domingo, 1 de dezembro de 2024

CONTO: VIAGEM À TERRA DE SHAKESPEARE - FRAGMENTO - JOSÉ LINS DO REGO - COM GABARITO

 Conto: Viagem à terra de Shakespeare – Fragmento

           José Lins do Rego

        [...]

        A primavera estava viva e bulindo por toda a parte. As cerejeiras cobriam de cor-de-rosa o verde dos parques onde vacas malhadas, espichadas na grama, tomavam banhos de sol. Carneiros tosados ficavam em rebanhos, na quietude do meio-dia. E havia alguma coisa de poema mansinho, de doce poesia de acalento, sem rugidos furiosos de dor.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgxrtDbPBn0eOpz8OOPTU7qz0Qot7e6Yc0rjv2nHWrwTZRfGKAYrL7Pq_dTlimQ7x6esSAp6IeVQ90_KbncBgrNioJi3GXrWyZD74To8OB7VKgYK-B588UaY_tOBPkdYRbU0tXUsWPJHQaDFYcegBJlJ6n5QQ49LXi7BwqHIB5zpIOI4Z-_wqOgVT4wJXg/s320/CEREJA.jpg


        A manhã de Strarford não era em nada shakespeariana. Mas era de Shakespeare aquela cidade, era bem de Shakespeare aquele vilarejo de casas pequenas, de tristes telhados, de janelas apertadas. Ali nascera e morrera um rival de Deus, o que tivera forças para modelar naturezas humanas com o barro de sua própria lavra. Gênio que fizera almas desabrochar, pedras gemer, fantasmas descer à terra, crimes ascender aos cimos da tragédia.

        Subimos as escadas humildes e frágeis que pisavam os seus pés. Tudo feito para uma vida de pobres, tudo acanhado. Móveis e utensílios de gente de posses reduzidas. Uma moça nos vai dizendo: “Tudo isto que veem é da época. Esse jarro de couro, estes pratos de madeira, estas panelas de cobre”. A mesa de comer é uma miserável mesa de madeira sem trabalho. Todos comiam com as mãos na casa de Shakespeare. A cama de dormir é uma enxerga. Não havia um quadro nas paredes nuas. Assoalho de tábuas remendadas. O maior gênio do século morreu numa casa sombria, sem o mínimo sinal de fartura. Embaixo, na cozinha, há uma espécie de bolandeira. Ali ficavam os meninos amarrados para aprender a andar. As mulheres trabalhavam em almofadas, na feitura de uma renda que dá pena, de tão primitiva. As mulheres nordestinas, as negras dos engenhos, seriam, junto à mãe de Shakespeare, admiráveis artistas. Como os vaqueiros sertanejos, bebiam água em vasos de couro curtido.

        Lá fora é o jardim da casa. Ameixeiras florescem no pátio. Entram turistas para castigarem as pobres tábuas de quatrocentos anos da casa do gênio. Shakespeare em rações para americanos gordos e velhas fanhosas. [...] Saímos para ver a casa da mulher de Shakespeare. havia muita gente parada à porta de uma casa, no fim da rua. Na noite anterior havia sido estrangulada uma moça naquela habitação inocente. Caliban descera na paz de Stratford, para nos mostrar que os monstros de Shakespeare não eram somente de papel e de tinta. [...]

José Lins do Rego. In: O cravo de Mozart é eterno (seleção, organização e apresentação de Ledo Ivo). Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.

Fonte: Linguagem em Movimento – língua Portuguesa Ensino Médio – vol. 1 – 1ª edição – FTD. São Paulo – 2010. Izeti F. Torralvo/Carlos A. C. Minchillo. p. 281.

Entendendo o conto:

01– De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Bulindo: agitando.

·        Bolandeira: grande roda denteada usada nos engenhos para moer a cana-de-açúcar.

·        Acalanto: cantiga suave para adormecer bebês.

·        Caliban: ser horrendo, de corpo disforme, capaz de muita brutalidade.

·        Lavra: criação.

·        Enxerga: colchão grosseiro.

02 – O contraste entre a obra e a vida: Como José Lins do Rego contrasta a grandiosidade da obra de Shakespeare com a simplicidade e a pobreza da vida do dramaturgo? Qual o efeito dessa contraposição na construção do texto?

      Lins do Rego estabelece um contraste marcante entre a grandiosidade da obra de Shakespeare e a simplicidade da vida que o dramaturgo levou. A descrição da casa humilde, dos móveis simples e da vida cotidiana em Stratford-upon-Avon serve como um contraponto à complexidade e à profundidade das peças de Shakespeare. Essa contraposição ressalta a ideia de que a genialidade artística não está necessariamente ligada a uma vida luxuosa ou privilegiada. Ao mostrar a vida "real" por trás da obra, o autor humaniza Shakespeare, aproximando-o do leitor e convidando-o a refletir sobre a natureza da criação artística.

03 – A universalidade do gênio: O autor afirma que Shakespeare foi um "rival de Deus", capaz de modelar naturezas humanas. Como essa afirmação se relaciona com a ideia de que a obra do dramaturgo ultrapassa as barreiras do tempo e do espaço, atingindo uma dimensão universal?

      A afirmação de que Shakespeare era um "rival de Deus" enfatiza a sua capacidade de compreender a natureza humana em profundidade e de criar personagens universais que transcendem as barreiras do tempo e do espaço. As obras de Shakespeare continuam a ser relevantes e a emocionar pessoas de diferentes culturas e épocas, o que demonstra a sua genialidade e a sua capacidade de abordar temas atemporais como o amor, a morte, a ambição e o poder.

04 – A casa como reflexo do homem: A descrição da casa de Shakespeare revela detalhes sobre a vida cotidiana do dramaturgo e de sua família. De que forma essa descrição contribui para a construção de uma imagem mais humana e cotidiana do gênio?

      A descrição detalhada da casa de Shakespeare revela aspectos importantes da sua personalidade e da sua vida. A simplicidade dos móveis e a ausência de objetos de luxo sugerem um homem modesto e pouco apegado aos bens materiais. A casa, como um reflexo do seu dono, revela um homem mais preocupado com a criação artística do que com a ostentação.

05 – A violência e o grotesco: A menção ao assassinato da mulher de Shakespeare introduz um elemento de violência e grotesco no texto. Como esse elemento se relaciona com a obra do dramaturgo e com a própria vida?

      A menção ao assassinato da mulher de Shakespeare introduz um elemento de realismo e de brutalidade na narrativa, contrastando com a idealização romântica que muitas vezes se faz da figura do dramaturgo. Essa violência nos lembra que a vida, mesmo dos grandes gênios, é marcada por tragédias e acontecimentos inesperados. A presença do grotesco também serve para conectar a obra de Shakespeare com a realidade, mostrando que o autor não estava alheio às questões mais sombrias da natureza humana.

06 – O turismo e a banalização: A presença de turistas na casa de Shakespeare é utilizada pelo autor para fazer uma crítica à banalização da cultura e à transformação de um lugar histórico em um mero ponto turístico. Qual a sua opinião sobre essa crítica?

      A crítica à banalização da cultura e à transformação de um lugar histórico em um mero ponto turístico é uma reflexão pertinente sobre a relação entre o passado e o presente. Ao transformar a casa de Shakespeare em um local de peregrinação para turistas, corre-se o risco de reduzir a sua obra a uma mera atração turística, esquecendo o seu valor histórico e cultural. A presença de "americanos gordos e velhas fanhosas" representa uma caricatura do turista desinteressado e superficial, que consome a cultura sem aprofundar-se em seu significado.

 

 

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