Conto: EU ESTAVA ALI DEITADO
Eu estava ali deitado olhando através
da vidraça as roseiras no jardim fustigadas pelo vento que zunia lá fora e nas
venezianas do meu quarto e de repente cessava e tudo ficava tão quieto tão
triste e de repente recomeçava e as roseiras frágeis e assustadas irrompiam na
vidraça e eu estava ali o tempo todo olhando estava em minha cama com a minha
blusa de lã as mãos enfiadas nos bolsos os braços colados ao corpo as pernas
juntas estava de sapatos Mamãe não gostava que eu deitasse de sapatos deixe de
preguiça menino! mas dessa vez eu estava deitado de sapatos e ela viu e não
falou nada ela sentou-se na beirada da cama e pousou a mão em meu joelho e
falou você não quer mesmo almoçar?
Eu falei que não quer comer nada? eu
falei que não nem uma carninha assada daquelas que você gosta? com uma
cebolinha de folha lá da horta um limãozinho uma pimentinha? ela sorriu e deu
uma palmadinha no meu joelho e eu também sorri mas falei que não estava com a
menor fome nem uma coisinha meu filho? uma coisinha só? eu falei que não e
então ela ficou me olhando e então ela saiu do quarto eu estava de sapatos e
ela não falou nada ela não falaria nada meus sapatos engraxados bonitos
brilhantes
Ele não quer comer nada? escutei papai
perguntando e mamãe decerto só balançou a cabeça porque não escutei ela
responder e agora eles estavam comendo em silêncio os dois sozinhos lá na mesa
em silêncio o barulho dos garfos a casa quieta e fria e triste o vento zunindo
lá fora e nas venezianas de meu quarto.
— Você precisa compreender isso, Carlos
— Não posso, Miriam
— Não daria certo
— Não daria certo?
— Nossos temperamentos não combinam
— Não é verdade
— Assim será melhor para nós dois
Não Miriam não é verdade Miriam não é
certo Miriam não pode Miriam não pode não pode! ó meu Deus não pode.
Papai estava parado à porta pensei que
você estava dormindo ele falou eu sorri que vento hem! ele falou e eu olhei
para a vidraça e lá estavam as roseiras frágeis e assustadas, fustigadas pelo
vento esse mês de junho é terrível ele falou ele estava parado no meio do
quarto estava de paletó e gravata de pulôver esfregava as mãos eu vou lá no
Jorge você não quer ir também? ele ficou olhando pra mim esperando não papai
dar uma volta? não obrigado você vai virar sorvete aí dentro ele brincou e eu
ri e ele riu e então ficou sério de novo esfregava as mãos fiquei com pena dele
eu sabia que ele queria me dizer alguma coisa sabia quase o que ele queria me
dizer mamãe devia ter dito a ele Artur chama o Carlos para dar uma volta e ele
dissera isso mas agora era diferente era ele mesmo que queria me dizer alguma
coisa e estava atrapalhado ficava atrapalhado quando queria conversar essas
coisas com um filho e então esfregava as mãos não era por causa do frio Carlos
eu sei o que você está sentindo ele falou Eu sei como é muito aborrecido mesmo
mas há coisas piores sabe? eu olhei para ele e então ele abaixou a cabeça e de
novo estava atrapalhado e de novo eu fiquei com pena dele eu sei que você gosta
muito dela eu sei eu sei que isso é muito aborrecido mas ele olhou pra mim não
se preocupe papai eu falei não precisa se preocupar não é nada eu sei mas você
não almoçou eu estava sem fome pois é e então nós dois ficamos calados ele
tirou o relógio do bolso e olhou as horas você não quer ir mesmo no Jorge? ele
perguntou e eu falei que não então ele saiu do quarto escutei ele abrindo o
portão e depois os passos dele na calçada o vento zunia lá fora eu estava
olhando para os meus sapatos ela gostava deles assim engraxados bonitos
brilhantes você é tão cuidadoso Carlos como gosto de você não pode calcular o
tanto que eu gosto de você se te acontecesse alguma coisa se te acontecesse
alguma coisa eu não sei o que eu faria mas não vai acontecer nada bem vai? Não
vai não pode se te acontecesse alguma coisa acho que eu morreria eu gosto
demais de você demais, demais.
Fechei os olhos e contei até quinhentos
e recordei os nomes de todas as capitais do Brasil e da Europa e recordei os
nomes das dezenas de rios e dezenas de montanhas e deitei de bruços e deitei do
lado direito deitei do lado esquerdo e deitei de bruços outra vez e pus o
travesseiro em cima da cabeça e pus o travesseiro de baixo da cabeça e apertei
a cabeça contra a parede e apertei mais ainda a cabeça contra a parede que ela
doeu e então virei de costas outra vez e enfiei as mãos nos bolsos colei os
braços ao corpo juntei as pernas abri os olhos e estava de novo olhando através
da vidraça as roseiras frágeis e assustadas fustigadas pelo vento que zunia lá
fora e nas venezianas de meu quarto.
(De no bar. Rio, Bloch, 1968.)
Glossário:
Fustigado = açoitado,
castigado, maltratado.
Irromper = entrar com
ímpeto, com violência, invadir subitamente.
Veneziana = persiana, janela
com lâminas que formam frestas e escurecem o ambiente.
Zunir = movimentar-se
produzindo ruído agudo, zumbir.
Entendendo o conto:
01 – O conto que você leu
está centrado em uma personagem.
a)
Quem? Onde ela se encontra?
Carlos está deitado na cama, em seu quarto.
b)
Além do espaço ocupado por ela, que outros
espaços são mencionados? O que o leitor sabe sobre eles?
O jardim, onde o vento zune fustigando roseiras “frágeis e
assustadas”, e o cômodo onde os pais de Carlos almoçam.
c)
Quais são as ações realizadas por essa
personagem ao longo da narrativa?
Carlos apenas se revira na cama, olha para os próprios sapatos ou
para a vidraça e troca poucas palavras com os pais.
d)
Para você, qual a duração cronológica
aproximada das ações?
Resposta pessoal do aluno.
02 – O sentimento
predominante no texto é o de tristeza.
a)
Qual é o motivo do abatimento de Carlos?
Míriam, a namorada (ou noiva) de Carlos, decidiu separar-se dele.
b)
Carlos relembra dois momentos distintos que
vivenciou com Míriam. Essas lembranças o ajudam a compreender sua situação
atual? Explique.
Não, elas apenas justificam seu inconformismo, pois revelam uma
contradição. A primeira lembrança mostra uma Míriam decidida e fria, que
justifica vagamente a separação. A segunda, provavelmente mais antiga, mostra
uma Míriam apaixonada (“se te acontecesse alguma coisa acho que eu morreria
[...]”).
03 – Carlos não está em
sintonia com as pessoas que o cercam, mas está em sintonia com o espaço, que,
de certa forma, reproduz seu estado de espírito.
a)
Como está a casa de Carlos?
Quieta, fria e triste.
b)
Como está o tempo na tarde retratada?
Faz frio e venta.
04 – No conto predomina o
espaço físico ou psicológico? Explique sua resposta.
Predomina o
espaço psicológico: os pensamentos, as emoções e as lembranças de Carlos são o
núcleo do texto.
05 – A personagem principal
do conto, presa em sua dor, desenvolve pensamentos obsessivos. Qual é a
estratégia utilizada no texto para mostrar ao leitor que Carlos não consegue se
libertar de certas ideias e imagens?
A repetição
intencional de algumas expressões, que mostra o pensamento de Carlos voltando
sempre aos mesmos pontos.
06 – No último parágrafo do
conto, o narrador-personagem relata os artifícios que utiliza para tentar
desviar seu pensamento da separação.
a)
Quais são esses artifícios?
Ele conta até quinhentos, rememora nomes de capitais, rios,
montanhas, pressiona a cabeça contra a parede.
b)
Eles se mostram úteis?
Não.
c)
Tentar esquecer uma decepção amorosa e não
conseguir é uma experiência comum, com a qual praticamente todos os leitores
conseguem se identificar. Que outras situações retratadas no texto podem
remeter o leitor a vivências conhecidas?
A falta de apetite causada por tristeza; a mãe se preocupa, querendo
que o filho coma; a dificuldade do pai em falar com o filho sobre sentimentos.
Valeu
ResponderExcluirFortaleceu
ResponderExcluirAjudou muito obrigada
ResponderExcluirObrigadão ,😊😊
ResponderExcluirObg
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