terça-feira, 31 de dezembro de 2024

CRÔNICA: ATRIBULAÇÕES DE PAPAI NOEL - (FRAGMENTO) - GRACILIANO RAMOS - COM GABARITO

 Crônica: Atribulações de Papai Noel – Fragmento

             Graciliano Ramos

        [...]

        Papai Noel pisou na calçada, andou em muitos bairros, entrou em muitas moradas, distribuindo convenientemente os objetos que levava. Às crianças ricas ofereceu bicicletas, álbuns de figurinhas, cavalos de rodas, bonecas falantes, automóveis e estradas de ferro em miniatura; às pobres deu espingardas de folha, apitos, balõezinhos, cornetas, bolas de borracha e outras miudezas da casa de Cr$ 4,40. E todas as crianças ficaram satisfeitas: porque as primeiras não sabiam brincar com espingardas e cornetas, as segundas teriam receio de sujar os cavalos e os livros de figuras. A distribuição era razoável: não prejudicava hábitos adquiridos, não atentava contra a natural diferença que há entre os meninos, não estabelecia confuso no espírito delas.

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiZkPxK5jaqo_EImV-kmAwefQdAAxGFak5J8SeQ1819NzYX7vpiKcpv3NWi_mPg27VQzE9WlTT-QcdYjkTt89MWEDBVNuHMPD9gu70rAgz-RtL47A7nAyKC8ZRl6ogy1y_idJxBMuRivs3q2v-gk91APr_lFDK1d4uYOLDG_b18x0Slq8EfTrq4IYrdh98/s1600/PAPAI.jpg 


        -- Porque enfim, refletia Papai Noel, apitos e gaitas valem uma fortuna para o garoto que não possui nada; automóveis e estradas de ferro pouco interesse despertam no pequeno que tem um quarto cheio de trapalhadas semelhantes. Assim, o que devemos fazer é dar coisas preciosas aos indivíduos que não precisam delas e deixar trastes sem valor aos necessitados. Acho que há muita sabedoria nisso.

        Infelizmente o saco esvaziou antes que o ótimo velho percorresse toda a cidade. Por isso não foram visitadas as casas cobertas de lata e remendadas com tábuas. Na ladeira de um morro vagabundo os últimos presentes desapareceram. [...].

        Ergueu-se repentinamente e descobriu ali perto vários moleques do morro que iam encher as vasilhas no chafariz.

        -- Que desordem é essa? – bradou com indignação, agarrando o cajado. Isso lá são modos? Debanda, canalha.

        Os rapazes continuavam a rir. E um deles adiantou-se:

        -- Parece um tipo de carnaval. Donde vem o senhor?

        -- Donde venho? Exclamou o ancião quase engasgado. Ora aí está a consequência do livre exame. Então vocês não me conhecem?

        -- Diga logo quem é, ganiu um pirralho.

        -- Era o que faltava, eu descer a dar explicações a essa poeira. Vejo que aqui não há polícia. Vão-se embora, patifes, vão encher os potes no chafariz.

        Ameaçou-os com o bordão, mas os bichinhos importunos conservaram-se por ali rondando, sem se afastar muito. Um mais afoito, aproximou-se e perguntou baixinho:

        -- Mas por que é que o senhor não diz o seu nome?

        -- Está bem, murmurou o funcionário. Com bons modos tudo se arranja. Você se comporta direito, meu filho. Continue assim. A maioria das virtudes é o respeito às pessoas e às coisas antigas, percebe? Eu sou uma criatura muito antiga.

        -- Diga o nome, gritou um rapazinho.

        -- Santo Deus! Resmungou o velho, enjoado. Será possível que ainda não saibam? Que falta de inteligência! Então preciso explicar a vocês que sou Papai Noel?

        As risadas dos moleques rebentaram outra vez no morro.

        -- Que pilhéria!

        -- Pilhéria não, safadinho. Tu mereces cadeia, para não rires das antiguidades respeitáveis. Estão aí os frutos da democracia.

        O cajado ergueu-se, mas, como a algazarra não diminuiu, o digno homem voltou às boas.

        -- Vamos deixar de barulho. Assim não se compreende nada. Com franqueza, nunca ouviram falar de mim?

        -- Ouvimos, respondeu um sujeitinho quando a bulha serenou. Mas é tapeação, ninguém acredita nisso. [...]

        O Cruzeiro, 23 de dezembro de 1939.

RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 287-292.

Fonte: Maxi: Séries Finais. Caderno 1. Língua Portuguesa – 7º ano. 1.ed. São Paulo: Somos Sistemas de Ensino, 2021. Ensino Fundamental 2. p. 52-53.

Entendendo a crônica:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

Cr$ 4,40: valor simbólico, equivalente às lojinhas de um real.

Espingarda de folha: brinquedo de lata.

Ganiu: falou.

Pilhéria: piada.

02 – Qual a principal crítica social presente na crônica?

      A crônica de Graciliano Ramos critica a desigualdade social e a hipocrisia da sociedade, especialmente em relação ao Natal. O autor demonstra como a distribuição de presentes reforça as diferenças sociais, privilegiando as crianças ricas em detrimento das mais pobres.

03 – Como a figura do Papai Noel é retratada na crônica?

      Papai Noel é retratado de forma irônica e crítica. Ele aparece como um personagem que reforça as desigualdades sociais, distribuindo presentes de acordo com a classe social das crianças. Além disso, sua reação aos meninos pobres demonstra um certo autoritarismo e falta de empatia.

04 – Qual a importância da descrição dos presentes para a compreensão da crítica social?

      A descrição detalhada dos presentes distribuídos por Papai Noel revela a desigualdade social existente. Os presentes mais caros e sofisticados são destinados às crianças ricas, enquanto as crianças pobres recebem brinquedos simples e baratos. Essa diferença evidencia a divisão social e a falta de oportunidades para as crianças mais carentes.

05 – Qual a reação dos meninos pobres ao encontro com Papai Noel?

      Os meninos pobres reagem com desconfiança e ironia ao encontro com Papai Noel. Eles questionam a existência do personagem e demonstram um certo cinismo em relação à figura do bom velhinho. Essa reação revela a falta de esperança e a desilusão das crianças mais pobres.

06 – Qual o significado da frase "A distribuição era razoável: não prejudicava hábitos adquiridos, não atentava contra a natural diferença que há entre os meninos, não estabelecia confuso no espírito delas"?

      Essa frase ironiza a ideia de que a desigualdade social é natural e inevitável. O autor sugere que a distribuição desigual de presentes reforça as diferenças sociais existentes, perpetuando um ciclo de desigualdade.

07 – Qual a relação entre a crônica e o contexto histórico da época em que foi escrita?

      A crônica foi escrita em 1939, um período marcado por grandes desigualdades sociais no Brasil. A crítica de Graciliano Ramos à desigualdade social e à figura do Papai Noel reflete as preocupações da época e a busca por uma sociedade mais justa e igualitária.

08 – Qual a mensagem principal da crônica?

      A mensagem principal da crônica é uma crítica à desigualdade social e à hipocrisia da sociedade. Graciliano Ramos nos convida a refletir sobre o significado do Natal e a importância de construir um mundo mais justo e igualitário para todas as crianças.

 

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