segunda-feira, 19 de novembro de 2018

CONTO: EU ESTAVA ALI DEITADO - LUIZ VILELA - COM QUESTÕES GABARITADAS

Conto: EU ESTAVA ALI DEITADO
               
   LUIZ VILELA

        Eu estava ali deitado olhando através da vidraça as roseiras no jardim fustigadas pelo vento que zunia lá fora e nas venezianas do meu quarto e de repente cessava e tudo ficava tão quieto tão triste e de repente recomeçava e as roseiras frágeis e assustadas irrompiam na vidraça e eu estava ali o tempo todo olhando estava em minha cama com a minha blusa de lã as mãos enfiadas nos bolsos os braços colados ao corpo as pernas juntas estava de sapatos Mamãe não gostava que eu deitasse de sapatos deixe de preguiça menino! mas dessa vez eu estava deitado de sapatos e ela viu e não falou nada ela sentou-se na beirada da cama e pousou a mão em meu joelho e falou você não quer mesmo almoçar?
        Eu falei que não quer comer nada? eu falei que não nem uma carninha assada daquelas que você gosta? com uma cebolinha de folha lá da horta um limãozinho uma pimentinha? ela sorriu e deu uma palmadinha no meu joelho e eu também sorri mas falei que não estava com a menor fome nem uma coisinha meu filho? uma coisinha só? eu falei que não e então ela ficou me olhando e então ela saiu do quarto eu estava de sapatos e ela não falou nada ela não falaria nada meus sapatos engraxados bonitos brilhantes
        Ele não quer comer nada? escutei papai perguntando e mamãe decerto só balançou a cabeça porque não escutei ela responder e agora eles estavam comendo em silêncio os dois sozinhos lá na mesa em silêncio o barulho dos garfos a casa quieta e fria e triste o vento zunindo lá fora e nas venezianas de meu quarto.
        — Você precisa compreender isso, Carlos
        — Não posso, Miriam
        — Não daria certo
        — Não daria certo?
        — Nossos temperamentos não combinam
        — Não é verdade
        — Assim será melhor para nós dois
        Não Miriam não é verdade Miriam não é certo Miriam não pode Miriam não pode não pode! ó meu Deus não pode.
        Papai estava parado à porta pensei que você estava dormindo ele falou eu sorri que vento hem! ele falou e eu olhei para a vidraça e lá estavam as roseiras frágeis e assustadas, fustigadas pelo vento esse mês de junho é terrível ele falou ele estava parado no meio do quarto estava de paletó e gravata de pulôver esfregava as mãos eu vou lá no Jorge você não quer ir também? ele ficou olhando pra mim esperando não papai dar uma volta? não obrigado você vai virar sorvete aí dentro ele brincou e eu ri e ele riu e então ficou sério de novo esfregava as mãos fiquei com pena dele eu sabia que ele queria me dizer alguma coisa sabia quase o que ele queria me dizer mamãe devia ter dito a ele Artur chama o Carlos para dar uma volta e ele dissera isso mas agora era diferente era ele mesmo que queria me dizer alguma coisa e estava atrapalhado ficava atrapalhado quando queria conversar essas coisas com um filho e então esfregava as mãos não era por causa do frio Carlos eu sei o que você está sentindo ele falou Eu sei como é muito aborrecido mesmo mas há coisas piores sabe? eu olhei para ele e então ele abaixou a cabeça e de novo estava atrapalhado e de novo eu fiquei com pena dele eu sei que você gosta muito dela eu sei eu sei que isso é muito aborrecido mas ele olhou pra mim não se preocupe papai eu falei não precisa se preocupar não é nada eu sei mas você não almoçou eu estava sem fome pois é e então nós dois ficamos calados ele tirou o relógio do bolso e olhou as horas você não quer ir mesmo no Jorge? ele perguntou e eu falei que não então ele saiu do quarto escutei ele abrindo o portão e depois os passos dele na calçada o vento zunia lá fora eu estava olhando para os meus sapatos ela gostava deles assim engraxados bonitos brilhantes você é tão cuidadoso Carlos como gosto de você não pode calcular o tanto que eu gosto de você se te acontecesse alguma coisa se te acontecesse alguma coisa eu não sei o que eu faria mas não vai acontecer nada bem vai? Não vai não pode se te acontecesse alguma coisa acho que eu morreria eu gosto demais de você demais, demais.
        Fechei os olhos e contei até quinhentos e recordei os nomes de todas as capitais do Brasil e da Europa e recordei os nomes das dezenas de rios e dezenas de montanhas e deitei de bruços e deitei do lado direito deitei do lado esquerdo e deitei de bruços outra vez e pus o travesseiro em cima da cabeça e pus o travesseiro de baixo da cabeça e apertei a cabeça contra a parede e apertei mais ainda a cabeça contra a parede que ela doeu e então virei de costas outra vez e enfiei as mãos nos bolsos colei os braços ao corpo juntei as pernas abri os olhos e estava de novo olhando através da vidraça as roseiras frágeis e assustadas fustigadas pelo vento que zunia lá fora e nas venezianas de meu quarto.
                                                        (De no bar. Rio, Bloch, 1968.)
Glossário:
Fustigado = açoitado, castigado, maltratado.
Irromper = entrar com ímpeto, com violência, invadir subitamente.
Veneziana = persiana, janela com lâminas que formam frestas e escurecem o ambiente.
Zunir = movimentar-se produzindo ruído agudo, zumbir.

Entendendo o conto:
01 – O conto que você leu está centrado em uma personagem.
a)   Quem? Onde ela se encontra?
Carlos está deitado na cama, em seu quarto.

b)   Além do espaço ocupado por ela, que outros espaços são mencionados? O que o leitor sabe sobre eles?
O jardim, onde o vento zune fustigando roseiras “frágeis e assustadas”, e o cômodo onde os pais de Carlos almoçam.

c)   Quais são as ações realizadas por essa personagem ao longo da narrativa?
Carlos apenas se revira na cama, olha para os próprios sapatos ou para a vidraça e troca poucas palavras com os pais.

d)   Para você, qual a duração cronológica aproximada das ações?
Resposta pessoal do aluno.

02 – O sentimento predominante no texto é o de tristeza.
a)   Qual é o motivo do abatimento de Carlos?
Míriam, a namorada (ou noiva) de Carlos, decidiu separar-se dele.

b)   Carlos relembra dois momentos distintos que vivenciou com Míriam. Essas lembranças o ajudam a compreender sua situação atual? Explique.
Não, elas apenas justificam seu inconformismo, pois revelam uma contradição. A primeira lembrança mostra uma Míriam decidida e fria, que justifica vagamente a separação. A segunda, provavelmente mais antiga, mostra uma Míriam apaixonada (“se te acontecesse alguma coisa acho que eu morreria [...]”).

03 – Carlos não está em sintonia com as pessoas que o cercam, mas está em sintonia com o espaço, que, de certa forma, reproduz seu estado de espírito.
a)   Como está a casa de Carlos?
Quieta, fria e triste.

b)   Como está o tempo na tarde retratada?
Faz frio e venta.

04 – No conto predomina o espaço físico ou psicológico? Explique sua resposta.
      Predomina o espaço psicológico: os pensamentos, as emoções e as lembranças de Carlos são o núcleo do texto.

05 – A personagem principal do conto, presa em sua dor, desenvolve pensamentos obsessivos. Qual é a estratégia utilizada no texto para mostrar ao leitor que Carlos não consegue se libertar de certas ideias e imagens?
      A repetição intencional de algumas expressões, que mostra o pensamento de Carlos voltando sempre aos mesmos pontos.

06 – No último parágrafo do conto, o narrador-personagem relata os artifícios que utiliza para tentar desviar seu pensamento da separação.
a)   Quais são esses artifícios?
Ele conta até quinhentos, rememora nomes de capitais, rios, montanhas, pressiona a cabeça contra a parede.

b)   Eles se mostram úteis?
Não.

c)   Tentar esquecer uma decepção amorosa e não conseguir é uma experiência comum, com a qual praticamente todos os leitores conseguem se identificar. Que outras situações retratadas no texto podem remeter o leitor a vivências conhecidas?
A falta de apetite causada por tristeza; a mãe se preocupa, querendo que o filho coma; a dificuldade do pai em falar com o filho sobre sentimentos.




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