sexta-feira, 16 de novembro de 2018

CRÔNICA: A PIPOCA - LYGIA BOJUNGA NUNES - COM QUESTÕES GABARITADAS

Crônica: A PIPOCA  - (Lygia Bojunga Nunes)


        Falaram pouco até chegar no morro.
        O caminho que subiam era estreito. O Tuca foi na frente. Quase correndo. Feito querendo escapar da discussão que crescia lá dentro dele: um Tuca dizendo que amigo-que-é-amigo não tá ligando se a gente mora aqui ou lá; o outro Tuca não acreditando e cada vez mais arrependido da ideia de comer pipoca.
        E atrás dos dois lá ia o Rodrigo, querendo assobiar para disfarçar. Querendo mas não podendo: já estava botando a alma pela boca de tanto subir.
        Quantas vezes, com a luz de tudo que é barraco se espalhando pelo morro, o Rodrigo tinha escutado dizer:
        Que bonito que é favela de noite! As luzes parecem estrelas.
        E o Rodrigo ia olhando cada barraco, cada criança, cada bicho, vira-lata, porco, rato, olhando tudo que passava: bonito? estrela? cadê?!
        Quando chegaram no alto o Rodrigo estava sem fôlego. O Tuca parou:
        — Eu moro aqui. — Entrou.
        Só os irmãos pequenos estavam em casa. Quatro. O Tuca foi apresentando cada um. Os grandes ainda estavam “lá embaixo se virando”; e a irmã mais velha tinha saído.
        — Mas e a pipoca? — o Tuca quis logo saber — ela esqueceu que ia fazer pipoca pra gente?
        — Não, — um irmão explicou — ela já fez. Mas ficou com medo da gente comer tudo antes de você chegar e então guardou ali — espichou o queixo pra uma porta que estava fechada. Fez cara de sabido e piscou o olho: — A chave tá na vizinha...
        Enquanto o garoto falava o Rodrigo ia olhando pro barraco: dois cômodos pequenos, um puxado lá fora pro fogão e pro tanque, e a tal porta fechada que o garoto tinha mostrado e que devia ser um outro quarto; ou quem sabe o banheiro? Juntando tudo o tamanho era menor que a cozinha da casa dele; e eram onze morando ali! e mais a mãe?!
        Uma vez o Tuca tinha contado pro Rodrigo:
       “O meu pai era marinheiro. Só aparecia em casa de vez em quando. Um dia não apareceu mais.”
       “Ele morreu?”
       “Ninguém sabe.”
       “E a tua mãe?”
       “Ela mora lá com a gente. Mas quem faz de mãe lá em casa é a minha irmã mais velha.”
       “Por quê?”
       “É que a minha mãe... é doente.”
       “O que ela tem?”
       “Tem lá umas coisas. Mas a minha irmã é a pessoa mais legal que eu já vi até hoje: aguenta qualquer barra.”
        Lá pelas tantas o Tuca quis acabar com a discussão que continuava dentro dele:
        — Vam’embora, Rodrigo. Você agora já sabe onde eu moro e se quiser aparecer a casa é sua.
        — Mas e a pipoca? — o Rodrigo perguntou.
        Não precisou mais nada: a criançada desatou a falar na pipoca, a querer a pipoca, a pedir a pipoca.
       Uma barulhada! O Tuca ficou olhando pro chão. De repente saiu correndo. Pegou a chave na casa da vizinha. Abriu a porta que estava trancada.
        Era um quarto com uma cama, um armário velho de porta escancarada e uns colchões no chão.
        Tinha uma mulher jogada num colchão.
        Tinha uma panela virada no colchão.
        Tinha pipoca espalhada em tudo.
        A criançada logo invadiu o quarto e começou a catar pipoca do chão.
        Ninguém ligou pra mulher querendo se levantar do colchão.
        O Rodrigo estava de olho arregalado.
        O Tuca olhou pra ele. Olhou pra mulher. Olhou pras pipocas sumindo.
       — Pronto, — ele resolveu — você não vai comer pipoca do chão, vai? então não tem mais nada pra gente fazer aqui. — Empurrou o Rodrigo pra fora do barraco. — Agora você já sabe o caminho. Desce por lá. — Apontou.
        O Rodrigo estava atarantado:
        — Lá onde?
        — Vem! eu te mostro. — E desceu correndo na frente. Num instantinho chegou na curva que ele tinha mostrado. Respirou fundo. Lembrou do perfume do talco. Olhou pro lado: estava um lameiro medonho naquele pedaço do morro: tinha chovido forte na véspera e uma mistura de água e de lixo tinha empoçado ali.
        O Rodrigo chegou de língua de fora: o Tuca tinha descido tão depressa que mais parecia um cabrito.
        — Pô cara! — ele reclamou — assim não dá. Você quase me mata nessa des...
       Mas o Tuca já tinha virado pra ele de cara feia e já estava gritando:
        — Não precisa me dizer! Eu sei muito bem que não dá. Como é que vai dar pra gente ser amigo com você cheirando a talco...
        — Eu?!
        — ... e eu aqui nesse lixo todo. Não precisa me dizer, tá bem? eu sei, EU SEI, que não dá. Você que ainda não sabe de tudo. Quer saber mais, quer? quer? — Pegou o Rodrigo pela camisa. — Quando a minha irmã tranca minha mãe daquele jeito é porque a minha mãe já tá tão bêbada que faz qualquer besteira pra continuar bebendo mais. — Começou a sacudir o Rodrigo. — Você olhou bem pra cara dela, olhou? pena que ela não estava chorando e gritando pra você ver. Ela chora e grita (feito neném com fome) pedindo cachaça por favor.
        — Me solta Tuca!
        — Solto! solto sim. Mas antes você vai ficar igual a mim. — E botou toda a força que tinha pra derrubar o Rodrigo no lameiro.
       [...] E quando sentiu os pés se encharcando se atirou pro lameiro levando o Rodrigo junto. Aí largou.
        O Rodrigo levantou num pulo. Não precisava tanta pressa: ele já estava imundo, pingando lixo.
       O Tuca levantou devagar. E de cabeça baixa foi subindo o morro de volta pra casa.

(Lygia Bojunga Nunes. Tchau. 3. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1987. p. 38-42.)
Entendendo o texto:

01 – Tuca e Rodrigo são dois amigos da escola. Rodrigo, que mora num luxuoso apartamento, vai conhecer o barraco do amigo, numa favela. No 2o parágrafo do texto, o narrador se refere ao nervosismo de Tuca.
a)   Que comportamento do menino mostra seu nervosismo?
Ele ir à frente, quase correndo.

b)   Por que, segundo o texto, havia dois Tucas dentro dele?
Pois dentro dele ficou meio dividido, um arrependido pela ideia de ir comer pipoca e o outro de que amigo que é amigo não liga pra essas coisas.

02 – Releia o 5° parágrafo do texto. Nele é descrito tudo o que Rodrigo vê.
a)   Pela mistura dos elementos enumera­dos, o que se pode dizer das condições de higiene daquele lugar?
Era péssima, pois era tudo desorganizado.

b)   Por que se pode dizer que Rodrigo, até aquele dia, tinha sido ingênuo em relação ao morro?
Pois ele já tinha ideia que na favela seria tudo desorganizado, pois já que na casa dele era tudo arrumado.

03 – Com a frase "Uma vez o Tuca tinha contado pro Rodrigo", o narrador introduz o flash-back narrati­vo, isto é, conta fatos que ocorreram no passado. Assim, ficamos sabendo que o pai de Tuca havia sumido e que a mãe dele era doente.
a)   Que tipo de problema tem a mãe de Tuca?
A mãe de Tuca era alcoólatra.

b)   Que diferença há entre Tuca dizer "ela mora com a gente" e "a gente mora com ela"?
“Ela mora com a gente” quer dizer que os irmãos que sustentam ela (mãe), e “Agente mora com ela”, estaria querendo dizer que ela sustentava a família.

c)   Quem sustenta a casa? Retire do texto um trecho que justifique sua resposta.
A irmã de Tuca.

d)   Quem cuida da organização da casa?
A irmã da Tuca.

04 – Rodrigo é convidado para ir comer pipoca na casa de Tuca; mas a pipoca é apenas uma desculpa para eles se conhecerem melhor e estreitarem a amizade.
a)   Por que Tuca, em casa, fica nervoso e deseja descer o morro antes mesmo de comerem a pipoca?
Porque ele estava com vergonha da mãe dele.

b)   Que sentimento Tuca revela sentir no momento em que abre a porta do quarto?
Desprezo e uma vergonha.

05 – Tuca desce o morro em disparada. Em certo momento, Rodrigo diz: "assim não dá. Você quase me mata nessa des...".
a)   Provavelmente, do que Rodrigo iria reclamar? Por quê?
Da descida, porque ele estava correndo demais.

b)   O que Tuca supôs que Rodrigo estivesse pensando sobre a Situação?
Ele pensou que Rodrigo já sabia que não iria ter pipoca.

c)   Por esse episódio, pode-se dizer que a discussão que existia dentro de Tuca, no começo do texto, continua agora? Por quê?
Porque ele não queria perder a amizade com o Rodrigo.

06 – No final do texto, Tuca joga Rodrigo na lama. Um pouco antes, sentira um cheiro de talco no amigo.
a)   A que se associa o talco?
Associa-se a limpeza.

b)   A que se associa a lama?
A lama se associa a sujeira.

c)   Se Tuca vive num ambiente de lama e Rodrigo cheira a talco, por que, na sua opinião, Tuca teria forçado Rodrigo a cair na lama?
Para ele sentir como é viver em meio a “pobreza”, em meio a sujeira.

07 – “O Tuca levantou devagar. E de cabeça baixa foi subindo o morro de volta pra casa."
a)   O que as expressões devagar e de cabeça baixa revelam quanto ao estado emocional de Tuca?
Tuca ficou triste quanto a sua vida, pois o amigo tinha uma vida “melhor”, além de ficar com vergonha.

b)   O que você acha que ele devia estar pensando, enquanto subia o morro?
Que a vida de Rodrigo era “melhor” do que a vida dele.

c)   E Rodrigo, enquanto voltava para seu apartamento?
Ele certamente pensava em logo se limpar e pensava na sujeira que ele presenciou, além de pensar, também, que foi rude com o “amigo”.

08 – No contato com Tuca, Rodrigo — um garoto até certo ponto ingênuo — aprendeu muitas coisas.
a)   Em algum momento, Rodrigo manifestou preconceito em relação à pobreza de Tuca? Se não, o que sentiu?
Não, ele não se manifestou oralmente, mais sim interiormente.

b)   Você acha que, depois dessa experiência, os dois vão continuar a ser amigos?
Resposta pessoal do aluno.



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