CONTO: As Cocadas
Cora Coralina
Eu devia ter nesse
tempo dez anos. Era menina prestimosa e trabalhadeira à moda do tempo.
Tinha ajudado a fazer
aquela cocada. Tinha areado o tacho de cobre e ralado o coco. Acompanhei rente
à fornalha todo o serviço, desde a escumação da calda até a apuração do ponto.
Vi quando foi batida e estendida na tábua, vi quando cortada em losangos. Saiu
uma cocada morena, de ponto brando, atravessada de paus de canela cheirosa. O
coco era gordo, carnudo e leitoso, o doce ficou excelente. Minha prima me deu
duas cocadas e guardou tudo mais numa terrina grande, funda e de tampa pesada.
Botou no alto da prateleira.
Duas cocadas só... Eu
esperava quatro e comeria de uma assentada oito, dez mesmo. Dias seguidos
namorei aquela terrina, inacessível de noite, sonhava com as cocadas. De dia,
as cocadas dançavam pequenas piruetas na minha frente. Sempre eu estava por ali
perto, ajudando nas quitandas, esperando, aguardando e de olho na terrina.
Batia os ovos, segurava
a gamela, untava as formas, arrumava nas assadeiras, entregava na boca do forno
e socava cascas no pesado almofariz de bronze.
Estávamos nessa lida e
minha prima precisou de uma vasilha para bater um pão-de-ló. Tudo ocupado.
Entrou na copa e desceu a terrina, botou em cima da mesa, deslembrada do seu
conteúdo. Levantou a tampa e só fez: Hiii... Apanhou um papel pardo sujo,
estendeu no chão, no canto da varanda e despejou de uma vez a terrina.
As cocadas moreninhas,
de ponto brando, atravessadas aqui e ali de paus de canela e feitas de coco
leitoso e carnudo guardadas ainda mornas e esquecidas, tinham se recoberto de
uma penugem cinzenta, macia e aveludada de bolor.
Aí minha prima chamou o
cachorro: Trovador... Trovador... e veio o Trovador, um perdigueiro de meu tio,
lerdo, preguiçoso, nutrido e abanando a cauda. Farejou os doces sem interesse e
passou a lamber, assim de lado, com o maior pouco caso.
Eu olhando com uma
vontade louca de avançar nas cocadas.
Até hoje, quando me
lembro disso, sinto dentro de mim uma revolta – má e dolorida – de não ter
enfrentado decidida, resoluta, malcriada e cínica, aqueles adultos negligentes
e partilhado das cocadas bolorentas com o cachorro.
CORALINA,
Cora. O Tesouro da Casa Velha. 3. ed. São Paulo: Global, 2000.p.85-6.
01- Marque (V) para efeitos
de sentidos pertinentes ao texto-discurso e (F) para os efeitos de sentidos não
pertinentes:
a-( V ) percebe-se
que independente da idade, as crianças e adolescentes da época eram submetidos
às atividades domésticas, prática considerada normal, à época;
b-( F ) percebe-se
que ao narrar que participou de todas as etapas da feitura do doce, a menina,
narradora-personagem, pretendeu realçar o quanto se sentiu injustiçada, ao
receber apenas uma cocada;
c-( V ) percebe-se que ao qualificar positivamente o coco,
a narradora-personagem quis sugerir que a escolha da matéria-prima contribui, muitas
vezes, para o pleno resultado do produto;
d-( V ) percebe-se que a narradora-personagem instiga o leitor
a imaginar as sensações que sentiu quando menina, ao qualificar o coco e o
doce, depois de pronto;
e-( F ) Percebe-se que não se apelou para os sentidos
-visual, olfativo, gustativo e tátil- do leitor e da leitora, ao justificar-se
o desejo da menina pelo doce;
f-( F ) percebe-se
que a personagem prima, ao oferecer as cocadas emboloradas ao Trovador,
o cachorro do tio, mostra que o tratamento dispensado aos animais não era dos
melhores;
g-( F ) percebe-se
que a personagem prima, ao oferecer as cocadas emboloradas ao Trovador, o
cachorro do tio, mostra que a maioria dos adultos, à época, dava mais atenção
aos animais que às crianças;
h-( V ) percebe-se
que à época, geralmente, os adultos não ligavam importância aos sentimentos das
crianças e adolescentes;
i-( V ) percebe-se que ao guardar a vasilha contendo as
cocadas, no alto da prateleira, não se tinha intenção de distribuir os doces,
mas sim de guardá-los;
j-( F ) percebe-se
que o fato de colocar a vasilha contendo as cocadas, no alto da prateleira, acentuava
uma prática social comum da personagem prima: a capacidade de partilhar;
l-( F ) percebe-se
que a preocupação exclusiva com o trabalho era uma prática social marcante na
vida das pessoas de antigamente;
k-( F ) percebe-se
a prática social de as tarefas de casa serem repartidas igualmente entre todos
os membros da casa;
l-( F ) percebe-se
a prática social de a cozinha ficar a cargo tanto de homens quanto de mulheres;
m-( V ) percebe-se
como destaque a prática sócio-psicológica da inveja;
n-( V ) percebe-se
como destaque a prática sócio-psicológica da frustração;
o-( F ) percebe-se
que a narradora-personagem, ao relembrar o episódio de quando menina, denota superação
do sentimento negativo que nutria pelos adultos de então.
02-No texto-discurso, percebe-se, como tese central, uma oposição
político-cultural da narradora-personagem a uma prática social dos tempos mais
antigos. Contra o que se protesta:
a- contra a gulodice das crianças;
b- contra o fato de as crianças
trabalharem;
c- contra a rigidez e a insensibilidade com que os adultos tratavam as
crianças;
d-
contra os maus tratos aos animais.
03-O primeiro conflito relevante da narrativa se instala quando:
a- se fazem as cocadas;
b- se distribuem duas cocadas à menina e colocam-se as outras cocadas no
alto da prateleira;
c- se descobre que as cocadas se
emboloraram;
c- se distribuem as cocadas para o
cachorro.
04-O clímax da narrativa transcorre quando:
a- se distribuem duas cocadas à menina e
colocam-se as outras cocadas no alto da prateleira;
b- se descobre que as cocadas se
emboloraram;
c- se distribuem as cocadas ao cachorro, com a menina salivando de
vontade comê-las;
d- a narradora-personagem lembra do
episódio já adulta.
05-Uma relação trabalhista permanece existindo, tanto na época histórica
em que teria vivido a narradora-personagem, quanto nos dias de hoje. Qual?:
a- o trabalhador trabalha duro e os
chefes o recompensam com uma grande quantidade das riquezas produzidas;
b- o trabalhador trabalha duro e os
chefes não o recompensam como deveria, retornando-lhe apenas uma mísera parte das
riquezas produzidas;
c- o trabalhador trabalha duro e o
chefe reparte em igualdade as riquezas produzidas com o trabalhador;
d- o trabalhador trabalha
duro e vê o fruto do seu trabalho, as riquezas produzidas, sendo distribuídas
para o bem comum de toda a sociedade.
06- Em
“Até hoje, quando me lembro disso, sinto dentro de mim uma revolta – má
e dolorida – de não ter enfrentado decidida, resoluta, malcriada e
cínica, aqueles adultos negligentes e partilhado das cocadas bolorentas
com o cachorro.”, os adjetivos grifados:
a-
caracterizam-qualificam
positivamente a REVOLTA, os ADULTOS e as COCADAS;
b-caracterizam-qualificam
negativamente a REVOLTA e os ADULTOS;
c-caracterizam-qualificam
negativamente a narradora-personagem;
d-
caracterizam-qualificam negativamente a REVOLTA, os ADULTOS e as COCADAS.
07-Em
“Batia os ovos, segurava a
gamela, untava as formas, arrumava as assadeiras, entregava
na boca do forno e socava no pesado almofariz de bronze.”, a quem ou
a que se referem as ações acima sublinhadas?
A narradora-personagem.
08-Em
“Batia os ovos, segurava a gamela, untava
as formas, arrumava as assadeiras, entregava na boca do forno e socava no
pesado almofariz de bronze.”, infira qual objeto a narradora-personagem
“arrumava nas assadeiras” ou “entregava na boca do forno”?
As formas com os bolos ou outras
preparações culinárias.
09-Algumas
palavras utilizadas no conto sofreram modificações, ao longo do tempo, outras
até caíram em desuso (ficaram arcaicas). Pesquise o significado das palavras
abaixo:
a-aguando;
esperando ansiosamente.
b-almofariz;
recipiente de pedra ou
metal, usado para triturar alimentos ou outros materiais.
c-apuração;
ato de levar ao ponto
certo, de refinar.
d-areado;
ato de esfregar com
areia para limpar.
e-deslembrada;
esquecida, distraída.
f-escumação;
ato de retirar a espuma.
g-gamela; : recipiente grande, geralmente de
madeira, usado para misturar alimentos
h-terrina; recipiente fundo e
largo, com tampa, usado para guardar alimentos
i-untava; passava
gordura ou outro tipo de substância em uma superfície
j-quitandas: doces ou salgados
vendidos em pequenas quantidades
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