Crônica: O caso do mendigo – Fragmento
Lima Barreto
Os jornais anunciaram, entre indignados
e jocosos, que um mendigo, preso pela polícia, possuía em seu poder valores que
montavam à respeitável quantia de seis contos e pouco.
Ouvi mesmo comentários cheios de raiva
a tal respeito. O meu amigo X, que é o homem mais esmoler desta terra,
declarou-me mesmo que não dará mais esmolas. E não foi só ele a indignar-se. Em
casa de família de minhas relações, a dona da casa, senhora compassiva e boa,
levou a tal ponto a sua indignação, que propunha se confiscasse o dinheiro ao
cego que o ajuntou.
Não sei bem o que fez a polícia com o
cego. Creio que fez o que o Código e as leis mandam [...].
O negócio fez-me pensar e, por pensar,
é que cheguei a conclusões diametralmente opostas à opinião geral.
O mendigo não merece censuras, não deve
ser perseguido, porque tem todas as justificativas a seu favor. [...]
Quem seria esse cego antes de ser
mendigo? Certamente um operário, um homem humilde, vivendo de pequenos
vencimentos, tendo às vezes falta de trabalho; [...] daí lhes vem a necessidade
de economizar, para atender a essas épocas de crise.
Devia ser assim o tal cego, antes de o
ser. Cegando, foi esmolar. No primeiro dia, com a falta de prática, o
rendimento não foi grande; mas foi o suficiente para pagar um caldo no primeiro
frege que encontrou, e uma esteira na mais sórdida das hospedarias da rua da
Misericórdia. Esse primeiro dia teve outros iguais e seguidos; e o homem se
habituou a comer com duzentos réis e a dormir com quatrocentos; temos, pois, o
orçamento do mendigo feito: seiscentos réis (casa e comida) e, talvez, cem réis
de café; são, portanto, setecentos réis por dia.
[...]
Está, portanto, o mendigo fixado na
despesa de setecentos réis por dia. Nem mais, nem menos; é o que ele gastava. [...]
Habituado a esse orçamento, o
homenzinho foi se aperfeiçoando no ofício. Aprendeu a pedir mais
dramaticamente, a aflautar melhor a voz; arranjou um cachorrinho, e o seu
sucesso na profissão veio.
Já de há muito que ganhava mais do que
precisava. Os níqueis caíam, e o que ele havia de fazer deles? Dar aos outros?
Se ele era pobre, como podia fazer? Pôr fora? Não; dinheiro não se põe fora.
Não pedir mais? Aí interveio uma outra consideração.
Estando habituado à previdência e à
economia, o mendigo pensou lá consigo: há dias que vem muito; há dias que vem
pouco, sendo assim, vou pedindo sempre, porque, pelos dias de muito, tiro os
dias de nada. Guardou. Mas a quantia aumentava. No começo eram só vinte
mil-réis; mas, em seguida foram quarenta, cinquenta, cem. E isso em notas,
frágeis papéis, capazes de se deteriorarem, de perderem o valor ao sabor de uma
ordem administrativa, de que talvez não tivesse notícia, pois, era cego e não
lia, portanto. Que fazer, em tal emergência, daquelas notas? Trocar em ouro?
Pesava, e o tilintar especial dos soberanos, talvez atraísse malfeitores,
ladrões. Só havia um caminho: trancafiar o dinheiro no banco. Foi, o que ele
fez. Estão aí um cego de juízo e um mendigo rico.
Feito o primeiro depósito, seguiram-se
a este outros [...]
Continuou com o seu cãozinho, com a sua
voz aflautada, com o seu ar dorido a pedir pelas avenidas, pelas ruas
comerciais, pelas casas de famílias, um níquel para um pobre cego. Já não era
mais pobre; o hábito e os preceitos da profissão não lhe permitiam que pedisse
uma esmola para um cego rico.
O processo por que ele chegou a ajuntar a
modesta fortuna de que falam os jornais, é tão natural, é tão simples, que,
julgo eu, não há razão alguma para essa indignação das almas generosas.
[...] Há uns que só dão esmolas quando
estão tristes, há outros que só dão quando estão alegres e assim por diante.
Ora, quem tem de obter meios de renda de fonte tão incerta, deve ou não ser
previdente e econômico?
Não julguem que faço apologia da
mendicidade. Não só não faço como não a detrato.
[...]
De resto, ele era espanhol,
estrangeiro, e tinha por dever voltar rico. Um acidente qualquer tirou-lhe a
vista, mas lhe ficou a obrigação de enriquecer. Era o que estava fazendo,
quando a polícia foi perturbá-lo. Sinto muito; e são meus desejos que ele seja
absolvido do delito que cometeu, volte à sua gloriosa Espanha, compre uma casa
de campo, que tenha um pomar com oliveiras e a vinha generosa; e, se algum dia,
no esmaecer do dia, a saudade lhe vier deste Rio de Janeiro, deste Brasil
imenso e feio, agarre em uma moeda de cobre nacional e leia o ensinamento que o
governo da República dá... aos outros, através dos seus vinténs: “A economia é
a base da prosperidade".
Lima Barreto. A crônica militante: seleção. São Paulo: Expressão
Popular, 2016. p. 23-28.
Fonte: Maxi: Séries Finais.
Caderno 1. Língua Portuguesa – 7º ano. 1.ed. São Paulo: Somos Sistemas de
Ensino, 2021. Ensino Fundamental 2. p. 39-40.
Entendendo a crônica:
01
– Qual a reação inicial das pessoas ao saberem que o mendigo possuía uma grande
quantia em dinheiro?
A reação inicial
foi de indignação e surpresa. Muitas pessoas se sentiram enganadas e traídas
pela situação, questionando a sinceridade do mendigo e a eficácia das esmolas.
02
– Qual a opinião de Lima Barreto sobre o caso do mendigo?
Lima Barreto
defende o mendigo, argumentando que suas ações são justificáveis e que ele não
merece ser julgado. O autor apresenta uma visão mais compreensiva e empática da
situação, buscando entender os motivos que levaram o mendigo a agir daquela
forma.
03
– Quais os argumentos utilizados por Lima Barreto para justificar as ações do
mendigo?
Lima Barreto
argumenta que o mendigo, sendo cego e pobre, precisava garantir sua
sobrevivência e futuro. Ele destaca a necessidade de economizar e a dificuldade
de lidar com o dinheiro recebido em esmolas, justificando assim a decisão de
guardar o dinheiro.
04
– Qual a crítica social presente no texto?
O texto critica a hipocrisia
da sociedade, que julga e condena o mendigo por ter acumulado dinheiro, mesmo
que de forma honesta e necessária para sua sobrevivência. A crítica se estende
à desigualdade social e à dificuldade de ascensão social para pessoas em
situação de vulnerabilidade.
05
– Qual o papel do dinheiro na história?
O dinheiro é o
elemento central da narrativa, revelando as contradições da sociedade e as
diferentes formas como as pessoas lidam com ele. O dinheiro é visto como um
meio de sobrevivência, mas também como um objeto de desejo e de poder.
06
– Como o autor descreve o cotidiano do mendigo?
Lima Barreto descreve o cotidiano do mendigo de forma
realista e detalhada, mostrando as dificuldades e as estratégias utilizadas
para sobreviver. Ele enfatiza a necessidade de economizar e a importância do
trabalho, mesmo que seja a mendicância.
07
– Qual a conclusão a que chega Lima Barreto sobre o caso?
Lima Barreto
conclui que o mendigo não merece ser julgado e condenado, mas sim compreendido.
Ele defende a ideia de que a sociedade deve ser mais tolerante e empática com
aqueles que vivem em situação de vulnerabilidade.
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