Romance: O missionário Cap. XII – Fragmento
Inglês de Sousa
[...]
Entregara-se, corpo e alma, à sedução da linda rapariga que lhe ocupara o coração. A sua natureza ardente e apaixonada, extremamente sensual, mal contida até então pela disciplina do Seminário e pelo ascetismo que lhe dera a crença na sua predestinação, quisera saciar-se do gozo por muito tempo desejado, e sempre impedido. Não seria filho de Pedro Ribeiro de Morais, o devasso fazendeiro do Igarapé-mirim, se o seu cérebro não fosse dominado por instintos egoísticos, que a privação de prazeres açulava e que uma educação superficial não soubera subjugar. E como os senhores padres do Seminário haviam pretendido destruir ou, ao menos, regular e conter a ação determinante da hereditariedade psicofisiológica sobre o cérebro do seminarista? Dando-lhe uma grande cultura de espírito, mas sob um ponto de vista acanhado e restrito, que lhe excitara o instinto da própria conservação, o interesse individual, pondo-lhe diante dos olhos, como supremo bem, a salvação da alma, e como meio único, o cuidado dessa mesma salvação. Que acontecera?
No momento dado, impotente o freio moral para conter a. rebelião
dos apetites, o instinto mais forte, o menos nobre, assenhoreara-se
daquele temperamento de matuto, disfarçado em padre de S. Sulpício, Em
outras circunstâncias, colocado em meio diverso, talvez que padre Antônio de
Morais viesse a ser um santo, no sentido puramente católico da palavra, talvez
que viesse a realizar a aspiração da sua mocidade, deslumbrando o mundo com o
fulgor das suas virtudes ascéticas e dos seus sacrifícios inauditos. Mas nos
sertões do Amazonas, numa sociedade quase rudimentar, sem moral, sem
educação... vivendo no meio da mais completa liberdade de costumes, sem a
coação da opinião pública, sem a disciplina duma autoridade espiritual
fortemente constituída... sem estímulos e sem apoio... devia cair na regra
geral dos seus colegas de sacerdócio, sob a influência enervante e corruptora
do isolamento, e entregara-se ao vício e à depravação, perdendo o senso moral e
rebaixando-se ao nível dos indivíduos que fora chamado a dirigir.
Esquecera o seu caráter sacerdotal, a
sua missão e a reputação do seu nome, para mergulhar-se nas ardentes
sensualidades dum amor físico, porque a formosa Clarinha não podia oferecer-lhe
outros atrativos além dos seus frescos lábios vermelhos, tentação demoníaca, e
das suas formas esculturais, assombro dos sertões de Guaranatuba.
Dera-se tão bem com aquele modo de
viver no sítio da Sapucaia, que o futuro não o preocupava um só instante
naqueles rápidos três meses. Passaria naturalmente o resto da existência ao
lado da neta gentil de João Pimenta, gozando os inesgotáveis deleites duma vida
livre de convenções sociais, em plena natureza, embalado pelo canto mavioso dos
rouxinóis e acariciado pelo doce calor dos beijos da sertaneja.
Se alguma vez, no meio daquele torpor
delicioso, um sobressalto o apanhava de repente, acordando a ideia do inferno,
que lhe atravessava o cérebro como um relâmpago, logo recaia na apática tranquilidade
que era a sua situação normal, adiando - com o movimento impaciente de
quem enxota um inseto importuno - o arrependimento que lhe devia remir as
culpas, e que reservava para ocasião própria, como o mergulhador que se
aventura às profundezas do abismo, confiando na corda que o há de chamar à tona
da água na ocasião do perigo.
[...]
SOUSA, Inglês de. O missionário.
São Paulo: Ática, 1991. Fragmento.
Fonte: Português –
Literatura, Gramática e Produção de texto – Leila Lauar Sarmento & Douglas
Tufano – vol. 2 – Moderna – 1ª edição – São Paulo, 2010, p. 136-137.
Entendendo o romance:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Ascetismo: doutrina que considera a disciplina e o autocontrole
indispensáveis ao desenvolvimento espiritual.
·
Açulava: provocava, incitava.
·
Subjugar: dominar.
·
Padre de São Sulpício: padre pertencente à Sociedade de São Sulpício, ordem
religiosa fundada na França em 1645.
·
Fulgor: resplendor, luminosidade.
·
Inauditos: de que nunca se ouviu falar, fora do comum, extraordinários.
·
Coação: pressão, constrangimento.
·
Apática: sem ação, indiferente.
·
Remir: expiar, reparar.
02
– Qual a principal motivação para a queda moral do Padre Antônio de Morais?
A principal
motivação é a natureza ardente e apaixonada do padre, que, reprimida pela
disciplina do seminário, encontra na jovem Clarinha uma oportunidade de saciar
seus desejos. Além disso, a falta de uma sociedade com valores sólidos e a
influência do meio em que vive contribuem para sua queda.
03
– Que papel a hereditariedade e a educação desempenham na formação do caráter
do padre?
A hereditariedade
é vista como um fator determinante, com a influência do pai devasso e da
educação superficial do seminário moldando o caráter do padre. A educação,
embora extensa, é considerada restrita e incapaz de controlar os instintos mais
básicos.
04
– Qual a crítica social presente nesse fragmento?
O fragmento
critica a hipocrisia da sociedade, a falta de valores morais e a influência do
meio sobre o indivíduo. A figura do padre, que deveria ser um exemplo de
virtude, acaba sucumbindo aos prazeres carnais, revelando a fragilidade da
moralidade humana.
05
– Como a natureza influencia o comportamento do padre?
A natureza
exuberante e selvagem dos sertões do Amazonas, com sua beleza e sensualidade,
exerce um fascínio sobre o padre, contribuindo para sua perda de valores e sua
entrega aos prazeres carnais.
06
– Qual a visão do autor sobre o livre-arbítrio e a responsabilidade individual?
O autor parece
apresentar uma visão complexa sobre o livre-arbítrio. Por um lado, ele mostra
como a hereditariedade e o meio influenciam as escolhas do indivíduo. Por outro
lado, ele sugere que o padre tem a capacidade de resistir às tentações e
escolher um caminho diferente.
07
– Que papel a religião desempenha na vida do padre?
A religião,
inicialmente um guia moral, torna-se um fardo para o padre, que se sente
conflito entre seus desejos e os preceitos religiosos. A culpa e o
arrependimento demonstram a força da fé, mesmo que momentaneamente abalada.
08
– Qual o significado da imagem do mergulhador no final do fragmento?
A imagem do
mergulhador simboliza a decisão do padre de adiar o arrependimento e mergulhar
nos prazeres carnais. A corda que o puxará de volta representa a esperança de
redenção, mas também a consciência de que um dia terá que enfrentar as
consequências de seus atos.
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