segunda-feira, 2 de julho de 2018

CONTO: A FLOR DE VIDRO - MURILO RUBIÃO - COM INTERPRETAÇÃO/GABARITO

Conto: A FLOR DE VIDRO
          Murilo Rubião
 Fonte da imagem  https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhTNa5WexwXaBSvd2klW1oe3szVUR0_4-C2-CVkrVFuRC62Ieb1zGbHrfVNCClaR8Zjk3hTyQq2Mo8Njgl7q8cOsZkUHS9SfxqOCS7nVXWHJ4iZCl0fJ6OwOEgMKm8Z0OGS8LTEGeKGxQQ/s320/FLOR+DE+VIDRO.jpg

        “E haverá um dia conhecido do Senhor que não será dia nem noite, e na tarde desse dia aparecerá a luz.” – Zacarias, XIV, 7.
        Da flor de vidro restava somente uma reminiscência amarga. Mas havia a saudade de Marialice, cujos movimentos se insinuavam pelos campos — às vezes verdes, também cinzentos. O sorriso dela brincava na face tosca das mulheres dos colonos, escorria pelo verniz dos móveis, desprendia-se das paredes alvas do casarão. Acompanhava o trem de ferro que ele via passar, todas as tardes, da sede da fazenda. A máquina soltava fagulhas e o apito gritava: Marialice, Marialice, Marialice. A última nota era angustiante.
        — Marialice!
        Foi a velha empregada que gritou e Eronides ficou sem saber se o nome brotara da garganta da Rosária ou do seu pensamento.
        — Sim, ela vai chegar. Ela vai chegar!
        Uma realidade inesperada sacudiu-lhe o corpo com violência. Afobado, colocou uma venda negra na vista inutilizada e passou a navalha no resto do cabelo que lhe rodeava a cabeça.
        Lançou-se pela escadaria abaixo, empurrado por uma alegria desvairada. Correu entre aleias de eucaliptos, atingindo a várzea.
        Marialice saltou rápida do vagão e abraçou-o demoradamente:
        — Oh, meu general russo! Como está lindo!
        Não envelhecera tanto como ele. Os seus trinta anos, ágeis e lépidos, davam a impressão de vinte e dois — sem vaidade, sem ânsia de juventude.
        Antes que chegassem a casa, apertou-a nos braços, beijando-a por longo tempo. Ela não opôs resistência e Eronides compreendeu que Marialice viera para sempre.
        Horas depois (as paredes conservavam a umidade dos beijos deles), indagou o que fizera na sua ausência.
        Preferiu responder à sua maneira:
        — Ontem pensei muito em você.
        A noite surpreendeu-os sorrindo. Os corpos unidos, quis falar em Dagô, mas se convenceu de que não houvera outros homens. Nem antes nem depois.
        As moscas de todas as noites, que sempre velaram a sua insônia, não vieram.
        Acordou cedo, vagando ainda nos limites do sonho. Olhou para o lado e, não vendo Marialice, tentou reencetar o sono interrompido. Pelo seu corpo, porém, perpassava uma seiva nova. Jogou-se fora da cama e encontrou, no espelho, os cabelos antigos. Brilhavam lhe os olhos e a venda negra desaparecera.
        Ao abrir a porta, deu com Marialice:
        — Seu preguiçoso, esqueceu-se do nosso passeio?
        Contemplou-a maravilhado, vendo-a jovem e fresca. Dezoito anos rondavam-lhe o corpo esbelto. Agarrou-a com sofreguidão, desejando lembrar-lhe a noite anterior. Silenciou-o a convicção de que doze anos tinham-se esvanecido.
        O roteiro era antigo, mas algo de novo irrompia pelas suas faces. A manhã mal despontara e o orvalho passava do capim para os seus pés. Os braços dele rodeavam os ombros da namorada e, amiúde, interrompia a caminhada para beijar-lhe os cabelos. Ao se aproximarem da mata — termo de todos os seus passeios — o sol brilhava intenso. Largou-a na orla do cerrado e penetrou no bosque. Exasperada, ela acompanhava-o com dificuldade:
        — Bruto! Ó bruto! Me espera!
        Rindo, sem voltar-se, os ramos arranhando o seu rosto, Eronides desapareceu por entre as árvores. Ouvia, a espaços, os gritos dela:
        — Tomara que um galho lhe fure os olhos, diabo!
        De lá, trouxe-lhe uma flor azul.
        Marialice chorava. Aos poucos acalmou-se, aceitou a flor e lhe deu um beijo rápido. Eronides avançou para abraçá-la, mas ela escapuliu, correndo pelo campo afora.
        Mais adiante tropeçou e caiu. Ele segurou-a no chão, enquanto Marialice resistia, puxando-lhe os cabelos.
        A paz não tardou a retornar, porque neles o amor se nutria da luta e do desespero.
        Os passeios sucediam-se. Mudavam o horário e acabavam na mata. Às vezes, pensando ter divisado a flor de vidro no alto de uma árvore, comprimia Marialice nos braços. Ela assustava-se, olhava-o silenciosa, à espera de uma explicação. Contudo, ele guardava para si as razões do seu terror.
        O final das férias coincidiu com as últimas chuvas. Debaixo de tremendo aguaceiro, Eronides levou-a à estação.
        Quando o trem se pôs em movimento, a presença da flor de vidro revelou-se imediatamente. Os seus olhos se turvaram e um apelo rouco desprendeu-se dos seus lábios.
        O lenço branco, sacudido da janela, foi a única resposta. Porém os trilhos, paralelos, sumindo-se ao longe, condenavam-no a irreparável solidão.
        Na volta, um galho cegou lhe a vista.

Fonte: RUBIÃO, MURILO. A Flor de Vidro. In
O Pirotécnico Zacarias. 16ª ed. São Paulo, Ática, 1993.
Entendendo o conto:

01 – Com base na leitura e análise do conto “A Flor de Vidro”, classifique as afirmações seguintes de verdadeiras ou falsas:
a)   (F) O conto é narrado na primeira pessoa; o narrador, Eronides, conta a história em tom nostálgico.
b)   (F) O conto mistura cenário urbano com cenário rural.
c)   (V) Antes de Marialice retornar à fazenda, Eronides já perdera uma vista; por isso, usava uma venda preta.
d)   (F) Eronides recebeu Marialice friamente; a presença dela causava-lhe mal estar.
e)   (F) Eronides decepcionou-se como aspecto de velhice de Marialice.

02 – Com base na leitura e análise do conto A Flor de Vidro, classifique as afirmações seguintes de verdadeiras ou falsas:
a) (F) A referência a Dagô esfriou o contentamento de Eronides; ele suspeitava que Marialice o traía.
b) (V) Os passeios campestres aconteciam diariamente; Eronides enchia-se de pavor quando julgava ter enxergado a flor de vidro.
c) (V) A flor de vidro só surgiu nitidamente quando o trem que levava Marialice pôs-se em movimento.
d) (F) Eronides, quando divisou a flor de vidro, gritou muito e fez o trem parar.
e) (F) Na curva, o trem descarrilou, e Marialice morreu.

03 – Com base na leitura e análise do conto A Flor de Vidro, classifique as afirmações seguintes de verdadeiras ou falsas:
a) (F) Depois de deixar Marialice na estação, na volta para a fazenda, Eronides caiu do cavalo e morreu.
b) (V) As razões do terror de Eronides estavam na flor de vidro, mistério que ele não contou a Marialice.
c) (V) Conclui-se que Eronides, depois da visita de Marialice, ficou totalmente cego.
d) (V) Conclui-se que a "reminiscência amarga" que restava da flor de vidro, logo no início do conto, está relacionada à perda de uma das vistas de Eronides.
e) (V) Rosária é uma velha funcionária da fazenda.


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