Conto: Viagem à terra de Shakespeare – Fragmento
José Lins do Rego
[...]
A primavera estava viva e bulindo por
toda a parte. As cerejeiras cobriam de cor-de-rosa o verde dos parques onde
vacas malhadas, espichadas na grama, tomavam banhos de sol. Carneiros tosados
ficavam em rebanhos, na quietude do meio-dia. E havia alguma coisa de poema
mansinho, de doce poesia de acalento, sem rugidos furiosos de dor.
A manhã de Strarford não era em nada
shakespeariana. Mas era de Shakespeare aquela cidade, era bem de Shakespeare
aquele vilarejo de casas pequenas, de tristes telhados, de janelas apertadas.
Ali nascera e morrera um rival de Deus, o que tivera forças para modelar
naturezas humanas com o barro de sua própria lavra. Gênio que fizera almas
desabrochar, pedras gemer, fantasmas descer à terra, crimes ascender aos cimos
da tragédia.
Subimos as escadas humildes e frágeis
que pisavam os seus pés. Tudo feito para uma vida de pobres, tudo acanhado.
Móveis e utensílios de gente de posses reduzidas. Uma moça nos vai dizendo:
“Tudo isto que veem é da época. Esse jarro de couro, estes pratos de madeira,
estas panelas de cobre”. A mesa de comer é uma miserável mesa de madeira sem
trabalho. Todos comiam com as mãos na casa de Shakespeare. A cama de dormir é
uma enxerga. Não havia um quadro nas paredes nuas. Assoalho de tábuas
remendadas. O maior gênio do século morreu numa casa sombria, sem o mínimo
sinal de fartura. Embaixo, na cozinha, há uma espécie de bolandeira. Ali
ficavam os meninos amarrados para aprender a andar. As mulheres trabalhavam em
almofadas, na feitura de uma renda que dá pena, de tão primitiva. As mulheres
nordestinas, as negras dos engenhos, seriam, junto à mãe de Shakespeare,
admiráveis artistas. Como os vaqueiros sertanejos, bebiam água em vasos de couro
curtido.
Lá fora é o jardim da casa. Ameixeiras
florescem no pátio. Entram turistas para castigarem as pobres tábuas de
quatrocentos anos da casa do gênio. Shakespeare em rações para americanos
gordos e velhas fanhosas. [...] Saímos para ver a casa da mulher de
Shakespeare. havia muita gente parada à porta de uma casa, no fim da rua. Na
noite anterior havia sido estrangulada uma moça naquela habitação inocente.
Caliban descera na paz de Stratford, para nos mostrar que os monstros de
Shakespeare não eram somente de papel e de tinta. [...]
José Lins do Rego. In:
O cravo de Mozart é eterno (seleção, organização e apresentação de Ledo Ivo).
Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.
Fonte: Linguagem em
Movimento – língua Portuguesa Ensino Médio – vol. 1 – 1ª edição – FTD. São
Paulo – 2010. Izeti F. Torralvo/Carlos A. C. Minchillo. p. 281.
Entendendo o conto:
01– De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Bulindo: agitando.
·
Bolandeira: grande roda denteada usada nos engenhos para moer a
cana-de-açúcar.
·
Acalanto: cantiga suave para adormecer bebês.
·
Caliban: ser horrendo, de corpo disforme, capaz de muita brutalidade.
·
Lavra: criação.
·
Enxerga: colchão grosseiro.
02 – O contraste entre a obra
e a vida: Como José Lins do Rego contrasta a grandiosidade da obra de
Shakespeare com a simplicidade e a pobreza da vida do dramaturgo? Qual o efeito
dessa contraposição na construção do texto?
Lins do Rego
estabelece um contraste marcante entre a grandiosidade da obra de Shakespeare e
a simplicidade da vida que o dramaturgo levou. A descrição da casa humilde, dos
móveis simples e da vida cotidiana em Stratford-upon-Avon serve como um
contraponto à complexidade e à profundidade das peças de Shakespeare. Essa
contraposição ressalta a ideia de que a genialidade artística não está necessariamente
ligada a uma vida luxuosa ou privilegiada. Ao mostrar a vida "real"
por trás da obra, o autor humaniza Shakespeare, aproximando-o do leitor e
convidando-o a refletir sobre a natureza da criação artística.
03 – A universalidade do
gênio: O autor afirma que Shakespeare foi um "rival de Deus", capaz
de modelar naturezas humanas. Como essa afirmação se relaciona com a ideia de
que a obra do dramaturgo ultrapassa as barreiras do tempo e do espaço,
atingindo uma dimensão universal?
A afirmação de que
Shakespeare era um "rival de Deus" enfatiza a sua capacidade de
compreender a natureza humana em profundidade e de criar personagens universais
que transcendem as barreiras do tempo e do espaço. As obras de Shakespeare
continuam a ser relevantes e a emocionar pessoas de diferentes culturas e
épocas, o que demonstra a sua genialidade e a sua capacidade de abordar temas
atemporais como o amor, a morte, a ambição e o poder.
04 – A casa como reflexo do
homem: A descrição da casa de Shakespeare revela detalhes sobre a vida
cotidiana do dramaturgo e de sua família. De que forma essa descrição contribui
para a construção de uma imagem mais humana e cotidiana do gênio?
A descrição
detalhada da casa de Shakespeare revela aspectos importantes da sua personalidade
e da sua vida. A simplicidade dos móveis e a ausência de objetos de luxo
sugerem um homem modesto e pouco apegado aos bens materiais. A casa, como um
reflexo do seu dono, revela um homem mais preocupado com a criação artística do
que com a ostentação.
05 – A violência e o grotesco:
A menção ao assassinato da mulher de Shakespeare introduz um elemento de
violência e grotesco no texto. Como esse elemento se relaciona com a obra do
dramaturgo e com a própria vida?
A menção ao
assassinato da mulher de Shakespeare introduz um elemento de realismo e de
brutalidade na narrativa, contrastando com a idealização romântica que muitas
vezes se faz da figura do dramaturgo. Essa violência nos lembra que a vida,
mesmo dos grandes gênios, é marcada por tragédias e acontecimentos inesperados.
A presença do grotesco também serve para conectar a obra de Shakespeare com a
realidade, mostrando que o autor não estava alheio às questões mais sombrias da
natureza humana.
06 – O turismo e a
banalização: A presença de turistas na casa de Shakespeare é utilizada pelo
autor para fazer uma crítica à banalização da cultura e à transformação de um
lugar histórico em um mero ponto turístico. Qual a sua opinião sobre essa
crítica?
A crítica à
banalização da cultura e à transformação de um lugar histórico em um mero ponto
turístico é uma reflexão pertinente sobre a relação entre o passado e o
presente. Ao transformar a casa de Shakespeare em um local de peregrinação para
turistas, corre-se o risco de reduzir a sua obra a uma mera atração turística,
esquecendo o seu valor histórico e cultural. A presença de "americanos
gordos e velhas fanhosas" representa uma caricatura do turista
desinteressado e superficial, que consome a cultura sem aprofundar-se em seu
significado.
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