CRÔNICA: CASO DE CANÁRIO
Carlos Drummond de Andrade
Casara-se havia duas semanas. Por isso,
em casa dos sogros, a família resolveu que ele é que daria cabo do
canário:
– Você compreende. Nenhum de nós teria coragem de sacrificar o
pobrezinho, que nos deu tanta alegria. Todos somos muito ligados a ele,
seria uma barbaridade. Você é diferente, ainda não teve tempo de afeiçoar-se ao
bichinho. Vai ver que nem reparou nele, durante o noivado.
– Mas eu também tenho coração, ora essa. Como é que
vou matar um pássaro só porque o conheço há menos tempo do que vocês?
– Porque não tem cura, o médico já disse. Pensa que não tentamos
tudo? É para ele não sofrer mais e não aumentar o nosso sofrimento. Seja bom,
vá.
O sogro, a sogra apelaram no mesmo tom. Os olhos claros de
sua mulher pediram-lhe com doçura:
– Vai, meu bem.
Com repugnância pela obra de misericórdia
que ia praticar, ele aproximou-se da gaiola. O canário nem sequer abriu o
olho. Jazia a um canto, arrepiado, morto-vivo. É, esse está
mesmo na última lona e dói ver a lenta agonia de um ser tão
precioso, que viveu para cantar.
– Primeiro me tragam um vidro de éter e algodão. Assim ele
não sentirá o horror da coisa.
Embebeu de éter a bolinha de algodão, tirou o canário para
fora com infinita delicadeza, aconchegou-o na palma da mão
esquerda e, olhando para outro lado, aplicou-lhe a bolinha no bico. Sempre sem
olhar para a vítima, deu-lhe uma torcida rápida e leve, com dois dedos no
pescoço.
E saiu para a rua, pequenino por dentro,
angustiado, achando a condição humana uma droga. As pessoas da casa
não quiseram aproximar-se do cadáver. Coube à cozinheira recolher a gaiola,
para que sua vista não despertasse saudade e remorso em ninguém. Não
havendo jardim para sepultar o corpo, depositou-o na lata
de lixo.
Chegou a hora de jantar, mas quem é que tinha fome
naquela casa enlutada? O sacrificador, esse, ficara rodando por aí,
e seu desejo seria não voltar para casa nem para
dentro de si mesmo.
No dia seguinte, pela manhã, a cozinheira foi
ajeitar a lata de lixo para o caminhão, e recebeu uma bicada voraz no dedo.
– Ui!
Não é que o canário tinha
ressuscitado, perdão, reluzia vivinho da silva,
com uma fome danada?
– Ele estava precisando mesmo era de
éter – concluiu o estrangulador, que se sentiu ressuscitar, por sua vez.
CARLOS DRUMMOND DE
ANDRADE.
Elenco de cronistas
modernos.
Rio de Janeiro:
José Olympio, 1976.
Entendendo o texto:
I – Assinale a alternativa correta para cada item.
01 – A expressão: “… daria
cabo do canário…” significa:
a.( ) dar o canário
a alguém
b.( ) soltar o
canário da gaiola
c.(X) matar o
canário
d.( ) prender o
canário na gaiola.
02 – Na
frase: “Você ainda não teve tempo de afeiçoar-se ao bichinho”,
a palavra em destaque pode ser substituída por:
a.(X) apegar-se b.(
) enfurecer-se
c.( ) desencantar-se
d.(
) preocupar-se.
03 – Na
frase: “Com repugnância pela obra de misericórdia que ia
praticar…”, a palavra em destaque pode ser substituída por:
a.(X) escrúpulo
b.( )
tédio
c.( )
ansiedade d.( )
raiva.
04 – Na
frase: “O canário …. jazia a um canto…” , a palavra em
destaque pode ser substituída por:
a.( )
cantava
b.(
) arrepiava-se
c.(X) estava deitado
d.( ) saltitava.
05 – Na
frase: “Tirou o canário com infinita delicadeza…”, a palavra
em destaque pode ser substituída por:
a.( )
arrogante b.(X)
enorme
c.( )
desajeitado
d.( ) espontânea.
06 –
Nas frases abaixo, aparecem em destaque, expressões da fala coloquial.
Relacione as duas colunas, de acordo com o significado dessas expressões:
1. “…esse está mesmo na última
lona…”
2. “…achando a condição humana uma
droga…”
3. “O canário reluzia vivinho
da silva…”
4. “ O canário estava com uma
fome danada.”
a. (2) uma coisa muito ruim
b. (4) muito grande, fora do comum
c. (1) no fim
d. (3) vivo, sem nenhuma dúvida.
II – Responda com base no texto.
07– Por
que os sogros e a esposa escolheram o rapaz para sacrificar o canário?
Porque ele, sendo novo na família, ainda
não tivera tempo de se apegar ao canário.
08– O que
o genro quis dizer com a frase: “Mas eu também tenho coração.”?
Ele quis dizer que também era sensível e
que tinha pena do bichinho.
09 – Por que a família decidiu
matar o canário de estimação?
Porque o médico afirmara que ele estava
muito doente, não tinha cura.
10 –
Por que o jovem marido considerou o sacrifício do canário como uma obra de
misericórdia?
Porque seria um ato de caridade abreviar
o sofrimento do canário.
11 – Como procedeu ele para
matar o canário?
Deu-lhe éter para cheirar e depois
torceu-lhe de leve o pescoço.
12 –
Transcreva do texto a frase que mostra o estado de espírito do personagem
depois que executou o passarinho.
“E saiu para a rua, pequenino por dentro,
angustiado, achando a condição humana uma droga”.
13 – As
expressões sepultar e enlutada referem-se
normalmente à morte de pessoas. Por que o narrador as empregou referindo-se ao
canário?
O canário era como uma pessoa da família.
Todos lhe queriam bem, como a uma criatura humana.
14 –
Como você entende a expressão “voltar para dentro de si mesmo”?
A expressão significa parar para pensar,
para meditar.
15 – Na
crônica, não aparece o nome do personagem escolhido para matar o canário.
Retire do texto as palavras empregadas para se referir a ele.
As palavras usadas para se referir ao
personagem são sacrificador e estrangulador.
16 – Como se explica o fato de
o canário estar vivo?
Na verdade, o canário não tinha morrido.
A torcida rápida e leve no pescoço não foi suficiente para matá-lo.
17 –
Por que o personagem, no final, também se sentiu ressuscitado?
O personagem estava desolado com a morte
do canário. Ao saber que ele estava vivo, sentiu grande alivio e felicidade.
18 – Na
crônica, o canário aparece em duas situações diferentes. Primeiro, ele está
muito mal, semimorto. Depois, ele aparece curado, bem vivo. Transcreva as
frases que mostrem o canário nessas duas situações.
1a. – Jazia a um canto,
arrepiado, morto-vivo.
2a. – Não é que o canário tinha ressuscitado, perdão, reluzia
vivinho da silva com uma fome danada?
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