quinta-feira, 26 de abril de 2018

CRÔNICA: ANÚNCIO DE JOÃO ALVES - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - COM GABARITO

CRÔNICA: ANÚNCIO DE JOÃO ALVES
                      Carlos Drummond de Andrade


        Figura o anúncio em um jornal que o amigo me mandou, e está assim redigido:
        À procura de uma besta – A partir de 6 de outubro do ano cadente, sumiu-me uma besta vermelho-escuro com os seguintes característicos: calçada e ferrada de todos os membros locomotores, um pequeno quisto na base da orelha direita e crina dividida em duas seções em consequência de um golpe, cuja extensão pode alcançar de 4 a 6 centímetros, produzido por um jumento.
        Essa besta, muito domiciliada nas cercanias deste comércio, é muito mansa e boa de sela, e tudo me induz ao cálculo de que foi roubada, assim que hão sido falhas todas as indagações.
        Quem, pois, apreende-la em qualquer parte e a fizer entregue aqui ou pelo menos notícia exata ministrar, será razoavelmente remunerado. Itambé do Mato Dentro, 19 de novembro de 1899. João Alves Júnior.
        55 anos depois, prezado João Alves Júnior, tua besta vermelho-escura, mesmo que tenha aparecido, já é pó no pó. E tu mesmo, se não estou enganado, repousas suavemente no pequeno cemitério de Itambé. Mas teu anúncio continua um modelo no gênero, se não para ser imitado, ao menos como objeto de admiração literária.
        Reparo antes de tudo na limpeza de tua linguagem. Não escreveste apressada e toscamente, como seria de esperar de tua condição rural. Pressa, não a tiveste, pois o animal desapareceu a 6 de outubro, e só a 19 de novembro recorreste à Cidade de Itabira. Antes, procedeste a indagações. Falharam. Formulaste depois um raciocínio: houve roubo. Só então pegaste da pena, e traçaste um belo e nítido retrato da besta.
        Não disseste que todos os seus cascos estavam ferrados; preferiste dizê-lo “de todos os seus membros locomotores”. Nem esqueceste esse pequeno quisto na orelha e essa divisão da crina em duas seções, que teu zelo naturalista e histórico atribuiu com segurança a um jumento.
        Por ser “muito domiciliada nas cercanias deste comércio”, isto é, do povoado, e sua feirinha semanal, inferiste que não teria fugido, mas antes foi roubada. Contudo, não o afirmas em tom peremptório: “tudo me induz a esse cálculo”. Revelas aí a prudência mineira, que não avança (ou não avançava) aquilo que não seja a evidência mesma. É cálculo, raciocínio, operação mental e desapaixonada como qualquer outra, e não denúncia formal.
        Finalmente – deixando de lado outras excelências de tua prosa útil – a declaração final: quem a apreender ou pelo menos “notícia exata ministrar”, será “razoavelmente remunerado”. Não prometestes recompensa tentadora; não fazes praças de generosidade ou largueza; acenas com o razoável, com a justa medida das coisas, que deve prevalecer mesmo no caso de bestas perdidas e entregues.
        Já é muito tarde para sairmos à procura de tua besta, meu caro João Alves do Itambé; entretanto essa criação volta a existir, porque soubeste descrevê-la com decoro e propriedade, num dia remoto, e o jornal a guardou e alguém hoje a descobre, e muitos outros são informados da ocorrência. Se lesses os anúncios de objetos e animais perdidos, na imprensa de hoje, ficarias triste. Já não há essa precisão de termos e essa graça no dizer, nem essa moderação nem essa atitude crítica. Não há, sobretudo, esse amor à tarefa bem feita, que se pode manifestar até mesmo num anúncio de besta sumida.

                            Andrade, Carlos Drummond de. Fala, amendoeira.
                            8. ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1978. p. 82-4.

Entendendo o texto:
01 – Podemos dizer que no texto “Anúncio de João Alves” predomina a função metalinguística da linguagem? Justifique sua resposta.
     O texto fala de outro texto, daí seu caráter predominantemente metalinguístico.

02 – Além da função metalinguística, que outra função da linguagem é importante no texto? Justifique sua resposta.
     A função expressiva, uma vez que seu produtor exterioriza opiniões e julgamento acerca do texto de João Alves.

03 – Aponte a passagem do texto em que o cronista indica a origem de seu interesse pelo anúncio de João Alves.
     “Mas teu anúncio continua um modelo no gênero, se não para ser imitado, ao menos como objeto de admiração literária”.

04 – Qual a sequência adotada pelo cronista para comentar o texto de João Alves?
     Primeiramente, Drummond comenta o apuro da linguagem de João Alves. A seguir, aponta as passagens do texto que mais lhe agradam e as comenta obedecendo à sequência do próprio anúncio. No final de seu texto, Drummond faz uma avaliação geral do trabalho de João Alves.

05 – Em que ponto da crônica o autor expõe mais claramente sua opinião acerca do anúncio de João Alves?
     No penúltimo parágrafo, mais especificamente em sua parte final.





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