LITERATURA : FIM
DE CASO
José de Alencar
Aurélia
passava agora as noites solitárias.
Raras vezes aparecia Fernando, que
arranjava uma desculpa qualquer para justificar sua ausência. A menina que não
pensava em interroga-lo, também não contestava esses fúteis eventos. Ao contrário
buscava afastar da conversa o tema desagradável.
Conhecia a moça que Seixas retirava-lhe
seu amor; mas a altivez do coração não lhe consentia queixar-se. Além de que,
ela tinha sobre o amor ideias singulares, talvez inspiradas pela posição
especial em que se achara ao fazer-se moça.
Pensava ela que não tinha nenhum
direito a ser amada por Seixas e pois a afeição que lhe tivesse, muita ou
pouca, era graça que dele recebia.
Quando se lembrara que esse amor a
poupara à degradação de um casamento de convivência, nome com que se decora o
mercado matrimonial, tinha impulsos de adorar a Seixas, como seu Deus e
redentor.
Parecerá estranha essa paixão veemente,
rica de heroica dedicação, que entretanto assiste calma, quase impassível, ao
declínio do afeto com que lhe retribuía o homem amado, e se deixava abandonar,
sem preferir um queixume, nem fazer um esforço para reter a ventura que foge.
[...]
Em princípio a menina cuidou que Seixas
lhe voltara, e encheu-se de júbilo; mas não durou a ilusão. Logo percebeu que
não era o desejo de vê-la e estar com ela, o que levava o moço à sua casa; pois
os poucos instantes de demora passava-os inteiramente distraído e como
perplexo.
--- O senhor quer dizer-me alguma
coisa, mas receia afligir-me, observou a menina uma noite com angélica
resignação.
Fernando aproveitou a ocasião para
resolver a crise.
--- Meu voto mais ardente, Aurélia,
sonho dourado de minha única mulher que amei neste mundo. Mas a fatalidade que
pesa sobre mim, aniquilou todas as minhas esperanças; e eu seria um egoísta, se
prevalecendo-me de sua afeição, a associasse a uma existência obscura e
atribulada. A santidade de meu amor deu-me a força para resistir a seus
próprios impulsos. Disse uma vez à sua mãe, pressentindo essa cruel situação:
sou menos infeliz renunciando à sua mão, do que seria aceitando-a para fazê-la
desgraçada, e condená-la às humilhações da pobreza.
--- Essas já as conheço, respondeu
Aurélia com tênue ironia, e não me aterram; nasci com elas, e têm sido as
companheiras de minha vida.
--- Não me compreendeu, Aurélia;
referia-se a um partido vantajoso que decerto aparecerá, logo que esteja livre.
--- Pensa então que basta uma palavra
sua para restituir-me a liberdade? perguntou a moça com um sorriso.
--- Sei que a fatalidade que nos separa
não pode romper o elo que prende nossas almas, e que há de reuni-las em um
mundo melhor. Mas Deus nos deu uma missão neste mundo, e temos de cumpri-la.
--- A minha é amá-lo. A promessa que o
aflige, o senhor pode retirá-la tão espontaneamente como a fez. Nunca lhe pedi,
nem mesmo simples indulgência, para esta afeição; não lhe pedirei neste momento
em que ela o importuna.
--- Atenda, Aurélia! Lembre-se de sua
reputação. Que não diriam se recebesse a corte de um homem, sem esperança de
ligar-se a ele pelo casamento?
--- Diriam talvez que eu sacrificava a
uma amor desdenhado, um partido brilhante, o que é uma...
A moça cortou a ironia, retraindo-se.
--- Mas não; faltariam à verdade. Não
sacrifiquei nenhum partido; o sacrifício é a renúncia de um bem; o que eu fiz
foi defender a minha afeição. Sejamos francos: o senhor já não me ama; não o
culpo, e nem me queixo.
Seixas balbuciou umas desculpas e
despediu-se.
Aurélia demorou-se um instante na
rótula, como costumava, para acompanhar ao amante com a vista até o fim da rua.
Se Fernando não estivesse tão entregue à satisfação de haver readquirido sua
liberdade, teria ouvido no dobrar da esquina o eco de um soluço.
[...]
José de Alencar. Senhora. São Paulo:
Scipione, 1994. p.. 76-7.
1 – O autor afirma que
Aurélia tinha ideias singulares sobre o amor. Que atitude da personagem vem
confirmar essa afirmação? (Considere que Senhora, romance do qual foi retirado
o texto, foi publicado em 1875.)
Aurélia aceita o
afastamento de Fernando com resignação, facilitando-lhe, inclusive, o
rompimento do compromisso.
2 – Caracterize
psicologicamente as duas personagens.
Aurélia: jovem sensível, altiva. Tem por
Fernando um amor que chega à veneração.
Fernando Seixas: jovem egoísta e covarde
que busca pretextos para justificar sua falta de caráter.
3 – Aurélia diz adorar
Seixas como seu Deus e redentor. De que ele a estaria redimindo?
De um casamento
de conveniência, do qual ele a poupara.
4 – Analise o procedimento
de Seixas: seria correto afirmar que Aurélia estava idealizando a figura do
amado?
Sim. Ela fazia
dele um deus. Não queria admitir que era humano e cheio de defeitos.
5 – Releia o sexto
parágrafo. Observe o emprego das palavras Heroica
e impassível. Com que intenção o
autor as usou?
Com a intensão de mostrar uma heroína
impassível, que não deixa transparecer seus verdadeiros sentimentos.
6 – Releia a argumentação
usada por Seixas, para justificar o rompimento do compromisso. Por que ela não
convence?
Existe na fala de Seixas uma sinceridade
exagerada, que nos faz desconfiar dele. Além disso, ele exagera também na
descrição de sua situação econômica, sem explicar mais detalhadamente por que
iria “condená-la às humilhações da pobreza”.
7 – Observe a frase:
“--- Pensa então que basta uma palavra
sua para restituir-me a liberdade?”
a)
A que liberdade se refere a moça?
À liberdade que seu coração conseguiria caso deixasse de amar
Seixas.
b)
O que seria necessário para conseguir essa
liberdade, além da palavra de Seixas?
A decisão dela de esquecê-lo para sempre.
8 – O que levou Aurélia a se
resignar diante da decisão de Seixas?
Aurélia sabia de
sua posição social inferior, talvez se achasse indigna do rapaz; além disso, a
grandeza de seu caráter a impediria de obrigar Seixas a ficar com ela sem que
ele a amasse o suficiente. Seu amor não é egoísta. Considerar, também, a
situação da mulher na sociedade da época, em geral.
9 – Localize os adjetivos
usados pelo autor para caracterizar os seguintes substantivos: sonho, posição,
existência, ironia, partido, voto. O que você nota? Releia o texto, observando
o emprego dos adjetivos, de modo geral, e faça um comentário.
Sonho dourado; posição brilhante; existência obscura;
ironia tênue; partido brilhante; voto ardente. O aluno deverá notar que os adjetivos estão ligados a luz,
cor ou luminosidade. No conjunto, conferem ao texto a impressão de um jogo de
luzes: claro/escuro.
10 – “Conhecia a moça que
Seixas retira-lhe seu amor”; “Pensava ela que não tinha nenhum direito a ser
amada por Seixas”. O que você observa quanto à estruturação desses períodos?
Qual seria a razão dessa construção?
O aluno deverá
observar que há inversão (hipérbole) dos termos: a oração começa
pelo verbo, deslocando-se o sujeito para depois do verbo. Considerar que o
texto é do Século XIX; pelo que podemos perceber em outros textos da mesma
época, o hipérbato era um recurso usual.
11 – Há no texto o emprego
frequente de orações subordinadas substantivas. Observe em que passagens isso ocorre
e dê uma justificativa para essa opção do autor.
O autor usa frequentemente o discurso
indireto (“Conhecia a moça que...”; “Pensava ela que...”); consequentemente,
recorre às orações subordinadas.
12 – Refletindo sobre as
características do texto que você leu, procure traçar:
a)
O perfil do leitor a que ele se destina.
Centrando-se no ponto de vista da heroína, percebe-se que o texto
está dirigido a um público feminino.
b)
A condição da mulher na sociedade da época.
A mulher, principalmente as pertencentes às classes menos ricas,
tinha pouco poder de decisão sobre sua vida sentimental, ficando sujeita à
decisão dos homens. No caso específico de Aurélia, essa situação irá mudar a
partir do momento em que ela herdará uma fortuna.
certinho obg
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