Conto: Papéis de circunstância – Fragmento
Cora Coralina
Como me lembro deles...
De muita coisa passada na infância a
gente se esquece, de outras não. Elas nos acompanham a vida inteira, embora não
sejam coisas de profundidade nem tenham em si mesmo conteúdo de alto
ensinamento. Foram simplesmente alguns traços vivos que, repetidos, de certa
forma gravaram-se no disco das impressões deixando marca para sempre. Nos
longos anos que passei longe da velha casa, sobrecarregada com os fardos, mais
arrochos da vida, muita coisa desapareceu da minha lembrança, sobre outras se
fecharam de forma inviolável os escaninhos – melhor direi – as gavetinhas da
memória. Mas aqueles papéis de circunstância e junto a eles, a figura alta,
magra e severa de minha mãe, esse quadro só a morte poderá apagar.
Papéis de circunstâncias eram todos aqueles
papéis que pertenciam a ela, que existiam na casa ou que ali foram deixados por
meu pai, tios e parentes, falecidos ou ausentados. Eram guardados em velhas
canastras de couro tacheadas de amarelo, com arabescos, datas e iniciais e
pesadas fechaduras de ferro. Atulhavam gavetas enormes e escaninhos de segredo.
[...]
Eram papéis amarrados com nastro verde.
Outros lacrados com plastas de um lacre vermelho que já foi de bom uso nas
casas e no correio e que se comprava no comércio em tabletes compridos. Havia
também ali uma caixinha misteriosa com fecho de segredo que criança não tinha
de saber e que não era para se tocar. [...]
Não havia distração para criança
naquele tempo. Era-nos proibido sair à rua ou aparecer à porta, senão em dias
excepcionais, e ainda assim acompanhadas. Eu tinha, portanto, de descobrir meu
pequeno mundo interessante dentro da velha casa e satisfazer minha curiosidade
faminta, violando coisas guardadas. [...]
Cora Coralina. In:
Estórias da casa velha da ponte. São Paulo: Global, 2001, p. 87-90.
Fonte: Linguagem em
Movimento – língua Portuguesa Ensino Médio – vol. 1 – 1ª edição – FTD. São
Paulo – 2010. Izeti F. Torralvo/Carlos A. C. Minchillo. p. 279-280
Entendendo o conto:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Fardos: problemas difíceis de suportar.
·
Nastro: cadarço, fita de algodão.
·
Arrochos: sérias dificuldades.
·
Plastas: que tem consistência moldável, como uma massa mole.
·
Inviolável: que não se pode abrir, danificar.
·
Violando: abrindo sem permissão, devassando.
·
Canastras: baús, caixas.
02 – A memória seletiva: Por
que a narradora se lembra com tanta vivacidade dos "papéis de
circunstância" e da figura de sua mãe, enquanto outros detalhes da
infância parecem ter se apagado? Que papel a emoção e a importância atribuída a
esses elementos desempenham na construção da memória?
A emoção como
gatilho: A intensidade das emoções ligadas
aos "papéis de circunstância" – mistério, proibição, curiosidade –
faz com que essas lembranças se fixem mais profundamente na memória da
narradora.
A importância atribuída
aos objetos: Os papéis representam um pedaço do passado familiar e da
história da casa, carregando consigo um peso simbólico e emocional que os torna
inesquecíveis.
A construção identitária:
As lembranças selecionadas ajudam a construir a identidade da narradora,
moldando sua visão de si mesma e do mundo.
03 – Os papéis como objetos de
fascínio: O que torna os "papéis de circunstância" tão fascinantes
para a criança que a narradora um dia foi? Que mistérios e possibilidades esses
objetos representam para ela? Como a proibição de tocá-los intensifica esse
fascínio?
O mistério e o
proibido: A proibição de tocar nos papéis
desperta a curiosidade da criança, tornando-os ainda mais atraentes.
A imaginação infantil:
A criança projeta suas próprias histórias e significados nos objetos, criando
um universo particular e imaginativo.
A busca por conhecimento:
A curiosidade infantil é um motor que impulsiona a busca por conhecimento e
compreensão do mundo.
04 – A casa como universo: A
velha casa é descrita como um microcosmo repleto de segredos e histórias. De
que forma esse espaço confinado influencia a imaginação da criança e molda sua
percepção do mundo? Como a casa se torna um reflexo do passado familiar?
O microcosmo
familiar: A casa é um espaço que guarda as
histórias e os segredos da família, sendo um reflexo do passado e das
tradições.
O desenvolvimento da
identidade: A casa é o primeiro ambiente que a criança conhece e onde ela
constrói suas primeiras experiências e relações.
A limitação e a expansão:
A casa, ao mesmo tempo em que limita o universo da criança, estimula sua
imaginação e a busca por novos horizontes.
05 – O papel da mulher: A
figura materna é apresentada de forma bastante marcante, associada à severidade
e à guarda de segredos. Qual é o papel da mulher na sociedade retratada no
conto? Como a figura materna se relaciona com os valores e as tradições
familiares?
A figura
materna como guardiã: A mãe é retratada como
a guardiã dos segredos da família, responsável por preservar as tradições e os
valores.
A submissão feminina:
A figura feminina é associada à submissão e ao cumprimento de papéis sociais
predefinidos.
A complexidade da figura
materna: A mãe é uma figura ambígua, que inspira tanto admiração quanto
medo.
06 – O tempo e a memória: A
passagem do tempo é um tema central no conto. Como a narradora concilia as
lembranças da infância com a experiência da vida adulta? De que forma o passado
influencia o presente?
A memória como
construção: A memória não é uma reprodução
fiel do passado, mas uma construção subjetiva e seletiva.
A passagem do tempo e a
transformação: A passagem do tempo transforma as lembranças, dando-lhes
novos significados e nuances.
A nostalgia e a saudade:
As lembranças da infância são marcadas pela nostalgia e pela saudade de um
tempo que já passou.
07 – A linguagem e a
construção do texto: Cora Coralina utiliza uma linguagem rica em detalhes e
imagens sensoriais para descrever os "papéis de circunstância" e a
atmosfera da casa. Como essa linguagem contribui para a criação de um clima de
mistério e nostalgia?
A descrição
detalhada: Cora Coralina utiliza uma
linguagem rica em detalhes para criar uma atmosfera envolvente e realista.
As sensações e as
emoções: A linguagem evoca sensações e emoções, transportando o leitor para
o universo do conto.
A musicalidade: A linguagem poética
de Cora Coralina confere ao texto uma musicalidade e uma beleza únicas.
08 – A importância dos
objetos: Os objetos, como os "papéis de circunstância", desempenham
um papel fundamental na narrativa. De que forma esses objetos se tornam
porta-vozes da história familiar e da identidade da narradora? Qual a relação
entre os objetos e a memória?
Os objetos
como testemunhas do passado: Os objetos
guardam a memória das pessoas e dos acontecimentos, sendo verdadeiros testemunhos
do tempo.
A relação entre objetos e
identidade: Os objetos possuem um valor simbólico e afetivo, contribuindo
para a construção da identidade individual e coletiva.
A materialidade da
memória: Os objetos materializam a memória, tornando-a tangível e palpável.
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