quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

CONTO: UMA EMBAIXADA - ARTUR AZEVEDO - COM GABARITO

Conto: UMA EMBAIXADA

            Artur Azevedo

        Minervino ouviu um toque de campainha, levantou-se do canapé, atirou para o lado o livro que estava lendo, e foi abrir a porta ao seu amigo Salema.

        -- Entra. Estava ansioso.

        -- Vim, mal recebi o teu bilhete. Que deseja de mim?

        -- Um grande serviço!

        -- Oh, diabo! Trata-se de algum duelo?

        -- Trata-se simplesmente de amor. Senta-te.

        Sentaram-se ambos.

        Eram dois rapagões de vinte e cinco anos, oficiais da mesma Secretaria do Estado; dois colegas, dois companheiros, dois amigos, entre os quais nunca houvera a menor divergência de opinião ou sentimentos. Estimavam-se muito, estimavam-se deveras.

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhgYa3creiZ3dIo6Ar-A5ffsdR4x07ULdSufDzmWc6Zd2bIHoJDTgcbWeHjiif8-YdIFbElAi3_qP8litHwhx6XtqCiV7wOFvgwsbVK-KWGhn3wrrMxyPcx6HgRp9czsI8wwNn3CH0ZbErWB9moHer5dzSIWwHYlLoNRmkzwemb564YINtHf0bThpSKErc/s320/EMBAIXADA.jpg 


        -- Mandei-te chamar – continuou Minervino – porque aqui podemos falar mais à vontade; lá em tua casa seríamos interrompidos por teus sobrinhos. Ter-me-ia guardado para amanhã, na Secretaria, se não se tratasse de uma coisa inadiável. Há de ser hoje por força!

        -- Estou às tuas ordens.

        -- Bom. Lembras-te de um dia ter te falado de uma viúva bonita, minha vizinha, por quem andava muito apaixonado?

        -- Sim, lembro-me. Um namoro...

        -- Namoro que se converteu em amor, amor que se transformou em paixão!

        -- Quê! Tu estás apaixonado?!...

        -- Apaixonadíssimo... E é preciso acabar com isto!

        -- De que modo?

        -- Casando-me; és tu que hás de pedi-la!

        -- Eu?!...

        -- Sim, meu amigo. Bens sabes como sou tímido... Apenas me atrevo a fixá-la durante alguns momentos, quando chego à janela, ou a cumprimentá-la, quando entro ou saio. Se eu mesmo fosse falar-lhe, era capaz de não articular três palavras. Lembras-te daquela ocasião em que fui pedir ao ministro que me nomeasse para a vaga do Florêncio? Pus-me a tremer diante dele, e a muito custo consegui expor o que desejava. E quando o ministro me disse: – Vá descansado, hei de fazer justiça – eu respondi-lhe: – Vossa excelência, se me nomear, não chove no molhado! – Ora, se sou assim com os ministros, que fará com as viúvas.

        -- Mas tu a conheces?

        -- Estou perfeitamente informado: é uma senhora digna e respeitável, viúva do Senhor Perkins, negociante americano. Mora ali defronte, no número 37. Peço-te que a procures imediatamente e lhe faças o pedido da minha parte. És tão desembaraçado como eu sou tímido; estou certo que serás bem sucedido. Dize-lhe de mim o melhor que puderes dizer; advoga a minha causa com a tua eloquência habitual, e a gratidão do teu amigo será eterna.

        -- Mas que diabo! – observou Salema. – Isto não é sangria desatada! Por que há de ser hoje e não outro dia? Não vim preparado!

        -- Não pode deixar de ser hoje. A viúva Perkins vai amanhã para a fazenda da irmã, perto de Vassouras, e eu não queria que partisse sem deixar lavrada a minha sentença.

        -- Mas, se lhe não falas, como sabes que ela vai partir?

        -- Ah! Como todos os namorados, tenho a minha polícia... Mas vai, vai, não te demores; ela está em casa e está sozinha; mora com um irmão empregado no comércio, mas o irmão saiu... Deve estar também em casa a dama de companhia, uma americana velha, que naturalmente não aparecerá na sala, nem estorvará a conversa.

        E Minervino empurrava Salema para a porta, repetindo sempre:

        -- Vai! Vai! Não te demores!

        Salema, saiu, atravessou a rua, e entrou em casa da viúva Perkins.

        No corredor pôs-se a pensar na esquisitice da embaixada que o amigo lhe confiara.

        -- Que diabo! – refletiu ele. – Não sei quem é esta senhora; vou falar-lhe pela primeira vez... Não seria mais natural que o Minervino procurasse alguém que a conhecesse e o apresentasse?... Mas, ora adeus!... Eles namoram-se; é de esperar que o embaixador seja recebido de braços abertos.

        Alguns minutos depois, Salema achava-se na sala da viúva Perkins, uma sala mobiliada sem luxo, mas com um certo gosto, cheia de quadros e outros objetos de arte. Na parede, por cima do divã de repes, o retrato de um homem novo ainda, muito louro, barbado, de olhos azuis, lânguidos e tristes. Provavelmente o americano defunto.

        Salema esperou uns dez minutos.

        Quando a viúva Perkins entrou na sala, ele agarrou-se a um móvel para não cair; paralisaram-se os movimentos, e não pôde reter uma exclamação de surpresa.

        Era ela! Ela!... A misteriosa mulher que encontrara, havia muitos meses, num bonde das Laranjeiras, e meigamente lhe sorrira, e o impressionara tanto, e desaparecera, deixando-lhe no coração um sentimento indizível, que nunca soubera classificar direito.

        Durante muitos dias e muitas noites a imagem daquela mulher perseguiu-o obstinadamente, e ele debalde procurou tornar a vê-la nos bondes, na rua do Ouvidor, nos teatros, nos bailes, nos passeios, nas festas. Debalde!...

        -- Oh! – disse a viúva, estendendo-lhe a mão muito naturalmente, como se fizesse a um velho amigo. – Era o senhor?

        -- Conhece-me? – balbuciou Salema.

        -- Ora essa! Que mulher poderia esquecer-se de um homem a quem sorriu? Quando aquele dia nos encontramos no bonde das Laranjeiras, já eu o conhecia. Tinha-o visto uma noite no teatro e, não sei por quê... por simpatia, creio... perguntei quem o senhor era, não me lembro a quem... Lembra-me que o puseram nas nuvens. Porque nunca mais tornei a vê-lo?

        Diante do desembaraço da viúva Perkins, Salema sentiu-se ainda mais tímido que Minervino – mas cobrou ânimo, e respondeu:

        -- Não foi porque não a procurasse por toda a parte...

        -- Não sabia onde eu morava?

        -- Não, supus que nas Laranjeiras. Vi-a entrar naquele sobrado... e debalde passei por lá um milhão de vezes, na esperança de tornar a vê-la.

        -- Era impossível; aquela é a casa de minha irmã; só abre quando ela vem da fazenda. O sobrado está fechado há oito meses. Mas sente-se... aqui... mais perto de mim... Sente-se, e diga o motivo da sua visita.

        De repente, e só então, Salema lembrou-se do Minervino.

        -- O motivo de minha visita é muito delicado; eu...

        -- Fale! Diga sem rebuço o que deseja! Seja franco! Imite-me!... Não vê como sou desembaraçada? Fui educada por meu marido...

        E apontou para o retrato.

        -- Era americano; educou-me à americana. Não há, creia, não há educação como esta para salvaguardar uma senhora. Vamos fale!...

        -- Minha senhora, eu sou...

        Ela interrompeu:

        -- É o Senhor Nuno Salema, órfão, solteiro, empregado público, literato nas horas vagas, que vem pedir a minha mão em casamento.

        Ela estendeu-lhe a mão, que ele apertou.

        -- É sua! Sou a viúva Perkins, honesta como a mais honesta, senhora das suas ações, e quase rica. Não tenho filho nem outros parentes por meu marido, e uma irmã fazendeira, igualmente viúva. Não percamos tempo!

        Salema quis dizer alguma coisa ela não o deixou falar.

        -- Amanhã parto para a fazenda da minha irmã. Venha comigo, à americana, para lhe ser apresentado.

        Nisto entrou na sala, vindo da rua, apressado, o irmão da viúva Perkins, um moço de vinte anos, muito correto, muito bem trajado.

        -- Mano, apresento-lhe o Senhor Nuno Salema, meu noivo.

        O rapaz inclinou-se, apertou fortemente a mão do futuro cunhado, e disse:

        -- All rigth!...

        Depois inclinou-se de novo e saiu da sala, sempre apressado.

        -- Mas, minha senhora – tartamudeou o noivo muito confundido – imagine que o meu colega Minervino, que mora ali defronte...

        A viúva aproximou-se da janela. Minervino estava na dele, defronte, e, assim que a viu deu um pulo para trás e sumiu-se.

        -- Ah! Aquele moço?... Coitado! Não posso deixar de sorrir quando olho para ele... É tão ridículo com o seu namoro à brasileira!...

        -- Mas... ele... tinha-me encarregado de pedi-la em casamento, e eu entrei aqui sem saber quem vinha encontrar...

        -- Deveras?! – exclamou a viúva Perkins.

        E ei-la acometida de um ataque de riso:

        -- Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!...

        E deixou-se cair no divã:

        -- Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!...

        Salema aproximou-se da viúva, tomou-lhe as mãozinhas, beijou-as, e perguntou:

        -- Que hei de dizer ao meu amigo?

        Ela ficou muito séria, e respondeu:

        -- Diga-lhe que quem tem boca não manda soprar.

AZEVEDO, Artur. Contos. São Paulo: Ed. Três, 1973. p. 131-136.

Fonte: Português – Literatura, Gramática e Produção de texto – Leila Lauar Sarmento & Douglas Tufano – vol. 2 – Moderna – 1ª edição – São Paulo, 2010, p. 239-241.

Entendendo o conto:

01 – Qual a principal situação cômica do conto?

      A principal situação cômica reside no mal entendido e na reviravolta inesperada da história. Minervino, por ser tímido, pede a Salema que o represente em um pedido de casamento, sem saber que Salema já tinha se apaixonado pela mesma mulher em outra ocasião.

02 – Quais os personagens principais do conto e quais suas características?

      Os personagens principais são Minervino e Salema, dois amigos e colegas de trabalho. Minervino é tímido e apaixonado pela vizinha viúva, enquanto Salema é mais extrovertido e já havia se encantado pela mesma mulher em outra ocasião. A viúva Perkins é descrita como uma mulher decidida, inteligente e com um passado interessante.

03 – Qual o papel do humor na história?

      O humor é fundamental para a construção da narrativa, criando situações inusitadas e diálogos engraçados. As reações dos personagens, os mal-entendidos e as reviravoltas inesperadas geram o riso do leitor.

04 – Qual a crítica social presente no conto?

        O conto critica sutilmente a rigidez dos costumes da época, especialmente no que diz respeito aos relacionamentos amorosos. A figura da viúva americana, moderna e independente, contrasta com os costumes mais tradicionais da sociedade brasileira.

05 – Qual o papel da linguagem na construção do humor?

      A linguagem utilizada por Artur Azevedo é simples e direta, com um tom coloquial que aproxima o leitor dos personagens. O humor é construído através de diálogos rápidos e espirituosos, além do uso de expressões populares e gírias da época.

06 – Qual a importância da personagem da viúva Perkins na história?

      A viúva Perkins é uma personagem fundamental para a resolução da trama. Sua personalidade forte e decidida contrasta com a timidez de Minervino e a surpresa de Salema. Ela é a responsável por desvendar o mal-entendido e por propor uma solução inesperada para a situação.

07 – Qual a mensagem principal do conto?

      A mensagem principal do conto é a importância da comunicação e da espontaneidade nos relacionamentos. A timidez de Minervino e o mal-entendido com Salema demonstram como a falta de comunicação pode gerar situações cômicas e até mesmo trágicas. A figura da viúva Perkins representa a mulher moderna e independente, que rompe com os padrões sociais e busca a felicidade de forma autônoma.

08 – Como o conto se encaixa no contexto histórico e social da época em que foi escrito?

      O conto reflete os costumes e valores da sociedade brasileira da época, com suas convenções sociais e expectativas em relação ao casamento e às relações amorosas. A figura da viúva americana representa uma quebra com esses padrões, mostrando uma mulher moderna e independente.

09 – Quais os elementos que tornam "Uma Embaixada" um conto clássico da literatura brasileira?

      A simplicidade da linguagem, a construção de personagens caricatos e a abordagem humorística de temas como o amor e o casamento tornam "Uma Embaixada" um conto clássico da literatura brasileira. A obra de Artur Azevedo continua a divertir e a emocionar os leitores, mesmo após tantos anos de sua publicação.

10 – Qual a importância da leitura de contos como "Uma Embaixada" na atualidade?

      A leitura de contos como "Uma Embaixada" permite que o leitor entre em contato com a cultura e os costumes de uma época passada. Além disso, a obra de Artur Azevedo continua relevante por abordar temas universais como o amor, a amizade e a comunicação, que são importantes para qualquer época. A leitura de contos clássicos enriquece o repertório cultural e contribui para o desenvolvimento da capacidade crítica do leitor.

 

 

  

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