CRÔNICA: O CALO
– O
senhor vai precisar extrair esse calo, seu Antônio.
– Mas, doutor!?
– Coisa simples! Amanhã, lá pelas oito, o
senhor passa pelo hospital e num instante nós retiramos esse incômodo.
Anestesia local. Não vai doer nada.
O pacato Antônio, funcionário público há
trinta anos, saiu do consultório cabisbaixo e meio nervoso. “Que ideia! –
Depois de vinte e dois anos, vivendo com esse calo. Meu calo de estimação! A
Eusébia resolveu implicar com ele! Coisa de mulher… Logo agora que eu faria
bodas de prata com o calo!?”, praguejou Antônio entre dentes.
Eusébia, em casa, recebeu a notícia com
satisfação. Aliás já esperava por isso. Afinal, há vinte e dois anos Antônio
reclamava, dizia que o calo era o centro de seus problemas. Mas tirar o calo,
tomar alguma providência, que é bom, nada. Nada mesmo.
– Graças a Deus, Antônio. Deus ouviu
minhas preces.
– Tô arrependido, Eusébia!
– Arrependido!? Por quê?
– (…) O calo sempre me avisou sobre o
tempo. É melhor que o Serviço de Meteorologia! Se vier chuva ele dói, uma
dorzinha fina; se for calor, ele lateja e se for nublado, ele estufa. Até
pensei levar o calo no programa do Sílvio Santos, você se lembra?
– Quer saber de uma coisa? Sempre
detestei esse calo. Eu gostaria de ter um marido com pé perfeito. Perfeito,
entendeu?
Assim
foi. Antônio se arrumou, tomou café, não deu uma palavra com Eusébia e foi para
o hospital. Algo chateado, ansioso, pois afinal de contas, havia vinte e dois
anos de convivência diária com aquele calo feio, macerado, duro, mas no fundo
adorável.
Antônio
subia as escadas principais do hospital quando, maldito calo,
a-dor-fininha-sinal-de-chuva começou. Foi a conta, Antônio tropeçou e caiu.
Quebrou o calcanhar.
Uivando de dor foi levado por dois
atentos enfermeiros até a sala de raio-X. Colocado numa maca, lá ficou
esperando meia hora, quarenta minutos e, insuportável calcanhar, como não
aparecia ninguém, ele resolveu, de mansinho, se levantar e ir chamar alguém. E
então aconteceu o pior – Antônio caiu da maca e se arrebentou todo. Diagnóstico:
fratura da bacia com estiramento parcial da coluna. Sua família foi comunicada;
seu médico, simples dermatologista, chamou uma equipe de ortopedistas, para
tratar do caso, e nosso herói todo esticado (e tracionado) foi internado no
quarto 315.
– Doutor, a culpa foi minha! Fui eu que
obriguei o Antônio a vir aqui.
– Calma, Dona Eusébia. Não chore, por
favor. Seu marido vai para casa dentro de 15 dias.
– Quinze dias, doutor?!
– Dona Eusébia, foi o destino! Os ossos
demoram um pouco para se consolidar. Tenha paciência. Ele está sendo muito bem
tratado. Os ortopedistas só usaram dezoito quilos de gesso.
– Só!? (E chorou.)
– O importante é que ele fique imóvel.
Completamente imóvel.
– Dona Eusébia, venho lhe comunicar que
seu marido pegou uma pneumonia.
– Doutor!? Como isso aconteceu?
– É porque ele está imóvel há muito
tempo.
– Mas não foi o senhor mesmo que disse
que ele não devia se mexer, doutor?
– Mas essas coisas acontecem, Dona
Eusébia. Fique calma, por favor. Nós vamos chamar um pneumologista.
– Um, o quê? (E chorou.)
– Um médico de pulmão!
E foi o médico de pulmão entrar para
começar a desgraça. Primeiro ele meteu um tubo goela abaixo de Antônio, depois
colocou-o no soro, deu uma série de injeções e comunicou à chorosa Eusébia:
– Dona Eusébia, infelizmente apareceu um
novo problema.
– Outro!? Qual, doutor?
– Examinando o pulmão, notei que o
coração de seu marido não anda nada bem. Tá trotando mais que cavalo no grande
prêmio.
– E agora?
– Vamos chamar um cardiologista!
– Eu não quero ficar viúva não! (E
Eusébia chorou.)
– Calma, Dona Eusébia. Tudo vai dar
certo!
O cardiologista entrou como um tufão. Era
eficientíssimo. Colocou o estetoscópio no peito, pescoço e barriga do Antônio.
Ouviu tudo a que tinha direito. Depois tirou a pressão, um eletrocardiograma e
disse:
– Dona Eusébia, o seu marido não tem nada
de coração.
Eusébia já vestida de preto, pois
esperava pelo pior, sorriu toda alegra.
– É mesmo, doutor? Que bom! Então não vai
acontecer o pior?
– Pelo coração não! Mas pelo cérebro eu
não dou certeza alguma. Chame um neurologista imediatamente! A propósito, os
rins não estão funcionando bem. Aproveite e chame um nefrologista também.
Antônio estava agonizante. A equipe
médica confabulava em torno do leito. Enfermeiras engomadíssimas andavam e
zuniam por toda parte. Máquinas, termômetros e aparelhos dançavam em torno de
Antônio que dava os últimos suspiros. Eusébia, acabada, isolada, assistia a
tudo com desespero e dor. Se sentia culpada e pressentia sua existência sem
Antônio, sem amor ou carinho.
Nesse instante, um dos médicos se
aproximou e Eusébia, num estalo, falou:
– Doutor, eu queria dar um último beijo
nele. Um afago, um último adeus!
Todos os médicos concordaram de imediato
e Eusébia se postou junto ao leito. Mas onde beijar? Se Antônio era uma massa
de gazes, tubos, gessos e fios. Eusébia olhou bem e achou um pé descoberto, a
única parte possível de ser acariciada. Eusébia se curvou e viu, imaginem, o
calo. Altivo, intacto e vivo. E, sem raiva ou vergonha, Eusébia beijou o calo
do amado. E para surpresa de todos o moribundo se mexeu.
Acreditem, no quarto beijo Antônio
espirrou. E, de afago em afago no calo, Eusébia conseguiu o impossível – curar
Antônio.
Enfim, Antônio voltou ao lar com o calo e
eles viveram felizes para sempre.
Moral da história – O amor tem razões
que até os médicos desconhecem.
DOC
COMPARATO. O melhor da crônica brasileira.
Livraria
José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1981.
Entendendo o texto:
01 –
Complete a frase com a palavra que indica a especialidade médica.
a)
O especialista em doenças do coração chama-se:
Cardiologista.
b)
O especialista em doenças renais ou dos rins chama-se:
Nefrologista.
c)
O especialista que corrige as deformidades dos ossos chama-se:
Ortopedista.
d)
O especialista em doenças do pulmão chama-se:
Pneumologista.
e)
O especialista em doenças da pele chama-se:
Dermatologista.
f)
O especialista em doenças do cérebro chama-se:
Neurologista.
02 –
Localize e transcreva as palavras do texto que possuem os significados abaixo:
a)
Arrancar, tirar de dentro: Extrair.
b)
Desagradável, enfadonho: Incômodo.
c)
Que é amigo da paz, pacífico, sossegado: Pacato.
d)
Abatido, humilhado: Cabisbaixo.
e)
Moído, torturado: Macerado.
f)
Determinação de uma doença pelos sintomas: Diagnostico.
g)
Tornar sólido, resistente: Consolidar.
h)
Trocar ideias, conversar: Confabular.
i)
Sentir com antecipação, pressagiar, suspeitar: Pressentia.
j)
Pôr-se, permanecer em um lugar: Postou.
k)
Não tocado, inteiro: Intacto.
03 – Na frase:
“Dona Eusébia, venho lhe comunicar que seu marido pegou uma pneumonia.” O verbo em destaque tem o sentido de
adquirir uma enfermidade. O verbo pegar pode ter vários significados. Crie
frases usando o verbo pegar com os seguintes sentidos:
Pegar = agarrar, prender, segurar
Pegar = subir ou instalar-se em
um veículo para nele viajar
Pegar = chegar a tempo, alcançar
Pegar = aceitar fazer,
comprometer-se a realizar um trabalho
Pegar = seguir por determinada
direção
Pegar = ser condenado
Resposta pessoal do aluno.
04 – Quais os principais
personagens do texto?
Antônio e Eusébia.
05 – Que tipo de homem era
Antônio e qual a sua profissão?
Era um homem pacato e funcionário público
há trinta anos.
06 – Por que Antônio procurou um
médico?
Por insistência de sua esposa, que
julgava o calo do marido como um gerador de problemas.
07 – Por que,
apesar de reclamar do calo há vinte e dois anos, Antônio não tomava nenhuma
providência?
Porque o considerava como “calo de
estimação”.
08 – Para
Antônio, o calo desempenhava importante função. Qual era essa função?
O calo funcionava como indicador
meteorológico.
09 – Que fato
originou a primeira desgraça de Antônio já no hospital?
Seu calo começou a doer e ele caiu,
quebrando o calcanhar.
10 – Qual foi a causa do segundo
infortúnio de Antônio?
Seu calo começou a doer e ele caiu,
quebrando o calcanhar.
11 – Como se sentiu Eusébia após
o duplo acidente?
Sentiu-se culpada.
12 – Que frase
do texto nos revela claramente que Eusébia era pessimista?
“Eusébia já vestida de preto, pois
esperava o pior…”
13 –
Quando o paciente parecia não ter mais salvação, Eusébia resolveu despedir-se,
dando-lhe um beijo. Como se deu esse fato?
Por não achar outro lugar, Eusébia beijou
o calo do marido e a partir daí começou a cura.
14 – Qual
foi, na sua opinião, a razão principal para que Antônio se curasse?
Resposta pessoal do aluno.
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