Carlos Drummond de Andrade
O sol apareceu, como no primeiro dia da
Criação. E tudo tinha mesmo ar de primeiro dia da Criação, com o mundo a
emergir, hesitante, do caos. Três dias e três noites a tempestade esmigalhara
árvores, pedras, casas, caminhos, postes, viadutos, veículos, matara, ferira,
enlouquecera. Vistas do alto, as partes esplêndidas da cidade continuavam
esplêndidas, mas entre elas as marcas de destruição exibiam-se como chagas de
gigante Os homens entreolharam-se. Estavam salvos. Salvos e ilhados no alto do
Corcovado.
A estrada tinha acabado, o telefone
tinha acabado, a energia tinha acabado, e, por azar, não havia rádio de pilha
para pegar notícias. Decerto, lá embaixo providenciavam a recuperação das
estradas, mas quando se lembrariam deles, pequena fração humana junto da
estátua? Daí, lá tem bar, um bar dispõe de lataria e garrafas para um ano. Não,
um ano é demais, até uma hora é demais para eles que passaram meia semana
isolados e fustigados pelo aguaceiro entre céu e terra.
Os mais moços não quiseram esperar,
foram abrir caminho a golpes de imprudência. Mocidade pode mais o impossível do
que o possível – e descer naquelas condições era mesmo coisa de doido. Com
certeza chegaram a salvamento, como acontece aos doidos. Os que ficaram
sentiram inveja e despeito. A turma de trabalhadores não vinha remover as
barreiras caídas. O dia passou. A noite foi inquieta. Parentes lá embaixo
esperavam aflitos, se é que não tinham morrido.
A mais bela paisagem do mundo – dizem
os cartazes de turismo; eles também achavam que sim, mas como suportá-la na
manhã seguinte, se a vista aumentava a angústia, pela impossibilidade de
alcançar aqueles sítios, pura miragem?
--- E vem um helicóptero! – gritou
alguém, e veio mesmo, mas passou sem pousar; ia revezar a turma da torre da
Radiopatrulha, mais adiante. O pessoal do Cristo que se pegasse com Cristo, a
cuja sombra trabalha – pensariam talvez as pessoas que, embaixo, cuidavam de
tudo.
Dos dez que ganham a vida na montanha,
seis já tinham descido. Os quatro restantes, enervados, não tinham mais de que
conversar. O sol brilhando, a cidade se refazendo, eles presos ali, prisão sem
grade, à espera de serem lembrados. O pico virou ilha, tudo mais era oceano sem
navio.
Dois não aguentaram mais; despediram-se
como presidiários antes de tentar a fuga. Prometeram levar notícias dos que
ficaram: o gerente e o garçom do bar.
Estes, por acaso, moram no mesmo
subúrbio: Cachambi. Olham sempre na mesma direção, como se, por absoluto,
quisessem distinguir o aceno de mão longínqua. Isto os reúne mais; desfaz um
vínculo e cria outro, espontâneo. O gerente não é mais um velho patrão, o outro
não é mais empregado. Vivem uma só experiência, fora das leis de trabalho. E se
o garçom tentasse descer? Ainda é forte, pode tentar. “Você não tem obrigação
de me fazer companhia”. Mas ele não tenta, para não abandonar o outro: “Não
iria deixar o senhor sozinho”. O gerente nunca imaginara ouvir uma coisa
dessas. O próprio garçom ficou espantado depois que a disse. Era pra valer.
Amanhã ou depois serão recolhidos – sabemos nós, não eles. Tempo não se mede
pelo relógio, mas pelo vácuo de comunicação, pela expectativa sem segurança. E
nessa situação, insignificante para nós, ilimitada para eles, dois homens
descobrem-se um ao outro.
Carlos Drummond de
Andrade. Elenco de cronistas modernos.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. p. 248-250.
1 – Embora o narrador do
texto só venha a se colocar no último parágrafo (“sabemos nós”), durante todo o
texto sentimos que ele está muito próximo de nós, leitores. O que provoca essa
sensação?
O fato de fazer
reflexões sobre o fato narrado, como se estivesse trocando ideias com alguém.
2 – No início do texto, há
uma comparação. Baseado em que o autor faz essa comparação?
Ele compara a paisagem vista do alto do
Corcovado ao primeiro dia da criação devido aos caos: a forte tempestade
destruíra tudo.
3 – Observe que o autor faz
uma referência à Criação do mundo, de forma semelhante à que ocorre nos mitos
cosmogônicos. O que, no final da crônica, nos autorizaria a pensar numa nova
criação, também, do homem?
Um novo homem,
mais solidário, surge diante da adversidade enfrentada. Em tal situação, as
relações passam a ser mais verdadeiras e se estabelecem em torno de sentimentos
e não em torno de formalidades (como as que existem entre patrão e empregado).
4 – Veja: “O pessoal do
Cristo que se pegasse com Cristo”. Como você escreveria, de modo diferente,
este possível pensamento das pessoas?
Resposta pessoal
do aluno. Comentar a forma inusitada com que o autor escreve o texto.
5 – Em “descer naquelas
condições era mesmo coisa de doido. Com certeza chegaram a salvamento, como
acontece aos doidos”, você concorda com a afirmativa do autor?
Resposta pessoal do aluno. Considerar,
contudo, que, em geral, os mais ousados, ou mais arrojados, conseguem atingir
seus objetivos.
6 – Comente o aposto
utilizado pelo autor no segundo parágrafo.
“Pequena fração
humana” é a forma como o autor se refere às pessoas que se encontram ao pé de
Cristo. Foi uma forma interessante de designar os seres humanos e estabelecer
um contraste entre eles e a grandeza e magnitude do Corcovado.
7 – Nos textos que você leu
anteriormente, um novo universo se descortinava para as personagens. No caso
deste texto, o que mudou (“Vivem uma só experiência, fora das leis de
trabalho”) na vida do gerente e do garçom?
Para eles, também, um novo universo
abriu-se: Cada um passou a enxergar o outro de maneira diferente. Descobriram,
no outro, um novo universo e explorar.
8 – Que relações podem ser
estabelecidas entre os três textos desta unidade, com relação à passagem do
tempo?
“Tempo não se mede pelo relógio, mas
pelo vácuo de comunicação, pela expectativa sem segurança.”
9 – Prazer e dor estão
presentes no texto. Como essas sensações aparecem?
As personagens
sentem a dor do isolamento, uma vez que estão ilhadas; ao mesmo tempo os homens
redescobrem o prazer de conhecer um ao outro.
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