O
IMPÉRIO DA VAIDADE
Em
tempos de ditadura da beleza, o corpo é massacrado pela indústria e pelo
comércio, que vivem da nossa insegurança, impotência e angústia.
Você sabe por que a televisão, a
publicidade, o cinema e os jornais defendem os músculos torneados, as vitaminas
milagrosas, as modelos longilíneas e as academias de ginástica? Porque tudo
isso dá dinheiro. Sabe por que ninguém dala do afeto e do respeito entre duas
pessoas comuns, mesmo meio gordas, um pouco feias, que fazem piquenique na
praia? Porque isso não dá dinheiro para os negociantes, mas dá prazer aos
participantes.
O prazer é físico, independentemente do
físico que se tenha: namorar, tomar milk-shake, sentir o sol na pele, carregar
o filho no colo, andar descalço, ficar em casa sem fazer nada. Os melhores
prazeres são de graça – a conversa com o amigo, o cheiro do jasmim, a rua vazia
de madrugada –, e a humanidade sempre gostou de conviver com eles. Comer uma
feijoada com amigos, tomar caipirinha no sábado, também é uma grande pedida.
Ter um momento de prazer é compensar muitos momentos de desprazer. Relaxar,
descansar, despreocupar-se, desligar-se da competição, da áspera luta pela vida
– isso é prazer.
Mas vivemos num mundo onde relaxar e
desligar-se se tornou um problema. O prazer gratuito, espontâneo, está cada vez
mais difícil. O que importa, o que vale, é o prazer que se compra e se exibe, o
que não deixa de ser aspecto da competição. Estamos submetidos a uma cultura
atroz, que quer fazer-nos infelizes, ansiosos, neuróticos. As filhas precisam
ser Xuxas, as namoradas precisam ser modelos que desfilam em Paris, os homens
não podem assumir sua idade.
Não vivemos a ditadura do corpo, mas
seu contrário: um massacre da indústria e do comércio. Querem que sintamos
culpa quando nossa silhueta dica um pouco mais gorda, não porque querem que
sejamos mais saudáveis – mas porque, se não ficarmos angustiados, não faremos
mais regimes, não compraremos mais produtos dietéticos, nem produtos de beleza,
nem roupas e mais roupas. Precisam da nossa impotência, da nossa insegurança,
da nossa angústia.
O único valor coerente que essa cultura
apresenta é o narcisismo. Vivemos voltados para dentro, à procura de mundos
interiores (ou mesmo vidas anteriores). O esoterismo não acaba nunca – só muda
da papa a cada Bienal do Livro –, assim como os cursos de autoconhecimento,
auto realização e, especialmente, autopromoção. O narcisismo explica nossa
ânsia pela fama e pela posição social. É hipocrisia dizer que entramos numa
academia de ginástica porque estamos preocupados com a saúde. Se fosse assim,
já teríamos arrumado uma solução para questões mais graves, como a poluição que
arrebenta os pulmões, o barulho das grandes cidades, a falta de saneamento.
Estamos preocupados em marcar a
diferença, em afirmar uma hierarquia social, em ser distintos da massa. O
cidadão que passa o dia à frente do espelho, medindo o bíceps e comparando o
tórax com o do vizinho do lado, é uma pessoa movida por uma necessidade
desesperada – precisa ser admirado para conseguir gostar de si próprio. A
mulher que fez da luta contra os cabelos brancos e as rugas seu maior projeto
de vida tornou-se a vítima preferencial de um massacre perpetrado pela
indústria de cosméticos. Como foi demonstrado pela feminista americana Naomi
Wolf, o segredo da indústria da boa forma é que as pessoas nunca ficam em boa
forma: os métodos de rejuvenescimento não impedem o envelhecimento, 90% das
pessoas que fazem regime voltam a engordar, e assim por diante. O que se vende
não é um sonho, mas um fracasso, uma angústia, uma derrota.
Estamos atrás de uma beleza frenética,
de um padrão externo, fabricado, que não é neutro nem inocente. Ao longo dos
séculos, a beleza sempre esteve associada ao ócio. As mulheres do Renascimento
tinham aquelas formas porque isso mostrava que elas não trabalhavam. As belas
personagens femininas do romantismo brasileiro sempre tinham a pele branca,
alabastrina – qualquer tom mais moreno, como se sabe, já significava escravidão
e trabalho. Beleza é luta de classes. Estamos na fase da beleza ostentatória,
que faz questão de mostrar o dinheiro, o tempo livre para passar tardes em
academias e mostra, afinal, quem nós somos: bonitos, ricos e dignos de ser
admirados.
Paulo Moreira
Leite. Veja, 23 ago. 1995. p. 79.
1 – Ao ler o título do
texto, quais eram suas expectativas?
Resposta pessoal do aluno. Provavelmente
o aluno levantará como hipótese o fato de que somos dominados pela vaidade.
2 – Ao terminar de ler o
texto, elas se confirmaram? Por que o autor escolhe esse título? Que outro
poderia ser dado ao texto?
O aluno deverá
perceber que, na vaidade, a preocupação exagerada com o corpo não é algo
natural, mas criado pela mídia. Outros títulos possíveis: A indústria da beleza; O império dos interesses; O preço do prazer.
3 – O autor praticamente
conversa com o leitor. Como ele consegue isso?
Usa o pronome de tratamento você. Faz
perguntas ao leitor, que ele mesmo vai respondendo.
4 – Se os melhores prazeres
são de graça, como afirma o autor, qual o motivo de sua preocupação?
O motivo de sua preocupação é que a mídia
nos faz crer que é preciso pagar um preço pelos prazeres.
5 – Em “As filhas precisam
ser Xuxas”, pode-se observar um dos exemplos citados pelo autor para ilustrar
um aspecto negativo de nossa sociedade. Qual?
A questão da
competição: é preciso sempre ser melhor em alguma coisa, ou mais belo, ou mais
atlético.
6 – De que recurso se vale o
autor para incluir o leitor entre os que vivem sob a cultura atroz?
Ele fala dos homens como chefes de
família, de suas filas e namoradas.
7 – O autor nos caracteriza
como “infelizes, ansiosos, neuróticos”. No parágrafo seguinte, ele amarra suas
ideias associando a esses três adjetivos três substantivos. Quais são eles?
Explique por que temos cada um desses sentimentos.
Impotência:
nada podemos contra a ação do tempo que age em nossos corpos.
Insegurança:
com a competição acirrada, nunca estamos seguros de nós mesmos.
Angústia:
sentimo-nos aflitos por não saber como reagir ao envelhecimento numa sociedade
que só valoriza o jovem.
8 – Qual é a ditadura que
nos oprime, afinal?
A ditadura da indústria e do comércio da
beleza, reforçada pela mídia.
9 – Por que o narcisismo é
um valor coerente dentro dessa cultura atroz? Qual a relação entre o mito de
Narciso e a situação descria pelo autor do texto?
Cada um busca sua
projeção, sua fama, seu sucesso de forma egoísta e individualista. Narciso
apaixona-se pela própria imagem, refletida num lago. No texto, Paulo Moreira
Leite afirma que, em nossa sociedade, estamos voltados apenas para nós mesmos,
para nossa imagem, nossos desejos, querendo fama e posição social.
10 – Em que parágrafo o
autor afirma que seria hipocrisia dizer que nossa preocupação com o corpo está
relacionada à saúde? Analise o argumento que ele usa para provar isso. Ele foi
convincente? Por quê?
No parágrafo 5.
Os argumentos do autor são irrefutáveis: realmente, uma preocupação com a saúde
nos levaria à busca de soluções coletivas, como cuidar do meio ambiente ou
promover a diminuição da desigualdade social.
11 – Costuma-se dizer que
uma das maneiras de aceitarmos o corpo que temos é cuidar do aspecto emocional,
uma vez que a auto estima nos ajuda a valorização do que somos e não do que
aparentamos ser. Essa afirmação está de acordo ou em desacordo com o que afirma
o autor de “O império da vaidade”? Aponte uma passagem do texto que justifique
sua resposta.
Essa afirmação está de acordo com o
texto. O autor diz que as pessoas que são obcecadas pelo corpo precisam
primeiro da admiração alheia para poder gostar de si mesmas.
12 – Em que se baseia o
autor do texto para fazer esta afirmação: “O que se vende não é um sonho, mas
um fracasso, uma angústia, uma derrota”.
Sabe-se, de antemão, que os regimes não
funcionam e os cosméticos não impedem o envelhecimento. Na verdade, trava-se
uma luta vã.
13 – Segundo o autor, o
padrão de beleza que nos impõem não é nem neutro nem inocente. Qual é o padrão
imposto para o homem e para a mulher? Cie alguns exemplos. Qual seria o padrão
de beleza do brasileiro atualmente? Você seria capaz de descrevê-lo?
Os homens são jovens,
altos, atléticos, de corpo bem torneado e bronzeado. As mulheres são claras,
altas, loiras, preferencialmente, e magérrimas. Não temos um padrão de beleza
do brasileiro, mas é bom lembrar que os jovens não são muito altos e as
mulheres não são magras (têm quadris largos). Além disso, há predominância dos
morenos (e mulatos e negros) sobre os loiros.
14 – Releia o último período
do texto: o que o autor quis, de verdade, afirmar? Que recurso ele usou?
O autor afirma que os padrões de beleza
são impostos por determinada classe social, e só consegue se enquadrar neles
quem tem dinheiro e tempo para adquiri-los e mostra-los. Ao dizer: “Beleza é
luta de classes”, o autor emprega uma metáfora.
15 – Releia este período de
“O império da vaidade”:
“Porque isso não dá dinheiro para os negociantes, mas dá prazer aos participantes.” O que você nota? Entre
as várias palavras que o autor poderia ter usado para expressar suas ideias,
ele escolheu as duas em destaque. Por quê?
Nota-se a semelhança de sons, que torna o
texto mais agradável, mais ritmado.
16 – Que recurso o autor
usou no trecho a seguir? (Observe a classe gramatical das palavras)
“O prazer é físico, independentemente do físico
que se tenha.”
O autor usou a
mesma palavra com significado diferentes. Ela aparece como adjetivo, no
primeiro momento, significando material, corpóreo, ligado aos sentidos, e como
substantivo no segundo, significando aspecto exterior, corpo, compleição. A
proximidade das palavras criou uma espécie de trocadilho.
17 – Comente o emprego do
adjetivo em destaque neste trecho: “desligar-se da competição, da áspera luta pela vida”.
O adjetivo áspero está ligado ao tato (o
que não é macio ou liso) e o autor o empregou num sentido abstrato: luta áspera significa luta dura.
Muito bem feito. Parabéns!!!
ResponderExcluirQual e o assunto ?
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