Rubem Braga
Minha querida amiga:
Sim, é para você mesma que estou escrevendo – você que aquela noite disse que
estava com vontade de me pedir conselhos, mas tinha vergonha e achava que não
valia a pena, e acabou me formulando um pergunta ingênua:
--- Como é que a gente faz para esquecer uma pessoa?
E logo depois me pediu que não pensasse nisso e esquecesse a pergunta, dizendo
que achava que tinha bebido um ou dois uísques a mais...
Sei como você está sofrendo, e prefiro lhe responder assim pelas páginas de uma
revista – fazendo de conta que me dirijo a um destinatário suposto.
Destinatário, destinatária... Bonita palavra: não devia querer dizer apenas
aquele ou aquela a quem se destina uma carta, devia querer dizer também a
pessoa que é dona do destino da gente. Joana é minha destinatária. Meu destino
está suas mãos; a ela se destinam meus pensamentos, minhas lembranças, o que
sinto e o que sou: todo este complexo mais ou menos melancólico e todavia tão
veemente de coisas que eu nasci e me tornei.
Se me derem para encher uma fórmula impressa ou uma ficha de hotel eu poderei
escrever assim: Procedência – Cachoeiro de Itapemirim; Destino – Joana. Pois é
somente para ela que eu marcho. No táxi, no bonde, no avião, na rua, não
interessa a direção em que me movo, meu destino é Joana. Que importa saber que
jamais chegarei ao meu destino?
Isso eu gostaria de lhe dizer, minha amiga, com a autoridade triste do mais
vivido e mais sofrido: amar é um ato de paciência e de humildade; é uma longa
devoção. Você me responderá que não é nada disso; que você já chegou ao seu
destinatário e foi devolvida como se fosse uma carta com o endereço errado. Que
teve alguns dias, algumas horas de felicidade, e por isso agora sofre de
maneira insuportável. Então lhe aconselho a comprar um canivete bem amolado e
afinar dezoito pedacinhos de pau até ficarem bem pontudos, bem lisos,
perfeitamente torneados – e depois deixá-los a um canto. Apanhar uma folha de papel
tamanho ofício e enchê-la toda, todinha, de alto a baixo, com o nome de seu
amado, escrevendo uma letra bem bonita, de preferência com tinta azul. Em
seguida faça com essa folha um aviãozinho, e jogue pela janela. Observe o voo e
a aterrisagem. Depois desça, vá lá fora, apanhe o avião de papel, desdobre a
folha novamente (pode passa-la a ferro, para o serviço ficar mais perfeito e
não haver mais nenhum indício da construção aeronáutica) e volte a dobrá-la,
desta vez ao meio. Dobre outras vezes, até obter o menor retângulo possível.
Então, com o canivete, vá cortando as partes dobradas até transformar toda a
folha em minúsculos papeizinhos, tão pequenos que o nome de seu amado não deve
caber inteiro em nenhum deles. Aí, apanhe todos aqueles pauzinhos que tinha
deixado a um canto e, com os pedacinhos de papel, faça uma fogueira com o
máximo cuidado até que restem somente cinzas. A seguir poderá repetir a
operação...
--- Adianta alguma coisa?
Por favor, querida amiga, não me faça esta pergunta. Nada adianta coisa alguma,
a não ser o tempo: e fazer fogueirinhas é um meio tão bom quanto qualquer outro
de passar o tempo.
BRAGA, Rubem. Receita para mal de amor. In: A traição das
Elegantes. 2. ed. Rio de Janeiro. Record, 1985. p. 95-7.
Complexo:
combinado.
Melancólico:
deprimido, triste.
Veemente:
intenso, forte, vivo.
Tamanho
ofício: denominação da folha de papel.
Entendendo
o texto
01. O fato que desencadeia a narrativa é:
a)
O pedido de conselhos que uma amiga fez ao narrador.
b)O fim do relacionamento entre o narrador e Joana.
c) O pedido de um grande amigo de infância do narrador.
d)O fim do relacionamento entre o narrador e uma amiga.
e) A dúvida que uma amiga do narrador tem a respeito de relacionamentos
amorosos.
02. O trecho em que o narrador deixa implícito que já passou por situação semelhante à da moça é:
a) “Joana é minha destinatária.”
b)“Pois é somente para ela que eu marcho.”
c)
“... com a autoridade triste do mais vivido e mais sofrido...”
d) “A seguir poderá repetir a operação...”
e) “Nada adianta coisa alguma a não ser o tempo.”
03. O
texto lido é uma crônica. A crônica é o registro das impressões do escritor
diante de fatos do cotidiano e constitui um gênero intermediário, pois situa-se
entre a literatura e o jornalismo. Qual é o fato que dá origem a esse texto?
O pedido de
conselhos que uma amiga fez ao narrador.
04. No
trecho compreendido entre as linhas 12 e 14, o narrador reivindica para a
palavra destinatário um outro sentido, além do convencional.
a) Qual?
“Pessoa que é dona do destino da gente”.
b) Quem seria, no caso, a destinatária da
vida do narrador?
Joana.
c) Que palavra, na sua suposta ficha
de hotel, resume a importância dessa mulher?
Destino.
05. No
oitavo parágrafo, o narrador deixa implícito que já passou por situação
semelhante à da amiga para quem escreve. Transcreva o trecho que comprova tal
afirmativa.
“Com a autoridade do mais vivido e mais sofrido”.
06. Que
função da linguagem predomina no trecho compreendido entre as linhas 28 e 43?
Função conativa ou apelativa. É o trecho que trata da receita propriamente
dita.
07. Afinal, a que se resume a utilidade da receita proposta pelo narrador?
Passar o tempo, simplesmente, já que não há receitas para mal de amor.
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