segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

CRÔNICA: O CASO DO MENDIGO - (FRAGMENTO) - LIMA BARRETO - COM GABARITO

 Crônica: O caso do mendigo – Fragmento

              Lima Barreto 

        Os jornais anunciaram, entre indignados e jocosos, que um mendigo, preso pela polícia, possuía em seu poder valores que montavam à respeitável quantia de seis contos e pouco.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhUGYYi8WSK8CoOvLZn_RGnMKcHw70F-oDuFK_FWk1dUFMG59_tKzvarF1RivNcbWaHfPlcbfi1ka8lIpjgdpK60J1GGesXZGBFUWq6LOS9JXOAlhIYh-oVZweLFMD-d2ak4fTxar5ZpUmGKaPnGdLaH_DGK4bCp1zuPwHZPPX7GkzeladaSxgwv3EDRdY/s320/MENDIGO.jpg


        Ouvi mesmo comentários cheios de raiva a tal respeito. O meu amigo X, que é o homem mais esmoler desta terra, declarou-me mesmo que não dará mais esmolas. E não foi só ele a indignar-se. Em casa de família de minhas relações, a dona da casa, senhora compassiva e boa, levou a tal ponto a sua indignação, que propunha se confiscasse o dinheiro ao cego que o ajuntou.

        Não sei bem o que fez a polícia com o cego. Creio que fez o que o Código e as leis mandam [...].

        O negócio fez-me pensar e, por pensar, é que cheguei a conclusões diametralmente opostas à opinião geral.

        O mendigo não merece censuras, não deve ser perseguido, porque tem todas as justificativas a seu favor. [...]

        Quem seria esse cego antes de ser mendigo? Certamente um operário, um homem humilde, vivendo de pequenos vencimentos, tendo às vezes falta de trabalho; [...] daí lhes vem a necessidade de economizar, para atender a essas épocas de crise.

        Devia ser assim o tal cego, antes de o ser. Cegando, foi esmolar. No primeiro dia, com a falta de prática, o rendimento não foi grande; mas foi o suficiente para pagar um caldo no primeiro frege que encontrou, e uma esteira na mais sórdida das hospedarias da rua da Misericórdia. Esse primeiro dia teve outros iguais e seguidos; e o homem se habituou a comer com duzentos réis e a dormir com quatrocentos; temos, pois, o orçamento do mendigo feito: seiscentos réis (casa e comida) e, talvez, cem réis de café; são, portanto, setecentos réis por dia.

        [...]

        Está, portanto, o mendigo fixado na despesa de setecentos réis por dia. Nem mais, nem menos; é o que ele gastava. [...] 

        Habituado a esse orçamento, o homenzinho foi se aperfeiçoando no ofício. Aprendeu a pedir mais dramaticamente, a aflautar melhor a voz; arranjou um cachorrinho, e o seu sucesso na profissão veio.

        Já de há muito que ganhava mais do que precisava. Os níqueis caíam, e o que ele havia de fazer deles? Dar aos outros? Se ele era pobre, como podia fazer? Pôr fora? Não; dinheiro não se põe fora. Não pedir mais? Aí interveio uma outra consideração.

        Estando habituado à previdência e à economia, o mendigo pensou lá consigo: há dias que vem muito; há dias que vem pouco, sendo assim, vou pedindo sempre, porque, pelos dias de muito, tiro os dias de nada. Guardou. Mas a quantia aumentava. No começo eram só vinte mil-réis; mas, em seguida foram quarenta, cinquenta, cem. E isso em notas, frágeis papéis, capazes de se deteriorarem, de perderem o valor ao sabor de uma ordem administrativa, de que talvez não tivesse notícia, pois, era cego e não lia, portanto. Que fazer, em tal emergência, daquelas notas? Trocar em ouro? Pesava, e o tilintar especial dos soberanos, talvez atraísse malfeitores, ladrões. Só havia um caminho: trancafiar o dinheiro no banco. Foi, o que ele fez. Estão aí um cego de juízo e um mendigo rico.

        Feito o primeiro depósito, seguiram-se a este outros [...] 

        Continuou com o seu cãozinho, com a sua voz aflautada, com o seu ar dorido a pedir pelas avenidas, pelas ruas comerciais, pelas casas de famílias, um níquel para um pobre cego. Já não era mais pobre; o hábito e os preceitos da profissão não lhe permitiam que pedisse uma esmola para um cego rico.

      O processo por que ele chegou a ajuntar a modesta fortuna de que falam os jornais, é tão natural, é tão simples, que, julgo eu, não há razão alguma para essa indignação das almas generosas.

        [...] Há uns que só dão esmolas quando estão tristes, há outros que só dão quando estão alegres e assim por diante. Ora, quem tem de obter meios de renda de fonte tão incerta, deve ou não ser previdente e econômico?

        Não julguem que faço apologia da mendicidade. Não só não faço como não a detrato.

        [...]

        De resto, ele era espanhol, estrangeiro, e tinha por dever voltar rico. Um acidente qualquer tirou-lhe a vista, mas lhe ficou a obrigação de enriquecer. Era o que estava fazendo, quando a polícia foi perturbá-lo. Sinto muito; e são meus desejos que ele seja absolvido do delito que cometeu, volte à sua gloriosa Espanha, compre uma casa de campo, que tenha um pomar com oliveiras e a vinha generosa; e, se algum dia, no esmaecer do dia, a saudade lhe vier deste Rio de Janeiro, deste Brasil imenso e feio, agarre em uma moeda de cobre nacional e leia o ensinamento que o governo da República dá... aos outros, através dos seus vinténs: “A economia é a base da prosperidade".

Lima Barreto. A crônica militante: seleção. São Paulo: Expressão Popular, 2016. p. 23-28.

Fonte: Maxi: Séries Finais. Caderno 1. Língua Portuguesa – 7º ano. 1.ed. São Paulo: Somos Sistemas de Ensino, 2021. Ensino Fundamental 2. p. 39-40.

Entendendo a crônica:

01 – Qual a reação inicial das pessoas ao saberem que o mendigo possuía uma grande quantia em dinheiro?

      A reação inicial foi de indignação e surpresa. Muitas pessoas se sentiram enganadas e traídas pela situação, questionando a sinceridade do mendigo e a eficácia das esmolas.

02 – Qual a opinião de Lima Barreto sobre o caso do mendigo?

      Lima Barreto defende o mendigo, argumentando que suas ações são justificáveis e que ele não merece ser julgado. O autor apresenta uma visão mais compreensiva e empática da situação, buscando entender os motivos que levaram o mendigo a agir daquela forma.

03 – Quais os argumentos utilizados por Lima Barreto para justificar as ações do mendigo?

      Lima Barreto argumenta que o mendigo, sendo cego e pobre, precisava garantir sua sobrevivência e futuro. Ele destaca a necessidade de economizar e a dificuldade de lidar com o dinheiro recebido em esmolas, justificando assim a decisão de guardar o dinheiro.

04 – Qual a crítica social presente no texto?

      O texto critica a hipocrisia da sociedade, que julga e condena o mendigo por ter acumulado dinheiro, mesmo que de forma honesta e necessária para sua sobrevivência. A crítica se estende à desigualdade social e à dificuldade de ascensão social para pessoas em situação de vulnerabilidade.

05 – Qual o papel do dinheiro na história?

      O dinheiro é o elemento central da narrativa, revelando as contradições da sociedade e as diferentes formas como as pessoas lidam com ele. O dinheiro é visto como um meio de sobrevivência, mas também como um objeto de desejo e de poder.

06 – Como o autor descreve o cotidiano do mendigo?

      Lima Barreto descreve o cotidiano do mendigo de forma realista e detalhada, mostrando as dificuldades e as estratégias utilizadas para sobreviver. Ele enfatiza a necessidade de economizar e a importância do trabalho, mesmo que seja a mendicância.

07 – Qual a conclusão a que chega Lima Barreto sobre o caso?

      Lima Barreto conclui que o mendigo não merece ser julgado e condenado, mas sim compreendido. Ele defende a ideia de que a sociedade deve ser mais tolerante e empática com aqueles que vivem em situação de vulnerabilidade.

 

 

 

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