Crônica: Atribulações de Papai Noel – Fragmento
Graciliano Ramos
[...]
Papai Noel pisou na calçada, andou em
muitos bairros, entrou em muitas moradas, distribuindo convenientemente os
objetos que levava. Às crianças ricas ofereceu bicicletas, álbuns de
figurinhas, cavalos de rodas, bonecas falantes, automóveis e estradas de ferro
em miniatura; às pobres deu espingardas de folha, apitos, balõezinhos,
cornetas, bolas de borracha e outras miudezas da casa de Cr$ 4,40. E todas as
crianças ficaram satisfeitas: porque as primeiras não sabiam brincar com
espingardas e cornetas, as segundas teriam receio de sujar os cavalos e os
livros de figuras. A distribuição era razoável: não prejudicava hábitos
adquiridos, não atentava contra a natural diferença que há entre os meninos,
não estabelecia confuso no espírito delas.
-- Porque enfim, refletia Papai Noel,
apitos e gaitas valem uma fortuna para o garoto que não possui nada; automóveis
e estradas de ferro pouco interesse despertam no pequeno que tem um quarto
cheio de trapalhadas semelhantes. Assim, o que devemos fazer é dar coisas
preciosas aos indivíduos que não precisam delas e deixar trastes sem valor aos
necessitados. Acho que há muita sabedoria nisso.
Infelizmente o saco esvaziou antes que
o ótimo velho percorresse toda a cidade. Por isso não foram visitadas as casas
cobertas de lata e remendadas com tábuas. Na ladeira de um morro vagabundo os
últimos presentes desapareceram. [...].
Ergueu-se repentinamente e descobriu
ali perto vários moleques do morro que iam encher as vasilhas no chafariz.
-- Que desordem é essa? – bradou com
indignação, agarrando o cajado. Isso lá são modos? Debanda, canalha.
Os rapazes continuavam a rir. E um
deles adiantou-se:
-- Parece um tipo de carnaval. Donde
vem o senhor?
-- Donde venho? Exclamou o ancião quase
engasgado. Ora aí está a consequência do livre exame. Então vocês não me
conhecem?
-- Diga logo quem é, ganiu um pirralho.
-- Era o que faltava, eu descer a dar
explicações a essa poeira. Vejo que aqui não há polícia. Vão-se embora,
patifes, vão encher os potes no chafariz.
Ameaçou-os com o bordão, mas os
bichinhos importunos conservaram-se por ali rondando, sem se afastar muito. Um
mais afoito, aproximou-se e perguntou baixinho:
-- Mas por que é que o senhor não diz o
seu nome?
-- Está bem, murmurou o funcionário.
Com bons modos tudo se arranja. Você se comporta direito, meu filho. Continue
assim. A maioria das virtudes é o respeito às pessoas e às coisas antigas,
percebe? Eu sou uma criatura muito antiga.
-- Diga o nome, gritou um rapazinho.
-- Santo Deus! Resmungou o velho,
enjoado. Será possível que ainda não saibam? Que falta de inteligência! Então
preciso explicar a vocês que sou Papai Noel?
As risadas dos moleques rebentaram
outra vez no morro.
-- Que pilhéria!
-- Pilhéria não, safadinho. Tu mereces
cadeia, para não rires das antiguidades respeitáveis. Estão aí os frutos da
democracia.
O cajado ergueu-se, mas, como a
algazarra não diminuiu, o digno homem voltou às boas.
-- Vamos deixar de barulho. Assim não
se compreende nada. Com franqueza, nunca ouviram falar de mim?
-- Ouvimos, respondeu um sujeitinho
quando a bulha serenou. Mas é tapeação, ninguém acredita nisso. [...]
O Cruzeiro, 23 de dezembro de 1939.
RAMOS, Graciliano.
Linhas tortas. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 287-292.
Fonte: Maxi: Séries
Finais. Caderno 1. Língua Portuguesa – 7º ano. 1.ed. São Paulo: Somos Sistemas
de Ensino, 2021. Ensino Fundamental 2. p. 52-53.
Entendendo a crônica:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
Cr$ 4,40: valor simbólico, equivalente às lojinhas de um real.
Espingarda de folha: brinquedo de lata.
Ganiu: falou.
Pilhéria: piada.
02 – Qual a principal crítica
social presente na crônica?
A crônica de
Graciliano Ramos critica a desigualdade social e a hipocrisia da sociedade,
especialmente em relação ao Natal. O autor demonstra como a distribuição de
presentes reforça as diferenças sociais, privilegiando as crianças ricas em
detrimento das mais pobres.
03 – Como a figura do Papai
Noel é retratada na crônica?
Papai Noel é
retratado de forma irônica e crítica. Ele aparece como um personagem que
reforça as desigualdades sociais, distribuindo presentes de acordo com a classe
social das crianças. Além disso, sua reação aos meninos pobres demonstra um
certo autoritarismo e falta de empatia.
04 – Qual a importância da descrição
dos presentes para a compreensão da crítica social?
A descrição
detalhada dos presentes distribuídos por Papai Noel revela a desigualdade
social existente. Os presentes mais caros e sofisticados são destinados às
crianças ricas, enquanto as crianças pobres recebem brinquedos simples e
baratos. Essa diferença evidencia a divisão social e a falta de oportunidades
para as crianças mais carentes.
05 – Qual a reação dos meninos
pobres ao encontro com Papai Noel?
Os meninos pobres
reagem com desconfiança e ironia ao encontro com Papai Noel. Eles questionam a
existência do personagem e demonstram um certo cinismo em relação à figura do
bom velhinho. Essa reação revela a falta de esperança e a desilusão das
crianças mais pobres.
06 – Qual o significado da
frase "A distribuição era razoável: não prejudicava hábitos adquiridos,
não atentava contra a natural diferença que há entre os meninos, não
estabelecia confuso no espírito delas"?
Essa frase
ironiza a ideia de que a desigualdade social é natural e inevitável. O autor
sugere que a distribuição desigual de presentes reforça as diferenças sociais
existentes, perpetuando um ciclo de desigualdade.
07 – Qual a relação entre a
crônica e o contexto histórico da época em que foi escrita?
A crônica foi
escrita em 1939, um período marcado por grandes desigualdades sociais no
Brasil. A crítica de Graciliano Ramos à desigualdade social e à figura do Papai
Noel reflete as preocupações da época e a busca por uma sociedade mais justa e
igualitária.
08 – Qual a mensagem principal
da crônica?
A mensagem
principal da crônica é uma crítica à desigualdade social e à hipocrisia da
sociedade. Graciliano Ramos nos convida a refletir sobre o significado do Natal
e a importância de construir um mundo mais justo e igualitário para todas as
crianças.
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