terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

CRÔNICA: RECEITA PARA MAL DE AMOR - RUBEM BRAGA - COM INTERPRETAÇÃO/GABARITO

CRÔNICA: RECEITA PARA MAL DE AMOR
                        Rubem Braga



   Minha querida amiga:

  Sim, é para você mesma que estou escrevendo – você que aquela noite disse que estava com vontade de me pedir conselhos, mas tinha vergonha e achava que não valia a pena, e acabou me formulando um pergunta ingênua:
   --- Como é que a gente faz para esquecer uma pessoa?
  E logo depois me pediu que não pensasse nisso e esquecesse a pergunta, dizendo que achava que tinha bebido um ou dois uísques a mais...
        Sei como você está sofrendo, e prefiro lhe responder assim pelas páginas de uma revista – fazendo de conta que me dirijo a um destinatário suposto.
        Destinatário, destinatária... Bonita palavra: não devia querer dizer apenas aquele ou aquela a quem se destina uma carta, devia querer dizer também a pessoa que é dona do destino da gente. Joana é minha destinatária. Meu destino está suas mãos; a ela se destinam meus pensamentos, minhas lembranças, o que sinto e o que sou: todo este complexo mais ou menos melancólico e todavia tão veemente de coisas que eu nasci e me tornei.
        Se me derem para encher uma fórmula impressa ou uma ficha de hotel eu poderei escrever assim: Procedência – Cachoeiro de Itapemirim; Destino – Joana. Pois é somente para ela que eu marcho. No táxi, no bonde, no avião, na rua, não interessa a direção em que me movo, meu destino é Joana. Que importa saber que jamais chegarei ao meu destino?
        Isso eu gostaria de lhe dizer, minha amiga, com a autoridade triste do mais vivido e mais sofrido: amar é um ato de paciência e de humildade; é uma longa devoção. Você me responderá que não é nada disso; que você já chegou ao seu destinatário e foi devolvida como se fosse uma carta com o endereço errado. Que teve alguns dias, algumas horas de felicidade, e por isso agora sofre de maneira insuportável. Então lhe aconselho a comprar um canivete bem amolado e afinar dezoito pedacinhos de pau até ficarem bem pontudos, bem lisos, perfeitamente torneados – e depois deixá-los a um canto. Apanhar uma folha de papel tamanho ofício e enchê-la toda, todinha, de alto a baixo, com o nome de seu amado, escrevendo uma letra bem bonita, de preferência com tinta azul. Em seguida faça com essa folha um aviãozinho, e jogue pela janela. Observe o voo e a aterrisagem. Depois desça, vá lá fora, apanhe o avião de papel, desdobre a folha novamente (pode passa-la a ferro, para o serviço ficar mais perfeito e não haver mais nenhum indício da construção aeronáutica) e volte a dobrá-la, desta vez ao meio. Dobre outras vezes, até obter o menor retângulo possível. Então, com o canivete, vá cortando as partes dobradas até transformar toda a folha em minúsculos papeizinhos, tão pequenos que o nome de seu amado não deve caber inteiro em nenhum deles. Aí, apanhe todos aqueles pauzinhos que tinha deixado a um canto e, com os pedacinhos de papel, faça uma fogueira com o máximo cuidado até que restem somente cinzas. A seguir poderá repetir a operação...
        --- Adianta alguma coisa?
        Por favor, querida amiga, não me faça esta pergunta. Nada adianta coisa alguma, a não ser o tempo: e fazer fogueirinhas é um meio tão bom quanto qualquer outro de passar o tempo.

                           BRAGA, Rubem. Receita para mal de amor. In: A traição das
                                     Elegantes. 2. ed. Rio de Janeiro. Record, 1985. p. 95-7.

Complexo: combinado.
Melancólico: deprimido, triste.
Veemente: intenso, forte, vivo.
Tamanho ofício: denominação da folha de papel.

Entendendo o texto

01. O fato que desencadeia a narrativa é:

a) O pedido de conselhos que uma amiga fez ao narrador.

b)O fim do relacionamento entre o narrador e Joana.

c) O pedido de um grande amigo de infância do narrador.

d)O fim do relacionamento entre o narrador e uma amiga.

e) A dúvida que uma amiga do narrador tem a respeito de relacionamentos amorosos.

02. O trecho em que o narrador deixa implícito que já passou por situação semelhante à da moça é:

a) “Joana é minha destinatária.”

b)“Pois é somente para ela que eu marcho.”

c) “... com a autoridade triste do mais vivido e mais sofrido...”

d) “A seguir poderá repetir a operação...”

e) “Nada adianta coisa alguma a não ser o tempo.”

 

03. O texto lido é uma crônica. A crônica é o registro das impressões do escritor diante de fatos do cotidiano e constitui um gênero intermediário, pois situa-se entre a literatura e o jornalismo. Qual é o fato que dá origem a esse texto?
       O pedido de conselhos que uma amiga fez ao narrador.

04. No trecho compreendido entre as linhas 12 e 14, o narrador reivindica para a palavra destinatário um outro sentido, além do convencional.
     a) Qual?
      “Pessoa que é dona do destino da gente”.

     b) Quem seria, no caso, a destinatária da vida do narrador?
      Joana.

     c) Que palavra, na sua suposta ficha de hotel, resume a importância dessa mulher?
      Destino.

05.  No oitavo parágrafo, o narrador deixa implícito que já passou por situação semelhante à da amiga para quem escreve. Transcreva o trecho que comprova tal afirmativa.
       “Com a autoridade do mais vivido e mais sofrido”.

06. Que função da linguagem predomina no trecho compreendido entre as linhas 28 e 43?
       Função conativa ou apelativa. É o trecho que trata da receita propriamente dita.

07. Afinal, a que se resume a utilidade da receita proposta pelo narrador?

       Passar o tempo, simplesmente, já que não há receitas para mal de amor.


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