Conto: Tempo da camisolinha – Fragmento
Mário de Andrade
[...]
Guardo esta fotografia porque se ela
não me perdoa do que tenho sido, aos menos me explica. Dou a impressão de uma
monstruosidade insubordinada. [...].
[...] Não sei por que não destruir em
tempo também essa fotografia, agora é tarde. Muitas vezes passei minutos
compridos me contemplando, me buscando dentro dela. E me achando. Comparava-a
com meus atos e tudo eram confirmações. Tenho certeza que essa fotografia me
fez imenso mal, porque me deu muita preguiça de reagir. [...]
Toda a gente apreciava os meus cabelos
cacheados, tão lentos! E eu me envaidecia deles, mais que isso, os adorava por
causa dos elogios. Foi por uma tarde, me lembro bem, que meu pai suavemente
murmurou uma daquelas suas decisões irrevogáveis: “É preciso cortar os cabelos
desse menino”. Olhei de um lado, de outro, procurando um apoio, um jeito de
fugir daquela ordem, muito aflito. Preferi o instinto e fixei os olhos já lacrimosos
em mamãe. Ela quis me olhar compassiva, mas me lembro como se fosse hoje, não
aguentou meus últimos olhos de inocência perfeita, baixou os dela, oscilando
entre a piedade por mim e a razão possível que estivesse no mando do chefe.
Hoje, imagino um egoísmo grande da parte dela, não reagindo. As camisolinhas,
ela as conservaria ainda por mais de ano, até que se acabassem feitas trapos.
Mas ninguém percebeu a delicadeza da minha vaidade infantil. Deixassem que eu
sentisse por mim, me incutissem aos poucos a necessidade de cortar os cabelos,
nada: uma decisão à antiga, brutal, impiedosa, castigo sem culpa, primeiro
convite às revoltas íntimas: “é preciso cortar os cabelos desse menino”. [...]
ANDRADE, Mário de.
Tempo da camisolinha. Disponível em: www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=36858#OLADR%C3%83O.
Acesso em: 28 fev. 2022.
Fonte: Língua
Portuguesa. Linguagens – Séries finais, caderno 1. 8º ano – Larissa G. Paris
& Maria C. Pina – 1ª ed. 2ª impressão – FGV – MAXI – São Paulo, 2023. p.
100.
Entendendo o conto:
01
– Qual a relação do narrador com a fotografia?
O narrador sente
uma relação complexa com a fotografia. Por um lado, ele a vê como uma
comprovação de sua personalidade e de seus atos, mas por outro, reconhece que
ela o influencia negativamente, alimentando sua inércia.
02
– Qual o significado dos cabelos cacheados para o narrador?
Os cabelos
cacheados representam a vaidade infantil do narrador e são uma fonte de orgulho
para ele. Eles simbolizam uma parte de sua identidade e de sua autoestima.
03
– Como a família do narrador reage à decisão de cortar seus cabelos?
A família,
especialmente a mãe, demonstra uma certa indiferença à dor do menino. A decisão
de cortar os cabelos é imposta de forma autoritária, sem considerar os
sentimentos do narrador.
04
– Qual o impacto da decisão de cortar os cabelos na vida do narrador?
A decisão de
cortar os cabelos marca um momento de grande sofrimento para o narrador,
representando uma perda de sua identidade e um primeiro contato com a imposição
da vontade alheia. Esse evento desencadeia um sentimento de rebelião interior.
05
– Que sentimentos o narrador expressa em relação à sua mãe?
O narrador
demonstra ressentimento em relação à mãe por não ter defendido sua vontade. Ele
a acusa de egoísmo e de não ter compreendido a importância dos cabelos cacheados
para ele.
Nenhum comentário:
Postar um comentário