupar-se.

·        Despachar: enviar.

·        Pretencioso: vaidoso, convencido, presunçoso.

·        Esboçar: entremostrar, manifestar.

·        Absurdo: algo sem sentido, que não se compreende.

·        Sequência: série, sucessão.

·        Próspero: bem-sucedido, afortunado.

02 – Toni é um adolescente e por isso usa uma linguagem cheia de gírias em sua carta. Além disso, como escreve para a mãe, usa a linguagem informal, um tratamento bem coloquial. Vamos transferir sua fala para a norma culta, formal.

a)   Estou me mandando.

Estou indo embora.

b)   Vou pra São Paulo mas não esquenta não.

Vou para São Paulo, mas não precisa se preocupar.

c)   Vila Grande não dá mais pé pra mim.

Não dá mais para ficar em Vila Grande / Não me e possível viver mais em Vila Grande.

d)   E tudo acabará numa boa, como nos filmes de cinema.

E tudo acabará bem, como nos filmes do cinema.

e)   A gente não se dá muito bem.

Nós não nos damos bem.

f)    Vou dar o fora daqui, cair no mundo.

Vou embora daqui, procurar novos lugares.

03 – O texto pode ser dividido em duas partes. Justifique.

      A primeira parte do texto é a carta de despedida da personagem Toni. A segunda é a narração da história.

04 – Quais as razões que levaram Toni a deixar a casa da mãe?

      Toni tem um relacionamento problemático com o padrasto e também com o filho deste. Silvano. Querem que ele estude contabilidade, e o rapaz não quer.

05 – Como é Antero, o padrasto de Toni?

      Seu Antero, segundo marido de D. Amélia, é dono de uma empresa de transporte. É uma pessoa que revela apenas interesses materiais, como preocupação em ganhar dinheiro, em manter a firma, etc.

06 – Explique esta afirmação, com relação ao texto: “Aqui não falta nada”:

      Silvano quis dizer que não faltava nada de material na casa. Isso soa como ironia, pois ali não havia amor, tranquilidade, respeito pelas pessoas.

07 – Qual a situação econômica de Dona Amélia?

      Dona Amélia passou por muitas dificuldades econômicas durante o primeiro casamento. Agora, economicamente, sua situação melhorou.

08 – O que podemos inferir do diálogo entre Dona Amélia e Antero?

      Pelo diálogo, percebe-se que Antero não gosta de Toni e não dá grande importância a Amélia. Para ele, o importante é despachar o caminhão, ganhar dinheiro.

09 – A personagem Toni é apresentada ao leitor do ponto de vista de Antero e de Silvano. O que ambos pensam dele?

      Antero acha que Toni não tem juízo, que não dá valor ao que te. Silvano não suportava o meio-irmão.

10 – Seu Antero quer que o enteado estude contabilidade para trabalhar na firma dele. Qual sua opinião sobre essa atitude?

      Resposta pessoal do aluno.

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