domingo, 1 de dezembro de 2024

CRÔNICA: O PERNILONGO - MÁRIO PRATA - COM GABARITO

 Crônica: O pernilongo

              Mário Prata

        Era o melhor dos mundos. Mata Atlântica e praia, num mesmo local, num mesmo momento. Uma varanda, uma churrasqueira (nunca usada, mas lá), uma rede.

        Doces loiras a caminho do mar, The Beatles alto, a culpa baixa. E a pressa, nenhuma. Vinho.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgE-dy7aflfXKu1yQr1JuVuvgD04PsFGCSG2RFZjY97F6hs7DTfdmAw8CaLTyKMz0sPBMbNw_1KF5LHJqEInDmwUjwq-3-6dKnoFviNekl7ElNgtOBl2BluBSEbAwSh812YtIw482edx6ON_Vwl3uAEdc3kjCmDVB1YOIhKwzwBVhjuP8FVA6pjQEnp8-0/s320/PERNILONGO.jpg


        Mas tinha pernilongo.

        A primeira providência foi chamar o Flávio Scherer, cobra em telas para janelas. Fiz uma no meu escritório e outra entre a varanda e a sala. No quarto já tinha. Fechando a porta da cozinha eu estava salvo dele, o pernilongo.

        Mas na primeira noite, já me sentindo isolado do zumbidinho e das picadonas, ele apareceu nos ares, ele estava lá. E pernilongo é maldoso. Não basta picar. Primeiro ele fica te azucrinando o ouvido. E você, feito um idiota, dando tapas na própria orelha. Não há nenhum registro no mundo de alguém que tenha matado um pernilongo assim.

        No dia seguinte comprei aqueles tabletinhos verdes que coloca na tomada. E deixei, antes de ir dormir, o quarto todo borrifado com um spray que dizia que matava tudo. Fui deitar com um cheiro ruim no quarto. Mas quem é que aparece lá de madrugada? Como se a coisa não fosse com ele.

        Levanto, acendo a luz. Vejo onde ele está, pego a toalha todo sonolento e vou à luta. Mas ele sempre ganha. Mesmo quando você acerta uma toalhada nele, ele dá uma de que vai a nocaute, mas faz uma curva no ar e vai lá para cima. A noite está perdida.

        Chamo o Flávio de novo. Quero telas protetoras na cozinha, no outro quarto, na área de serviço, no quarto de empregada e no banheiro idem. Em uma semana a casa estava completamente protegida. E, quando eu entrava da rua era rápido e abria a porta o menos possível. Eu estava protegido. Ele não teria por onde entrar.

        Duas da manhã, ele. Direto na minha orelha, me gozando, pensei. Mas por onde teria entrado? Não havia nenhuma possibilidade. Foi quando eu pensei que talvez ele já estivesse lá dentro quando o Flávio colocou todas as telas e estaria me avisando que queria sair. Mas era um só e eu resolvi ir à luta. Na mão esquerda um superjato e na direita a toalha. Fechei todas as portas do quarto. Era eu e ele. Um dos dois ia morrer. Não chegou a ser a Guerra dos 100 Anos, mas ele desaparecia como o Bin Laden, que era como eu o chamava: aparece, Bin, se você for macho! Já estava clareando quando eu acertei uma bordoada fatal nele. Sujou a parede de sangue. Sangue meu, naturalmente.

        Na noite seguinte, outro. Resolvi olhar todas as telas, ver se havia uma frestinha. Nada, o Flávio é cobra. Quando entrei no banheiro, tinha dois lá dentro. Pensei: o ninho é aqui. E descobri. Eles entravam pela ventilação no teto. O Flávio colocou uma tela lá. Aproveitou e colocou outra debaixo do ralo.

        Antes de ir dormir, chequei a casa toda. Não havia a menor possibilidade.

        Até os ralos de todas as pias e banheiras, tapados. Hoje eu ia dormir em paz.

        Dormi. Até que ele voltou. Acendi a luz e fiquei olhando para ele. Era o Bin Laden, eu havia matado o afegão, perdão, o pernilongo errado. Como que eu sabia que era o Bin? Minha senhora, eu estava havia dias convivendo com ele, conhecia seu jeitão, seu estilo de voar, e principalmente, sua voz.

        Ele ficava zanzando na minha frente, parecendo que pedia uma trégua, um acordo. Fiz o tal de acordo. Me cubro todo e deixo o pé de fora. Você só pica o pé, tudo bem? Ele balançou a cabeça. E mais, pica uma vez só por noite. Tudo bem? E mais uma coisa e a mais importante de todas. Calado! Nada de zumbido no meu ouvido, pelo amor de Deus!

        E assim foi. Meu pé direito começou a ficar inchado. E o Bin, gordo, imenso, tendo dificuldade até para voos mais rasantes. Comecei a me afeiçoar a ele.

        E tive a grande ideia. Toda noite, antes de dormir, fazia um micro furinho no dedo, saia um sanguinho, deixava num pires para ele. Na manhã seguinte o pires está limpinho. Impressionante.

        Antes de ontem ele amanheceu morto, ao lado do pires. Deve ter morrido de velho. Ou de dengue.

        Agora dormia tranquilo, no silêncio das ondas do mar. Mas acordava sobressaltado toda hora: cadê o Bin? Cadê o Bin? E penso, de vez em quando: Será que ele morreu mesmo? Será que ele não vai aparecer a qualquer momento?

        Não sei, mas continuo dormindo com o pé fora das cobertas. Quem sabe, né?

Mário Prata. O Estado de São Paulo, 27/3/2002.

Fonte: Linguagem em Movimento – língua Portuguesa Ensino Médio – vol. 1 – 1ª edição – FTD. São Paulo – 2010. Izeti F. Torralvo/Carlos A. C. Minchillo. p. 260-261.

Entendendo a crônica:

01 – Qual a principal temática abordada na crônica?

      A crônica de Mário Prata aborda de forma humorística e irônica a luta de um homem contra um pernilongo. Por trás dessa história aparentemente simples, o autor explora temas como a busca pela perfeição, a relação do homem com a natureza e a dificuldade de controlar o inesperado.

02 – Como o autor caracteriza a relação entre o homem e o pernilongo?

      A relação entre o homem e o pernilongo é apresentada como uma verdadeira batalha. O homem utiliza diversos recursos para se livrar do inseto, mas este sempre encontra uma forma de escapar e contra-atacar. Essa relação é marcada pela persistência do pernilongo e pela frustração do homem.

03 – Quais os recursos linguísticos utilizados pelo autor para criar o humor na crônica?

      O autor utiliza diversos recursos linguísticos para criar o humor na crônica, como:

      Ironia: O autor ironiza a situação ao descrever a guerra contra o pernilongo como uma batalha épica, comparando-o a figuras históricas como Bin Laden.

      Hipérbole: O autor exagera a importância do combate ao pernilongo, transformando-o em uma obsessão.

      Linguagem coloquial: O uso de uma linguagem informal e próxima do cotidiano torna a crônica mais divertida e fácil de identificar com o leitor.

04 – Qual o papel do cenário na crônica?

      O cenário paradisíaco da praia e da mata atlântica contrasta com a irritação causada pelo pernilongo, criando uma situação irônica. A natureza, que deveria ser um refúgio tranquilo, torna-se um campo de batalha.

05 – Qual a evolução da relação entre o homem e o pernilongo ao longo da crônica?

      Inicialmente, a relação é marcada pela hostilidade e pela tentativa de extermínio. No entanto, com o passar do tempo, o homem passa a conviver com o pernilongo, criando até mesmo uma espécie de vínculo. Ao final da crônica, o homem demonstra um misto de medo e afeição pelo inseto.

06 – Qual a mensagem que a crônica transmite?

      A crônica transmite uma mensagem sobre a impossibilidade de controlar tudo e a importância de aceitar o inesperado. A luta contra o pernilongo simboliza a luta do homem contra as pequenas frustrações do dia a dia, que por mais que tentemos, nunca conseguimos eliminar completamente.

07 – Como o leitor pode se identificar com a crônica?

      O leitor pode se identificar com a crônica por meio das situações cotidianas e dos sentimentos descritos. A luta contra um inseto irritante é uma experiência universal, e a frustração e o humor presentes na crônica são sentimentos que todos já experimentaram em algum momento.

 

 

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