sábado, 28 de dezembro de 2024

CONTO: O CORAÇÃO DELATOR - EDGAR ALLAN POE - COM GABARITO

 Conto: O Coração Delator

            Edgar Allan Poe

        — Verdade! – sou muito nervoso – terrivelmente nervoso – sempre fui e serei. Mas, por que dirão vocês que sou louco? A doença aguçara-me os sentidos – não os destruíra nem os anestesiara. Acima de tudo minha audição tornara-se agudíssima. Ouvia todas as coisas, as do céu e as da terra. Ouvia muitas coisas do inferno. Como então podem dizer que sou louco? Escutem-me! E observem com quanta lucidez, com quanta serenidade lhes conto toda a história.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjyPPGD3jEFQwTaQG2pQ-X8Dw5t0qi6kbdiuQhUFstSYw9AnYoIxrFy_GigMWIz245GNxXPVtFoLNowcnjm60yDIh6CBLu_ym0OB2BIQJurRCKElHTrZMJ4TQ7yHCHiF__2Fye32K9CG_mWJSgVethGHiZQoJzJ9mLZJGIzLUB3jPqPeJSA1NrF9iyQQlM/s320/coracao-delator-e-outros-contos-edgar-allan-poe-1050536.jpg


        É impossível dizer como a ideia me surgiu na mente, mas uma vez concebida perseguia-me noite e dia. Objetivo, não havia nenhum. Nem paixão havia. Eu até gostava do velho. Nunca me fizera mal algum. Jamais me maltratara. E eu também não lhe cobiçava o ouro. Creio que foi por causa daquele seu olho! Sim, foi por isso! Um de seus olhos assemelhava-se ao de um abutre – um olho de cor azul pálido encoberto por uma película. Sempre que o velho o pousava em mim, gelava-me o sangue, e, pouco a pouco, muito gradualmente, acabei decidindo tirar-lhe a vida e assim livrar-me daquele olhar de uma vez por todas.

        Agora a questão é a seguinte: vocês me imaginam louco. Os loucos nada sabem. Vocês deviam ter-me visto a mim. Deveriam ter visto com quanta sabedoria procedi – com que cautela e antevisão – com que dissimulação pus-me ao trabalho!

        Nunca fora tão bondoso com o velho como na semana antes de matá-lo. E todas os dias, por volta da meia-noite, girava o trinco da porta de seu quarto e a abria-a – ah, tão delicadamente! E, então, quando já a afastara por uns dois palmos, ia aos poucos enfiando no quarto uma lanterna escura, fechada, totalmente fechada de modo a não deixar escapar a mínima luz e só depois é que enfiava a minha cabeça. Ah! Vocês teriam rido muito se tivessem visto a astúcia com que eu realizava esse gesto. Movia minha cabeça bem devagar – muito devagarinho a fim de não perturbar o sono do velho. Levava uma hora inteira até fazer minha cabeça atravessar completamente a abertura e colocar-me a uma distância suficiente para poder vê-lo deitado no leito. Ah! Um louco teria agido assim tão sabiamente? E, depois, quando minha cabeça já estava completamente dentro do quarto, girava o obstruidor da lanterna com o máximo cuidado – com todo o cuidado! Muitíssimo cuidado (pois poderia fazer barulho) – girava-o o mínimo possível de forma que somente um único e finíssimo raio de luz fosse pousar sobre aquele olho de abutre. E fiz isso durante sete longas noites – todas as noites exatamente à meia-noite – mas descobria que o olho estava sempre fechado, era impossível realizar minha tarefa, já que não era o velho que me exasperava, e sim o seu Olho Maligno. E todas as manhãs, ao raiar do dia, estava no aposento corajosamente e falava-lhe sem nenhum temor, chamando-o pelo nome em tom animado e perguntando-lhe como passara a noite. Portanto, como vocês mesmos bem podem ver, ele teria de ser um homem muitíssimo sagaz para suspeitar que todas as noites, exatamente à meia-noite, eu punha-me a vigiá-lo enquanto dormia.

        Na oitava noite, fui ainda mais cauteloso ao abrir a porta. Os ponteiros dos minutos de um relógio podiam se mover mais rápidos que minhas mãos. Até essa noite, nunca havia sentido o alcance de meus poderes, da minha astúcia. Mal podia conter a sensação de triunfo. Pensar que lá estava eu abrindo a porta pouco a pouco, sem que ele sequer sonhasse com os meus atos ou com os meus pensamentos secretos. Cheguei mesma a rir-me de tal ideia... e talvez ele tivesse me ouvido pois mexeu-se na cama repentinamente, como se acordasse assustado. Vocês devem estar pensando então que eu recuei – mas não! O aposento estava negro como breu (as pesadas janelas estavam bem trancadas por causa do medo de ladrões) e, sabendo muito bem que ele não poderia ver a porta se abrir, continuei a empurrá-la milimetricamente, mais e mais.

        Já havia enfiado minha cabeça na abertura e estava prestes a abrir o obstruidor da lanterna, quando meu polegar escorregou no fecho de lata. O velho se ergueu na cama sobressaltado, gritando: "Quem está aí?"

        Fiquei imóvel e nada disse. Por uma hora inteira não movi sequer um músculo e durante todo esse tempo não o ouvi deitar-se novamente. Ainda devia estar sentado na cama procurando ouvir qualquer coisa... tal como eu fizera, noite após noite, ouvindo a morte rondar por ali.

        Não muito depois, escutei um leve gemido e sabia que era produto de um pânico mortal. Não se tratava de um gemido de dor ou sofrimento... Ah não!... Era o som grave e contido que brota de dor ou sofrimento... Ah não!... Era o som grave e contido que brota do fundo da alma quando o mundo ela está saturada de terror. Eu conhecia muito bem esse som. Muitos foram as noites nas quais á meia-noite em ponto, hora em que o mundo inteiro dorme, esse mesmo som emergia de meu próprio peito e com seus ecos horripilantes aguçava ainda mais os terrores que me aturdiam. Digo-lhes que o conhecia muito bem. Sabia como o velho devia estar se sentindo e tinha pena dele, se bem que no fundo me risse. Bem sabia que ele estivera acordado na cama desde o momento do primeiro ruído leve que o despertara. Desde então os temores se agigantavam dentro dele. Havia tentado se convencer de que eram improcedentes, mas era impossível. Havia repetido a si mesmo: "Não é nada... apenas o barulho do vento pela chaminé...", ou "é apenas um rato a correr pelo quarto...", ou ainda "Deve ter sido um grilo que cricrilou uma única vez". Sim, certamente tentara se consolar com tais suposições, mas tudo em vão. Tudo em vão, porque para dele se aproximar a Morte, viera sub-repticiamente, oculta no seu manto negro com o qual capturava a vítima. E foi a funesta influência desse manto invisível que o fez sentir — embora não pudesse ver ou ouvir — que o fez sentir a presença de minha cabeça no interior do quarto.

        Depois de ter esperado por muito tempo com infinita paciência sem tê-lo ouvido deitar-se, decidi abrir uma pequenina fresta – uma fresta mínima – no obstruidor da lanterna. E assim o fiz, e vocês não podem nem imaginar com que lentidão fui girando-o, até que, por fim, um único raio de luz, fino como o fio de uma teia de aranha, projetou-se da pequena fresta e foi pousar-lhe  diretamente no olho de abutre.

        Estava aberto – bem aberto e arregalado – e ao vê-lo fui tomando de fúria. Via-o com perfeita nitidez – todo de um azul aguado, coberto por aquela película horrenda que me gelava até a medula dos ossos. No entanto, era só o que eu podia ver da face e do corpo do velho, pois, como que por instinto, apontara o raio de luz exatamente sobre aquele maldito ponto.

        Mas então já não lhes disse que aquilo que vocês tomam por loucura nada mais é que uma hiperagudeza dos sentidos? Pois digo-lhes que nesse momento ouvi um ruído, baixo e abafado, como o tique-taque de um relógio enrolado num pano. Também conhecia muito bem esse som. Eram as batidas do coração do velho. Assim como o rufar dos tambores de guerra incita o soldado à luta, esse barulho deixava-me cada vez mais furioso.

        Contudo, mesmo nessa hora ainda me contive, permanecendo imóvel. Mal podia respirar. Segurava a lanterna inerte. Com o máximo de firmeza possível tentei manter o raio de luz sobre o olho do velho. Enquanto isso, o som diabólico daquele coração ia crescendo. Tornava-se cada vez mais rápido e aumentava de volume a cada instante. O terror que se apossou do velho deve ter sido extremo! Batia mais e mais, asseguro-lhes eu, cada vez mais alto!... Estão compreendendo bem o que lhes digo? Já lhes disse que sou nervoso... é assim que sou. E então na calada da noite, em meio ao terrível silêncio daquela casa velha, um ruído tão estranho quanto aquele punha-se na excitação de um incontrolável pavor. Entretanto... por mais alguns segundos... contive-me e permaneci imóvel. Mais as batidas se tornavam mais altas! Pensei que o coração fosse explodir. E então outra angústia tomou conta de mim – o ruído poderia ser ouvido por algum vizinho! Chegara a hora do velho! Com um grito incontido, escancarei a lanterna e saltei para dentro do quarto. Ele soltou um grito – um só e estridente como o de uma ave – uma única vez! Em um instante arrastei-o para o chão e empurrei a cama pesada sobre ele. Então sorri de satisfação ao ver o ato consumado. Porém por vários minutos o coração continuou a bater com aquele som abafado. Mas isso não me perturbava; não poderia ser ouvido através da parede. Por fim cessou. O velho estava morto. Removi a cama e examinei o cadáver. Sim, estava morto, morto como uma pedra. Coloquei minha mão sobre o coração e ali a deixei ficar por alguns minutos. Não havia pulsação. Morto como pedra. Aquele seu olho nunca mais me incomodaria.

        Se vocês ainda me acham louco, mudarão de opinião quando eu lhes descrever as sábias precauções que tomei para esconder o corpo. A noite findava e pus-me a trabalhar apressadamente, mas sempre em silêncio. Em primeiro lugar, desmembrei o corpo. Decepei-lhe a cabeça, os braços e as pernas.

        E então arranquei depois três tábuas do assoalho do quarto e depositei tudo entre as fendas. Recoloquei as tábuas com tanta habilidade, com tanta astúcia, que nenhum olho humano, – nem mesmo o dele – poderia detectar algo de errado. Não havia nada para ser lavado – nenhuma mancha de qualquer tipo – nem sequer um único pingo de sangue. Eu tinha sido extremamente cuidadoso para evitar a isso acontecesse: a banheira recolhera tudo... Ah! Ah! Ah!

        Quando acabei essas tarefas eram quatro horas, mas ainda estava escuro como se fosse meia-noite. Quando o sino deu as horas, ouvi batidas na porta que dava para a rua. Desci para abri-la despreocupado... O que havia para temer agora? Entraram três homens e, com a maior palidez, identificaram-se como sendo da polícia. Um grito estridente fora ouvido por um vizinho durante a noite; levantara-se a suspeita de crime; a delegacia de polícia fora notificada e eles receberam a incumbência de investigar.

        Sorri, pois que havia a temer? Dei as boas-vindas aos cavalheiros. O grito, disse-lhes, eu mesmo o dera durante um sonho. O velho, informei, estava fora, no interior. Levei os meus visitantes a todas as partes da casa. Sugeri que investigassem tudo e que investigassem muito bem. Por fim, eu os conduzi ao quarto dele. Mostrei-lhes os seus bens, totalmente seguros e intocados. Movido pelo entusiasmo de minha autoconfiança, levei cadeiras para o quarto e sugeri que descansassem ali, enquanto eu mesmo, na louca audácia de meu triunfo absoluto, colocava minha cadeira justamente sobre o local onde repousava o cadáver.

        Os policiais ficaram satisfeitos. O modo como me portara convencera-os. Eu estava muito à vontade. Sentaram-se e enquanto eu ia-lhes respondendo animadamente, conversaram sobre assuntos corriqueiros. Porém, logo senti que começava a empalidecer e sejei que já tivessem ido embora. A cabeça me doía e imaginei estar ouvindo um zumbido nos ouvidos. Mas eles permaneciam sentados e continuavam a conversar. O zumbido ficou mais distinto; prosseguia e tornava-se mais nítido. Pus-me a falar com mais eloquência a fim de me livrar daquela sensação, mas o ruído continuava, cada vez mais nítido, até que, por fim, descobri que o som não estava em meus ouvidos.

        Sem dúvida, nesse momento, fiquei lívido... mas falava mais, num tom mais alto. Contudo, o barulho também aumentava... e o que é que eu podia fazer? Era um ruído rápido, baixo e abafado... muito parecido com o som de um relógio enrolado num pano. Faltava-me o fôlego e, no entanto, os policiais nada ouviam. Comecei a falar mais depressa e com veemência; mas o som não parava de aumentar. Pus-me de pé e comecei a discutir sobre ninharias, com voz muito alterada e gestos violentos, mas o ruído continuava aumentando. Por que eles não iam embora? Andava de um lado para outro do quarto, com passadas largas e pesadas, como se o fato de ser assim observado por eles me levasse à loucura – e o ruído não parava de aumentar. Ah! Meu Deus! O que é que eu podia fazer? Esbravejei, vociferei, praguejei! Peguei a cadeira em que estivera sentado e pus-me a raspá-la nas tábuas do assoalho, mas o ruído excedia a tudo e aumentava mais e mais e mais. Tornou-se mais alto... mais alto... mais alto! E ainda assim os homens conversavam placidamente e sorriam. Seria possível que não estivessem ouvindo? Santíssimo Deus! Não e não! Estavam ouvindo, sim! Suspeitavam de mim! Sabiam de tudo! E zombavam do pavor que eu sentia! Foi isso que pensei, e é o que penso ainda. Mas qualquer coisa seria preferível a essa agonia! Qualquer coisa seria mais suportável que esse escárnio! Eu não podia suportar aqueles sorrisos hipócritas por nem mais um segundo! Senti que tinha de gritar ou então morreria!... E então, outra vez!... ouçam! Mais alto... Mais alto... Mais alto!...

        “Canalhas!”, gritei, “parem com esse fingimento! Confesso o crime! Arranquem logo as tábuas!... Está aqui! aqui!... está aqui o bater desse coração hediondo!”

POE, Edgar Allan. O coração delator. Trad. de Eliana Rossi para esta obra. Disponível em: http://www.eapoe.org/works/reading/pt043r1.htm. Acesso em: 17 abr. 2010.

Fonte: Português – Literatura, Gramática e Produção de texto – Leila Lauar Sarmento & Douglas Tufano – vol. 2 – Moderna – 1ª edição – São Paulo, 2010, p. 188-192.

Entendendo o conto:

01 – Qual a principal motivação do narrador para matar o velho?

a) A cobiça pelo ouro do velho.

b) A necessidade de vingança por um mal passado.

c) A obsessão pelo olho do velho.

d) A vontade de testar seus próprios limites.

02 – Qual a característica mais marcante do narrador?

a) Calma e racionalidade.

b) Loucura e instabilidade emocional.

c) Bondade e compaixão.

d) Inteligência e astúcia.

03 – Qual o papel do som do coração batendo na história?

a) É um símbolo da consciência culpada do narrador.

b) Representa o ritmo frenético da vida na cidade.

c) É uma alucinação causada pela loucura do narrador.

d) É um som natural da casa antiga.

04 – Por que o narrador confessa o crime para os policiais?

a) Porque sente remorso e deseja ser punido.

b) Porque acredita que eles já sabem a verdade.

c) Porque a culpa o tortura e ele não aguenta mais esconder o crime.

d) Porque quer provocar medo e confusão nos policiais.

05 – Qual o significado do título "O Coração Delator"?

a) Refere-se ao coração físico do velho.

b) Simboliza a consciência culpada do narrador.

c) Representa a loucura que domina o narrador.

d) É uma metáfora para a cidade onde se passa a história.

06 – Qual a principal lição que podemos tirar da história?

a) A loucura é uma doença incurável.

b) A culpa pode levar à destruição.

c) A obsessão pode cegar as pessoas.

d) A justiça sempre prevalece.

07 – Qual o gênero literário ao qual pertence "O Coração Delator"?

a) Romance histórico.

b) Conto de fadas.

c) Conto de terror gótico.

d) Crônica policial.

 

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