Conto: Uma estrangeira da nossa rua – Fragmento
Milton Hatoum.
No caminho do aeroporto para casa, eu
observava os lugares da cidade agora irreconhecível. Quase toda a floresta em
torno da área urbana havia degenerado em aglomerações de barracos ou edifícios
horrorosos. Em casa, tia Mira me recebeu com entusiasmo e contou uma ou outra
novidade que, para mim, já não faziam sentido. Deixei a mala no quarto e quase
sem querer perguntei pelos Doherty.
Nunca mais voltaram, disse tia Mira. O
pai ainda passou uns meses aqui, vendeu o bangalô e foi embora. O comprador
derrubou o muro, a casa, a acácia. Tudo.
Para onde foram?
E quem pode saber? Aquela família vivia
em outro mundo.
Eu tinha acabado de chegar à cidade, e
notara com tristeza a ausência da casa azul na nossa rua. Era um bangalô
bonito, cercado por um muro de pedras vermelhas que uma trepadeira cobria; no
pátio dos fundos uma acácia solitária floria nos meses de chuva e sombreava o
quarto das duas irmãs. Agora um monte de escombros enchia o terreno na rua em
declive.
Na varanda de casa, ao olhar as ruínas
do bangalô, me lembrei de Lyris, mais alta e também menos arredia que a irmã. O
cabelo quase ruivo, o rosto anguloso e os olhos verdes e um pouco puxados
embaralhavam traços do pai e da mãe. Só me dei conta dessa beleza estranha e
misturada no fim da infância, quando senti alguma coisa terrível e ansiosa
parecida com a paixão.
Lyris devia ter uns dezoito anos, e a
irmã era quase da minha idade: quinze.
[...]
HATOUM, Milton. A cidade ilhada: contos. São Paulo: Companhia da Letras,
2009. p. 15-16. Fragmento.
Fonte: Português –
Literatura, Gramática e Produção de texto – Leila Lauar Sarmento & Douglas
Tufano – vol. 2 – Moderna – 1ª edição – São Paulo, 2010, p. 449.
Entendendo o conto:
01
– Qual a principal mudança ocorrida na cidade e no entorno da casa do narrador?
A principal
mudança é a devastação da natureza e a urbanização desenfreada. A floresta que
antes rodeava a cidade foi substituída por aglomerações de barracos e
edifícios, e a casa dos Doherty, com seu jardim e árvores, foi demolida, dando
lugar a um terreno baldio. Essa transformação reflete uma perda da identidade e
da história do lugar.
02
– Qual o significado da ausência da casa dos Doherty para o narrador?
A ausência da
casa dos Doherty representa a perda de um ponto de referência e de uma figura
feminina que despertou nele sentimentos de paixão e admiração. A casa e seus
habitantes simbolizavam um mundo diferente, mais livre e misterioso, que
contrasta com a realidade da cidade transformada.
03
– Como o narrador descreve Lyris?
O narrador
descreve Lyris como uma jovem bela e enigmática, com traços físicos que
misturam a herança de seus pais. Ele destaca a beleza de seus olhos verdes e a
sua altura, contrastando-a com a irmã mais nova. A descrição de Lyris é marcada
por um tom de admiração e desejo.
04
– Qual a importância da figura de Lyris para o narrador?
Lyris representa o despertar
da sexualidade e dos primeiros amores do narrador. Ela é uma figura idealizada,
que desperta nele sentimentos complexos e contraditórios, como admiração,
desejo e um pouco de medo. A figura de Lyris marca um momento importante na
formação da identidade do narrador.
05
– Qual a atmosfera geral criada no fragmento?
A atmosfera geral
do fragmento é marcada por um sentimento de nostalgia e perda. O narrador
expressa tristeza pela transformação da cidade e pela ausência da família
Doherty. A descrição da casa demolida e a lembrança de Lyris evocam um passado
idealizado e irrevogavelmente perdido.
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