quarta-feira, 20 de setembro de 2017

CRÔNICA: DOIS NO CORCOVADO - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE- COM GABARITO


CRÔNICA: DOIS NO CORCOVADO
                      Carlos Drummond de Andrade

        O sol apareceu, como no primeiro dia da Criação. E tudo tinha mesmo ar de primeiro dia da Criação, com o mundo a emergir, hesitante, do caos. Três dias e três noites a tempestade esmigalhara árvores, pedras, casas, caminhos, postes, viadutos, veículos, matara, ferira, enlouquecera. Vistas do alto, as partes esplêndidas da cidade continuavam esplêndidas, mas entre elas as marcas de destruição exibiam-se como chagas de gigante Os homens entreolharam-se. Estavam salvos. Salvos e ilhados no alto do Corcovado.
        A estrada tinha acabado, o telefone tinha acabado, a energia tinha acabado, e, por azar, não havia rádio de pilha para pegar notícias. Decerto, lá embaixo providenciavam a recuperação das estradas, mas quando se lembrariam deles, pequena fração humana junto da estátua? Daí, lá tem bar, um bar dispõe de lataria e garrafas para um ano. Não, um ano é demais, até uma hora é demais para eles que passaram meia semana isolados e fustigados pelo aguaceiro entre céu e terra.
        Os mais moços não quiseram esperar, foram abrir caminho a golpes de imprudência. Mocidade pode mais o impossível do que o possível – e descer naquelas condições era mesmo coisa de doido. Com certeza chegaram a salvamento, como acontece aos doidos. Os que ficaram sentiram inveja e despeito. A turma de trabalhadores não vinha remover as barreiras caídas. O dia passou. A noite foi inquieta. Parentes lá embaixo esperavam aflitos, se é que não tinham morrido.
        A mais bela paisagem do mundo – dizem os cartazes de turismo; eles também achavam que sim, mas como suportá-la na manhã seguinte, se a vista aumentava a angústia, pela impossibilidade de alcançar aqueles sítios, pura miragem?
        --- E vem um helicóptero! – gritou alguém, e veio mesmo, mas passou sem pousar; ia revezar a turma da torre da Radiopatrulha, mais adiante. O pessoal do Cristo que se pegasse com Cristo, a cuja sombra trabalha – pensariam talvez as pessoas que, embaixo, cuidavam de tudo.
        Dos dez que ganham a vida na montanha, seis já tinham descido. Os quatro restantes, enervados, não tinham mais de que conversar. O sol brilhando, a cidade se refazendo, eles presos ali, prisão sem grade, à espera de serem lembrados. O pico virou ilha, tudo mais era oceano sem navio.
        Dois não aguentaram mais; despediram-se como presidiários antes de tentar a fuga. Prometeram levar notícias dos que ficaram: o gerente e o garçom do bar.
        Estes, por acaso, moram no mesmo subúrbio: Cachambi. Olham sempre na mesma direção, como se, por absoluto, quisessem distinguir o aceno de mão longínqua. Isto os reúne mais; desfaz um vínculo e cria outro, espontâneo. O gerente não é mais um velho patrão, o outro não é mais empregado. Vivem uma só experiência, fora das leis de trabalho. E se o garçom tentasse descer? Ainda é forte, pode tentar. “Você não tem obrigação de me fazer companhia”. Mas ele não tenta, para não abandonar o outro: “Não iria deixar o senhor sozinho”. O gerente nunca imaginara ouvir uma coisa dessas. O próprio garçom ficou espantado depois que a disse. Era pra valer. Amanhã ou depois serão recolhidos – sabemos nós, não eles. Tempo não se mede pelo relógio, mas pelo vácuo de comunicação, pela expectativa sem segurança. E nessa situação, insignificante para nós, ilimitada para eles, dois homens descobrem-se um ao outro.

                       Carlos Drummond de Andrade. Elenco de cronistas modernos.
                                     Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. p. 248-250.

1 – Embora o narrador do texto só venha a se colocar no último parágrafo (“sabemos nós”), durante todo o texto sentimos que ele está muito próximo de nós, leitores. O que provoca essa sensação?
       O fato de fazer reflexões sobre o fato narrado, como se estivesse trocando ideias com alguém.

2 – No início do texto, há uma comparação. Baseado em que o autor faz essa comparação?
       Ele compara a paisagem vista do alto do Corcovado ao primeiro dia da criação devido aos caos: a forte tempestade destruíra tudo.

3 – Observe que o autor faz uma referência à Criação do mundo, de forma semelhante à que ocorre nos mitos cosmogônicos. O que, no final da crônica, nos autorizaria a pensar numa nova criação, também, do homem?
      Um novo homem, mais solidário, surge diante da adversidade enfrentada. Em tal situação, as relações passam a ser mais verdadeiras e se estabelecem em torno de sentimentos e não em torno de formalidades (como as que existem entre patrão e empregado).

4 – Veja: “O pessoal do Cristo que se pegasse com Cristo”. Como você escreveria, de modo diferente, este possível pensamento das pessoas?
       Resposta pessoal do aluno. Comentar a forma inusitada com que o autor escreve o texto.

5 – Em “descer naquelas condições era mesmo coisa de doido. Com certeza chegaram a salvamento, como acontece aos doidos”, você concorda com a afirmativa do autor?
       Resposta pessoal do aluno. Considerar, contudo, que, em geral, os mais ousados, ou mais arrojados, conseguem atingir seus objetivos.

6 – Comente o aposto utilizado pelo autor no segundo parágrafo.
       “Pequena fração humana” é a forma como o autor se refere às pessoas que se encontram ao pé de Cristo. Foi uma forma interessante de designar os seres humanos e estabelecer um contraste entre eles e a grandeza e magnitude do Corcovado.

7 – Nos textos que você leu anteriormente, um novo universo se descortinava para as personagens. No caso deste texto, o que mudou (“Vivem uma só experiência, fora das leis de trabalho”) na vida do gerente e do garçom?
       Para eles, também, um novo universo abriu-se: Cada um passou a enxergar o outro de maneira diferente. Descobriram, no outro, um novo universo e explorar.

8 – Que relações podem ser estabelecidas entre os três textos desta unidade, com relação à passagem do tempo?
       “Tempo não se mede pelo relógio, mas pelo vácuo de comunicação, pela expectativa sem segurança.”

9 – Prazer e dor estão presentes no texto. Como essas sensações aparecem?
       As personagens sentem a dor do isolamento, uma vez que estão ilhadas; ao mesmo tempo os homens redescobrem o prazer de conhecer um ao outro.




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