quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

CONTO: FIAPO DE TRAPO - ANA MARIA MACHADO - COM GABARITO

CONTO: FIAPO DE TRAPO
                Ana Maria Machado


       Espantalho tão bonito e elegante nunca se tinha visto por aquelas redondezas. Nem por outras, que ele era mesmo carregado de belezas. Precisava só ouvir a conversinha do Dito Ferreira enquanto montava o espantalho, todo orgulhoso do seu trabalho:
      - Nunca vi coisa igual. O patrão caprichou de verdade. Vai botar no campo um espantalho com roupa de gente ir à festa na cidade.
       E era mesmo. Tudo roupa velha, claro, como convém a um espantalho que se preza. Mas da melhor qualidade, roupa de se ir à igreja em dia de procissão e reza.
        Dito Ferreira mostrava todo prosa:
        --- Esse chapéu é de um tal de veludo. E vejam que beleza essa camisa cor-de-rosa. Tem até coração bordado... O patrãozinho pensou em tudo. Com uma gravata de seda, fez esse cinto estampado. Até a palha do recheio é toda macia e cheirosa.
        Não é que era mesmo, a danada? Tinha um perfume forte, que ajudava a espancar a passarada.
        Ah, porque é preciso também dizer que aquilo tudo dava certo, funcionava tanto... O espantalho elegante era mesmo um espanto. Passarinho nem chegava perto. E lá ficava sozinho, espetado no milharal deserto.
        O patrão ficava feliz com um defensor tão eficiente. Dito Ferreira se alegrava com aquela figura imponente. Que espantalho diferente! Só que eles nem sabiam que diferença era essa.
        Como todo espantalho, esse não andava nem falava, mas tinha o dom de poder sentir as coisas ao seu jeito --- para um boneco de palha, isso era um grande defeito.
        E era só por causa de desenho que tinha bordado no peito. Linhas de cor em forma de coração --- e pronto, lá estava o pobre espantalho sofrendo com a solidão! Ninguém se aproximava dele, ninguém fazia um carinho, e ele ficava tão triste, só, espantando passarinho...
        De longe via uma passarada, de todo tipo e feição. Pintassilgo e saíra, cambaxirra e corruíra, rolinha e corrupião. Pássaro de toda cor, de todo canto e tamanho, de todo a-e-i-o-u --- sabiá, tié, bem-te-vi, curió e nhambu. Vontade de chamar:
        --- Vem cá me ver, bem-te-vi!
        Vontade de mostrar:
        --- Tico-tico, olha lá o teco-teco!
        Mas não adiantava. Ninguém chegava perto. E o tempo passava. Horas e dias, dias e semanas, semanas e meses, meses e anos.
        E o espantalho ficava no tempo. No bom tempo e no mau tempo. No sol que queimava e na chuva que molhava. No mormaço que fervia e no vento que zunia.
        E seu cheiro se gastava, sua cor se desbotava, sua seda desfiava, seu veludo se puía.
        Até que um dia...
        No tempo tem sempre um dia. Um dia em que muda o tempo e um tempo novo se inicia.
        Pois foi o que aconteceu. Houve um dia em que choveu. Mas não foi chuva miúda, foi pra valer, de verdade, foi mesmo um deus-nos-acuda, uma imensa tempestade, de granizo, raio, vendaval, com aguaceiro e temporal, chuva de muito trovão que virou inundação.
        Quando a chuvarada passou e o sol voltou, um arco-íris no céu se formou. E na beleza do dia novo, azul lavado, vieram os pássaros, em bando assanhado, ocupando todo o campo, ciscando no milharal. Livres, soltos, à vontade, numa alegria sem igual.
        Foi aí que Dito Ferreira reparou:
        --- Cadê o espantalho velho?
       Saiu todo mundo procurando. Não acharam. Nem podiam achar. Ele tinha desmanchado, tinha sido carregado, pelo vento espalhado, pela chuva semeado, com a terra misturado, plantado naquele chão, sua palha adubando muito pé de solidão.
        Do que sobrou por aí, foi tudo virando ninho, protegendo com carinho filhotes que iam nascer. Veludo em trapos, seda em farrapos, coração bordado em fiapos, maciezas boas de se aquecer.
        E hoje em dia, sua palha misturada na terra ajuda a plantação a crescer.
        Os trapos de sua seda, o seu forro de bom cheiro, farrapos de seu veludo se espalham desde o galinheiro até a mais alta árvore que tenha um ninho barbudo.
        E em cada ovo que nasce ali por aquele lugar, cada ninhada que se achega à procura de calor, em cada vida a brotar, em cada marca de amor, seu coração sobrevive num fiapinho de cor.

                                      MACHADO, Ana Maria. Quem perde ganha.
                                                 Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.

Entendendo o texto:
01 – Releia a frase do texto:
      “O espantalho elegante era mesmo um espantalho”.
      A palavra espanto vem do verbo espantar. Veja dois significados dessa palavra:
      Espanto. s. m. 1. O que causa medo, assombro, susto.
                          2. Qualidade do que provoca admiração, maravilha.
      Em qual desses sentidos a palavra espanto foi usada na frase do texto?
      A palavra foi usada no sentido de qualidade que causa admiração, maravilha.
02 – Leia:
      “--- Nunca vi coisa igual. O patrão caprichou de verdade. Vai botar no campo um espantalho com roupa de gente ir à festa na cidade.
      E era mesmo. Tudo roupa velha, claro, como convém a um espantalho que se preza. Mas da melhor qualidade, roupa de se ir à igreja em dia de procissão e reza.
     a) De quem é a fala que aparece introduzida por travessão?
      Da personagem Dito Ferreira.

     b) De quem é o restante do comentário a respeito da roupa do espantalho?
      De quem conta a história. Educador: pode aparecer como resposta o / a autor / a. Vamos estudar o narrador na narrativa mais adiante, ainda nesta unidade. Se o aluno já souber, a resposta pode ser “do narrador”.

     c) Pela fala e pelo comentário, podemos perceber algumas características da personagem e dos costumes do lugar onde a história se passa. Que características são essas?
      A personagem parece ser alguém do campo habituado a formas de vestir de pessoas que moram na cidade. A história se passa num lugar em que as pessoas cuidam mais especialmente do seu modo de vestir apenas nos dias de festa ou de eventos religiosos.

03 – Segundo Dito Ferreira, por que o espantalho era tão deferente?
      Porque era um espantalho vestido com roupa da gente ir à festa na cidade: chapéu de veludo, camisa bordada, gravata de seda. Além disso, sua palha era cheirosa e macia.

04 – E, para você, por que o espantalho era diferente?
      Espera-se como resposta que, além da roupa, o que tornava o espantalho diferente era o fato de sentir solidão, ter sentimentos.

05 – Releia o parágrafo para responder à pergunta a seguir.
      “Como todo espantalho, esse não andava nem falava, mas tinha o dom de poder sentir as coisas ao seu jeito --- para um boneco de palha, isso era um grande defeito”.
      Por que o dom de poder sentir era um grande defeito
      Porque, por ser um espantalho, sua tarefa era afugentar os passarinhos, em vez de acolhê-los como amigos e, assim, acabar com a solidão. Por isso, ter sentimentos, era um defeito.

06 – Releia:
      “Do que sobrou por aí, foi tudo virando ninho, protegendo com carinho filhotes que iam nascer”.
      Explique como o espantalho se transformou em ninhos para filhotes de passarinhos.
      Educador: A resposta exige a atenção do leitor para o processo de transformação --- do veludo em trapos, da seda em farrapos, do coração bordado em fiapos. Com os fiapos, os passarinhos fizeram seus ninhos.

07 – Leia o título Fiapo de trapo em voz alta e responda:
     a) Qual é o recurso que a autora utilizou para que ele tivesse um efeito sonoro?
      A rima.

     b) O que significa “fiapo de trapo”?
      “Fiapo de trapo” é um fio curto, ou um pequeno fio, de um pedaço de pano velho, gasto.

     c) Releia o início da história:
“Espantalho tão bonito e elegante nunca se tinha visto por aquelas redondezas”.
Relacione esse início com título Fiapo de trapo. Qual terá sido a intenção da autora ao dar esse título ao texto?
      Espera-se que os alunos percebam que o título é um indício, uma antecipação do final da história: o “espantalho tão bonito” do início da história, depois da tempestade que o destruiu, sobrevive num fiapinho que sobrou do tecido de seu coração

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