Crônica: Dê uma chance ao ser humano
Tutty Vasques
A vizinha tocou a campainha e, quando
abri a porta, surpreso com a visita inesperada, ela entrou, me abraçou forte e
falou devagar, olhando fundo nos meus olhos: "Você tem sido um vizinho
muito compreensivo e eu ando muito relapsa na criação dos meus cachorros. Isso
vai mudar!" Desde então, uma série de procedimentos na casa em frente à
minha acabou com um pesadelo que me atormentou por mais de um ano. Sei que todo
mundo tem um caso com o cachorro do vizinho para contar, mas, com final feliz
assim, francamente, duvido. A história que agora passo a narrar do início
explica em grande parte por que ainda acredito no ser humano – ô, raça!
Meus vizinhos, pelo menos assim os vejo
da janela lá do cafofo, não são pessoas comuns. Falo de gente especial, um
casal de artistas, ele músico, ela bailarina, dupla de movimentos suaves e
silenciosos, olhar maduro, fuso horário próprio e descompromisso amplo, geral e
irrestrito com a pressa na execução das tarefas domésticas que assumem sem a
ajuda de ninguém. A família como se imaginava nos anos 60. Um cuida do jardim,
faz compras de bicicleta, bate o tapete na sacada do 2º andar. Outro lava a
calçada, cozinha (sempre os imaginei vegetarianos), apara a hera na fachada de
pedra... A paz mora do outro lado da rua e, confesso, morro de inveja quando me
mato de trabalhar noite adentro ali adiante. Queria ser como eles.
Quando o primeiro pastor-alemão chegou
ainda moleque para morar com meus adoráveis vizinhos, a casa de pedra viveu
dias de alegria contagiante. O bicho era uma gracinha, foi crescendo, começou a
latir, mas nada que quebrasse a harmonia do lugar. (Eu moro, esqueci de dizer,
no paraíso.) Quando, logo depois do primeiro acasalamento, o segundo pastor
alemão fez crescer a família, cada paralelepípedo da minha rua pressentiu o que
estava para acontecer. Ou não! De qualquer forma, eu achava que, se porventura
aquilo virasse o inferno que se anunciava, outro vizinho decerto perderia a paciência
antes de mim, que, afinal, virei tiete do jeito de viver que espiava pela
janela do escritório de casa. Eu ir lá reclamar, nunca!
Não sei se os outros vizinhos decidiram
em assembleia que esperariam a todo custo por uma reação minha, mas, para
encurtar a história, o fato é que, um ano e tanto depois da chegada do primeiro
pastor alemão àquela casa, eu tive um ataque, enlouqueci, surtei. Imagine o
mico: vinha chegando da rua com meus filhos – gêmeos de 10 anos –, chovia
baldes, eu não conseguia achar as chaves e os bichos gritavam como se fôssemos
assaltantes de banco. Segura o guarda-chuva! Cadê as chaves? Será que não
podiam ao menos parar de latir um pouco, caramba?
– Cala a boooooocaaaa! – gritei para
ser ouvido em todo o bairro. Os cachorros emudeceram por dez segundos. Fez-se
um silêncio profundo na Gávea. Os garotos me olhavam como se estivessem vendo
alguém assim, inteiramente fora de si, pela primeira vez na vida. Eu mesmo não
me reconhecia, mas, à primeira rosnada que se seguiu, resolvi ir em frente,
impossível recuar: "Cala a booooocaaaa! Cala a boooocaaaaa!" Silêncio
total. Os meninos estavam agora admirados: acho que jamais tinham visto aqueles
bichos de boca fechada.
Ninguém apareceu na janela, havia luz
acesa em muitas casas e eu ali, encharcado, decidi falar para ser ouvido até no
Leblon. "Não é possível que ninguém se incomode com esses cachorros! Estão
todos surdos?" Acho que, intimidada, a chuva parou. A cena era patética.
Fui salvo pelas malditas chaves, que, enfim, apareceram no fundo da mochila.
Entrei rápido com as crianças, entre arrasado e aliviado. Achei na hora que
devia conversar com meus filhos, que melhor ainda seria escrever com eles uma
carta educada e sincera explicando a situação aos nossos vizinhos preferidos.
Comecei pedindo desculpa pela explosão
daquela noite, mas pedia licença para contar o drama que se vivia do lado de cá
da rua. Havia muito tempo não entrava nem saía de casa sem que os cães dessem
alarme de minha presença na rua. Tinha vivido uma época de separações, morte de
gente muito querida, além de momentos de intensa felicidade, sempre com aqueles
bichos latindo sem parar. De manhã, de tarde, de noite, de madrugada, manja
pesadelo? "Seus cachorros são insuportáveis e, se vocês nada fizerem a
respeito – estamos no Brasil, tudo é possível –, eu vou me embora, me mudo,
sumo daqui..." – escrevi algo assim, mais resignado que irritado, o
arquivo original sumiu do computador.
Mas chegou aonde devia ou a vizinha não
teria me dado aquele abraço comovido na noite em que abri a porta, surpreso com
ela se anunciando no interfone, depois de meu chilique diante de casa. No dia
seguinte chegou carta do marido dela: "Seu incômodo é o nosso, agravado
pelo fato de sermos responsáveis por essas criaturas que adotamos não para
funções policiais, mas por amor mesmo. Try a little bit harder, diz a
canção, e é o que será feito. Desculpe os aborrecimentos. Agradeço sua
paciência e educação".
Desde então – há coisa de um mês,
portanto –, meus vizinhos têm feito o possível para controlar o ímpeto de seus
bichos, que já não me vigiam dia e noite, arrumaram para eles coisa decerto
mais interessante a fazer no quintal. Quando o DNA de Rin-tin-tin ameaça se
manifestar, são chamados à atenção e se calam. Às vezes não acredito que isso
esteja realmente acontecendo neste mundo cão em que vivemos. Se não estou vendo
coisas – o que também ocorre com certa frequência –, o ser humano talvez ainda
tenha alguma chance de dar certo. Pense nisso!
VASQUES, Tutty. In: SANTOS, Joaquim Ferreira dos (Org.). As cem melhores
crônicas brasileiras. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. p. 311-313.
Fonte: Português –
Literatura, Gramática e Produção de texto – Leila Lauar Sarmento & Douglas
Tufano – vol. 2 – Moderna – 1ª edição – São Paulo, 2010, p. 436-438.
Entendendo a crônica:
01
– Qual a principal situação que desencadeia a narrativa?
A principal
situação é o incômodo causado pelos latidos constantes dos cachorros dos vizinhos,
que perturbam a tranquilidade do narrador e de sua família.
02
– Como o narrador descreve seus vizinhos inicialmente?
Inicialmente, o
narrador idealiza seus vizinhos, descrevendo-os como um casal de artistas com
um estilo de vida tranquilo e livre. Ele admira a forma como eles vivem e
contrasta com a sua própria rotina.
03
– Qual a reação do narrador diante da situação?
Inicialmente, o narrador
tenta ignorar o problema, mas com o passar do tempo, o incômodo se torna
insuportável. Ele explode em um momento de frustração, gritando para os
cachorros e expressando sua insatisfação.
04
– Como os vizinhos reagem à atitude do narrador?
Os vizinhos
demonstram compreensão e empatia pela situação do narrador. Eles se sentem
culpados pelo incômodo causado e se comprometem a tomar medidas para resolver o
problema.
05
– Qual a lição aprendida pelo narrador?
O narrador
aprende a importância da comunicação e da empatia nas relações interpessoais.
Ele percebe que, ao expressar seus sentimentos de forma clara e respeitosa, é
possível encontrar soluções para os conflitos.
06
– Qual a mensagem principal da crônica?
A crônica
transmite uma mensagem de esperança e positividade, mostrando que as pessoas
são capazes de mudar e de encontrar soluções para os problemas em comum. Ela
celebra a capacidade de diálogo e a importância de cultivar relações de
vizinhança baseadas no respeito e na compreensão mútua.
07
– Qual o papel da ironia na crônica?
A ironia está
presente na descrição inicial dos vizinhos como um casal idealizado, em
contraste com a realidade dos problemas causados pelos cachorros. Essa ironia
cria um efeito cômico e destaca a complexidade das relações humanas.
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