Crônica: Quem tem olhos
Marina Colasanti
Eu vinha andando na rua e vi a mulher
na janela. Uma mulher como as de antigamente. De cabeça branca e braços pálidos
apoiados no peitoril. Sentada, olhava para fora. Uma mulher como as de antigamente,
posta à janela, espiando o mundo.
Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjC66UmXX7Brq_6EO1PUr1BYDwAY4V3sYWAz2ycbd-0tr6XlW7_t5UyB_c3XlzIypVRxO9agXhPaWxSxqamGqY4o5cohlbsE1iSPwZd3a8LqT_gORtgL1vnFJ_3qGCmkuUjeDwovhLfPQr5jqkUm9F-nVq9ACyC0VRasSp585_Wewf1S3qpzlkqY1UbQvk/s320/JANELA.jpg
Mas a janela não era ao nível da rua,
como as de antigamente. Nem era de uma casa. Era acima da entrada do prédio,
acima da garagem, acima do playground. Era lá no alto. E diante daquela janela
a única coisa que havia para se ver era, do lado oposto da rua, a parede cega
de um edifício.
Não havia árvores. Ou outras janelas.
Somente a parede lisa e cinzenta, manchada de umidade. Alta, muito alta.
De onde estava, assim sentada, a mulher
não podia ver a rua, o movimento da rua, as pessoas passando. Teria tido que
debruçar-se para vê-los. E não se debruçava.
Também não via o céu. Teria tido que
esticar o pescoço e torcer a cabeça para vê-lo lá no alto, acima da parede
cinzenta e do seu próprio edifício, faixa de céu estreita como uma passadeira.
E a mulher mantinha-se composta, o olhar lançado para a frente.
Serena, a mulher olhava a parede
cinzenta.
Não era como nas pequenas cidades onde
ficar à janela é estar numa frisa ou camarote para ver e ser vista, é maneira
astuciosa de estar na rua sem perder o recato da casa, de meter-se na vida
alheia sem expor a própria. Não era uma forma de barricada de participação. Ali
ninguém falava com ela, ninguém a cumprimentava ou via – a não ser eu que
parada na calçada a observava – e não havia nada para ela ver.
A mulher olhava a parede cinzenta. E
parecia estar bem.
E por um instante o bem-estar dela me
doeu, porque acreditei que sorrisse em plena renúncia à vitalidade, que se
mantivesse serena debaixo da canga de solidão e cimento que a cidade lhe
impunha, tendo aberto mão de qualquer protesto. Desejei tirá-la dali ou dar-lhe
uma vista. Depois, entendi.
A mulher olhava a parede cinzenta, mas
diante dela não havia uma parede cinzenta. Havia um telão. Um telão imenso,
imperturbável, onde histórias se passavam. Que ela própria projetava, mas das
quais era devotada espectadora e eventual personagem. Suas fantasias, suas
lembranças, seus desejos moviam-se sobre a parede que já não era cinzenta, que
era o suporte do mundo, ao vivo e em cores. Só ela os via. Mas com que nitidez!
Bem diferente daquela cidadezinha da
Dinamarca onde, em viagem, reparei que havia espelhos estrategicamente
colocados nas janelas, permitindo que se visse a rua sem ter que abrir os
vidros. Espelhos redondos, como retrovisores, onde às pessoas quase escondidas
o mundo certamente aparecia pequeno e distorcido, enevoado pelos vidros e
cortinas.
A mulher da parede não, era grandiosa.
Uma dama em seu elevado posto de observação. Teria podido passar a vida ali, se
apenas alguém lhe desse comida.
E vendo-a tão entretida diante do nada,
e do tudo, ocorreu-me que muitas pessoas olham televisão exatamente como ela
olhava a parede. Sem ver, vendo outra coisa. A família reunida na sala, aquela
luz azulada banhando todos no mesmo tom lunar, imagens na tela pequena, e
alguém em meio à família projetando por cima das imagens criadas em estúdio
outras imagens, mais vívidas, pessoais, criadas no laboratório dos desejos.
Ninguém, na sala, suspeita da sua fuga, ninguém a sabe ausente. Olhando para o
mesmo ponto acreditam estar vendo a mesma coisa. E se tranquilizam na falsa
semelhança.
Olho da rua a mulher à janela e me
alegro. Fechada num apartamento provavelmente pequeno, sem ninguém que lhe dê
muita atenção, acima de uma rua estreita e sem árvores, diante de uma parede
alta e cinzenta, ainda assim não está sozinha nem entediada. Tira de si, como
um ectoplasma, as imagens que o mundo teima em lhe negar, as imagens da vida. E
delas se alimenta. Cria, embora ninguém – talvez nem ela – lhe reconheça a
criação. E com seu olhar planta árvores, acende luzes, faz festa.
Quem tem ouvidos ouça, disse o profeta.
E, ele não disse mas digo eu, quem tem olhos veja.
COLASANTI, Marina. In:
PINTO, Manuel da Costa (Org.). Crônica brasileira contemporânea: antologia de
crônicas. São Paulo: Moderna, 2005. p. 159-161.
Fonte: Português –
Literatura, Gramática e Produção de texto – Leila Lauar Sarmento & Douglas
Tufano – vol. 2 – Moderna – 1ª edição – São Paulo, 2010, p. 476-477.
Entendendo a crônica:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
Recato: recanto, esconderijo.
Canga: domínio, opressão.
Ectoplasma: espécie de substância que envolveria o espírito.
02 – Qual a principal característica da mulher observada
pela narradora?
a)
Sua solidão e isolamento.
b) Sua capacidade de criar um mundo interior rico.
c)
Sua indiferença ao mundo exterior.
d)
Sua tristeza e melancolia.
03
– O que a parede cinzenta representa na crônica?
a)
Um obstáculo à felicidade.
a)
Um símbolo da monotonia da vida urbana.
c) Uma tela para a imaginação da mulher.
d)
Uma metáfora para a solidão.
04
– Qual a diferença entre a mulher da crônica e as pessoas que assistem
televisão, segundo a narradora?
a)
A mulher da crônica é mais feliz.
b)
As pessoas que assistem televisão são mais passivas.
c)
Não há diferença significativa entre elas.
d) A mulher da crônica é mais criativa.
05
– O que a narradora admira na mulher?
a) Sua capacidade de encontrar beleza em um lugar comum.
b)
Sua resignação diante da vida.
c)
Sua capacidade de se adaptar a qualquer situação.
d)
Sua indiferença ao mundo exterior.
06
– Qual o significado da frase "Quem tem olhos veja"?
a)
Uma exortação para enxergar além das aparências.
b)
Uma crítica à passividade das pessoas.
c)
Uma afirmação da importância da imaginação.
d) Todas as alternativas anteriores.
07
– Qual o tom geral da crônica?
a)
Pessimista e melancólico.
b)
Otimista e esperançoso.
c) Reflexivo e contemplativo.
d)
Crítico e denunciador.
08
– Qual o tema central da crônica?
a) A importância da imaginação para superar a adversidade.
b)
A alienação das pessoas diante da realidade.
c)
A solidão na vida urbana.
d)
A importância da arte na vida das pessoas.
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