Crônica: O pernilongo
Mário Prata
Era o melhor dos mundos. Mata Atlântica
e praia, num mesmo local, num mesmo momento. Uma varanda, uma churrasqueira
(nunca usada, mas lá), uma rede.
Doces loiras a caminho do mar, The
Beatles alto, a culpa baixa. E a pressa, nenhuma. Vinho.
Mas
tinha pernilongo.
A primeira providência foi chamar o
Flávio Scherer, cobra em telas para janelas. Fiz uma no meu escritório e outra
entre a varanda e a sala. No quarto já tinha. Fechando a porta da cozinha eu
estava salvo dele, o pernilongo.
Mas na primeira noite, já me sentindo
isolado do zumbidinho e das picadonas, ele apareceu nos ares, ele estava lá. E
pernilongo é maldoso. Não basta picar. Primeiro ele fica te azucrinando o
ouvido. E você, feito um idiota, dando tapas na própria orelha. Não há nenhum
registro no mundo de alguém que tenha matado um pernilongo assim.
No dia seguinte comprei aqueles
tabletinhos verdes que coloca na tomada. E deixei, antes de ir dormir, o quarto
todo borrifado com um spray que dizia que matava tudo. Fui deitar com um cheiro
ruim no quarto. Mas quem é que aparece lá de madrugada? Como se a coisa não
fosse com ele.
Levanto, acendo a luz. Vejo onde ele
está, pego a toalha todo sonolento e vou à luta. Mas ele sempre ganha. Mesmo
quando você acerta uma toalhada nele, ele dá uma de que vai a nocaute, mas faz
uma curva no ar e vai lá para cima. A noite está perdida.
Chamo o Flávio de novo. Quero telas
protetoras na cozinha, no outro quarto, na área de serviço, no quarto de
empregada e no banheiro idem. Em uma semana a casa estava completamente
protegida. E, quando eu entrava da rua era rápido e abria a porta o menos
possível. Eu estava protegido. Ele não teria por onde entrar.
Duas da manhã, ele. Direto na minha
orelha, me gozando, pensei. Mas por onde teria entrado? Não havia nenhuma
possibilidade. Foi quando eu pensei que talvez ele já estivesse lá dentro
quando o Flávio colocou todas as telas e estaria me avisando que queria sair.
Mas era um só e eu resolvi ir à luta. Na mão esquerda um superjato e na direita
a toalha. Fechei todas as portas do quarto. Era eu e ele. Um dos dois ia
morrer. Não chegou a ser a Guerra dos 100 Anos, mas ele desaparecia como o Bin
Laden, que era como eu o chamava: aparece, Bin, se você for macho! Já estava
clareando quando eu acertei uma bordoada fatal nele. Sujou a parede de sangue.
Sangue meu, naturalmente.
Na noite seguinte, outro. Resolvi olhar
todas as telas, ver se havia uma frestinha. Nada, o Flávio é cobra. Quando
entrei no banheiro, tinha dois lá dentro. Pensei: o ninho é aqui. E descobri.
Eles entravam pela ventilação no teto. O Flávio colocou uma tela lá. Aproveitou
e colocou outra debaixo do ralo.
Antes de ir dormir, chequei a casa
toda. Não havia a menor possibilidade.
Até os ralos de todas as pias e
banheiras, tapados. Hoje eu ia dormir em paz.
Dormi. Até que ele voltou. Acendi a luz
e fiquei olhando para ele. Era o Bin Laden, eu havia matado o afegão, perdão, o
pernilongo errado. Como que eu sabia que era o Bin? Minha senhora, eu estava
havia dias convivendo com ele, conhecia seu jeitão, seu estilo de voar, e
principalmente, sua voz.
Ele ficava zanzando na minha frente,
parecendo que pedia uma trégua, um acordo. Fiz o tal de acordo. Me cubro todo e
deixo o pé de fora. Você só pica o pé, tudo bem? Ele balançou a cabeça. E mais,
pica uma vez só por noite. Tudo bem? E mais uma coisa e a mais importante de
todas. Calado! Nada de zumbido no meu ouvido, pelo amor de Deus!
E assim foi. Meu pé direito começou a
ficar inchado. E o Bin, gordo, imenso, tendo dificuldade até para voos mais
rasantes. Comecei a me afeiçoar a ele.
E tive a grande ideia. Toda noite,
antes de dormir, fazia um micro furinho no dedo, saia um sanguinho, deixava num
pires para ele. Na manhã seguinte o pires está limpinho. Impressionante.
Antes de ontem ele amanheceu morto, ao
lado do pires. Deve ter morrido de velho. Ou de dengue.
Agora dormia tranquilo, no silêncio das
ondas do mar. Mas acordava sobressaltado toda hora: cadê o Bin? Cadê o Bin? E
penso, de vez em quando: Será que ele morreu mesmo? Será que ele não vai
aparecer a qualquer momento?
Não sei, mas continuo dormindo com o pé
fora das cobertas. Quem sabe, né?
Mário Prata. O Estado de São Paulo, 27/3/2002.
Fonte: Linguagem em
Movimento – língua Portuguesa Ensino Médio – vol. 1 – 1ª edição – FTD. São
Paulo – 2010. Izeti F. Torralvo/Carlos A. C. Minchillo. p. 260-261.
Entendendo a crônica:
01
– Qual a principal temática abordada na crônica?
A crônica de
Mário Prata aborda de forma humorística e irônica a luta de um homem contra um
pernilongo. Por trás dessa história aparentemente simples, o autor explora
temas como a busca pela perfeição, a relação do homem com a natureza e a
dificuldade de controlar o inesperado.
02
– Como o autor caracteriza a relação entre o homem e o pernilongo?
A relação entre o
homem e o pernilongo é apresentada como uma verdadeira batalha. O homem utiliza
diversos recursos para se livrar do inseto, mas este sempre encontra uma forma
de escapar e contra-atacar. Essa relação é marcada pela persistência do
pernilongo e pela frustração do homem.
03
– Quais os recursos linguísticos utilizados pelo autor para criar o humor na
crônica?
O autor utiliza
diversos recursos linguísticos para criar o humor na crônica, como:
Ironia: O autor
ironiza a situação ao descrever a guerra contra o pernilongo como uma batalha
épica, comparando-o a figuras históricas como Bin Laden.
Hipérbole: O autor
exagera a importância do combate ao pernilongo, transformando-o em uma
obsessão.
Linguagem coloquial:
O uso de uma linguagem informal e próxima do cotidiano torna a crônica mais
divertida e fácil de identificar com o leitor.
04
– Qual o papel do cenário na crônica?
O cenário
paradisíaco da praia e da mata atlântica contrasta com a irritação causada pelo
pernilongo, criando uma situação irônica. A natureza, que deveria ser um
refúgio tranquilo, torna-se um campo de batalha.
05
– Qual a evolução da relação entre o homem e o pernilongo ao longo da crônica?
Inicialmente, a
relação é marcada pela hostilidade e pela tentativa de extermínio. No entanto,
com o passar do tempo, o homem passa a conviver com o pernilongo, criando até
mesmo uma espécie de vínculo. Ao final da crônica, o homem demonstra um misto
de medo e afeição pelo inseto.
06
– Qual a mensagem que a crônica transmite?
A crônica
transmite uma mensagem sobre a impossibilidade de controlar tudo e a importância
de aceitar o inesperado. A luta contra o pernilongo simboliza a luta do homem
contra as pequenas frustrações do dia a dia, que por mais que tentemos, nunca
conseguimos eliminar completamente.
07
– Como o leitor pode se identificar com a crônica?
O leitor pode se
identificar com a crônica por meio das situações cotidianas e dos sentimentos
descritos. A luta contra um inseto irritante é uma experiência universal, e a
frustração e o humor presentes na crônica são sentimentos que todos já experimentaram
em algum momento.
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