RELATO: EM
ALGUM LUGAR DO PASSADO
Um
olhar, um carinho, uma palavra amiga... Às vezes, pequenos gestos podem marcar
vidas, provocar descobertas, selar destinos. Em algum lugar do passado, está um
pouco de nós, está aquilo que deu origem ao ser que somos hoje. Que pessoas teriam
iluminado nossos caminhos? Que palavras nos teriam despertado e desafiado para
a viagem que se iniciava?
QUE SAUDADE DA PROFESSORINHA
A primeira presença em meu
aprendizado escolar que me causou impacto, e causa até hoje, foi uma jovem
professorinha. É claro que eu uso esse termo, professorinha, com muito afeto.
Chamava-se Eunice Vasconcelos, e foi com ela que eu aprendi a fazer o que ela
chamava de “sentenças”.
Eu já sabia ler e escrever quando cheguei à escolinha particular de Eunice, aos
6 anos. Era, portanto, a década de 20. Eu havia sido alfabetizado em casa, por
minha mãe e meu pai, durante uma infância marcada por dificuldades financeiras,
mas também por muita harmonia familiar. Minha alfabetização não me foi nada
enfadonha, porque partiu de palavras e frases ligadas à minha experiência,
escritas com gravetos no chão de terra do quintal.
Não houve ruptura alguma entre o novo mundo que era a escolinha de Eunice e o
mundo das minhas primeiras experiências – o de minha velha casa do Recife, onde
nasci, com suas salas, seu terraço, seu quintal cheio de árvores frondosas. A
minha alegria de viver, que me marca até hoje, se transferia de casa para a
escola, ainda que cada uma tivesse suas características especiais. Isso porque
a escola de Eunice não me amedrontava, não tolhia minha curiosidade.
Quando Eunice me ensinou era uma meninota, uma jovenzinha de seus 16, 17 anos.
Sem que eu ainda percebesse, ela me fez o primeiro chamamento com relação a uma
indiscutível amorosidade que eu tenho até hoje, e desde há muito tempo, pelos
problemas da linguagem e particularmente os da linguagem brasileira, a chamada
língua portuguesa no Brasil. Ela com certeza não me disse, mas é como se
tivesse dito a mim, ainda criança pequena: “Paulo, repara bem como é bonita a
maneira que a gente tem de falar! ...” É como se ela me tivesse chamado.
Eu me entregava com prazer à tarefa de “Formar sentenças”. Era assim que ela
costumava dizer. Eunice me pedia que colocasse numa folha de papel tantas
palavras quantas eu conhecesse. Eu ia dando forma às sentenças com essas
palavras que eu escolhia e escrevia.
Fui criando naturalmente uma intimidade e um gosto com as ocorrências da língua
– os verbos, seus modos, seus tempos... A professorinha só intervinha quando eu
me via em dificuldade, mas nunca teve a preocupação de me fazer decorar regras
gramaticais.
Mais tarde ficamos amigos. Mantive um contato próximo com ela, sua família, sua
irmã Débora, até o golpe de 1964. Eu fui para o exílio e, de lá, me
correspondia com Eunice. Tenho impressão de que durante dois anos ou três
mandei cartas para ela. Eunice ficava muito contente.
Não
se casou talvez isso tenha alguma relação com a abnegação, a amorosidade que a
gente tem pela docência. E talvez ela tenha agido um pouco como eu: ao fazer a
docência o meio da minha vida, eu termino transformando a docência no fim da
minha vida.
Eunice
foi professora do Estado, se aposentou, levou uma vida bem normal. Depois
morreu, em 1977, eu ainda no exílio. Hoje, a presença dela são saudades, são
lembranças vivas. Me faz até lembrar daquela música antiga, do Ataulfo Alves:
“Ai, que saudade da professorinha, que me ensinou o bê-á-bá”.
Paulo
Freire. Nova Escola, n° 81.
01 – No
texto lido, o autor, Paulo Freire, relata um episódio marcante de sua vida.
Qual foi esse episódio?
O momento em que foi para a escola e teve contato com sua professora.
02 – Um
momento difícil para muitas crianças é a passagem da casa para a escola.
a) Como
foi esse momento para o menino Paulo Freire?
Foi tranquilo sem ruptura; a escola era
uma espécie de continuidade da asa.
b) Por
que esse processo aconteceu desse modo?
Porque a escola não tolhia a curiosidade
dele. Além disso, o fato de ele já saber ler pode ter ajudado a tornar esse
processo natural.
03 –
Quando Paulo Freire entrou na escola, com 6 anos, já sabia ler e escrever. Apesar
disso, nunca esqueceu as lições que teve com sua primeira professora.
a) O
que ele aprendeu com ela? Como era feito esse trabalho?
Aprendeu a formar sentenças. Ele escrevia
no papel as palavras que conhecia e depois, com elas, formava sentenças.
b) Que
curiosidade a professora despertou no menino?
Despertou a curiosidade sobre a língua
portuguesa.
c) Como
ela agia em relação a conteúdos gramaticais?
Ela não ensinava regras; interferia
apenas quando o menino precisava de auxílio.
04 – A
professora Eunice não se casou. Para Paulo Freire, isso provavelmente se deveu
à dedicação ao magistério. Ele diz: “E talvez ela tenha agido um pouco como eu:
ao fazer a docência o meio da minha vida, eu termino transformando a docência no
fim da minha vida”.
a) O
que significa, no contexto, a docência como meio de vida?
Dar
aulas para viver; ter um emprego, um salário, etc.
b) E
como fim?
A finalidade, o motivo principal de
viver.
05 – Ao
relatarmos fatos do passado, é natural que aflorem alguns sentimentos. Que
sentimentos afloram no relato de Paulo Freire? Comprove sua resposta com um
trecho do texto.
Saudades, conforme o trecho “a presença dela são saudades”.
06 –
Paulo Freire ficou conhecido internacionalmente pelo método de alfabetização
que inventou. Diferentemente de criadores de outros métodos, que às vezes
tratam de assuntos que nada têm a ver com o educando, Paulo Freire propõe, em
um de seus livros: Essa proposta de alfabetização está relacionada com as
primeiras experiências de Paulo Freire no mundo da leitura e da escrita?
Justifique sua resposta.
Sim, pois as sentenças que escrevia eram criadas por ele, a partir das palavras
que ele próprio registrava no papel. Professor: comente com os alunos que, ao
alfabetizar adultos, Paulo Freire propunha que as palavras e frases usadas na
alfabetização nascessem da própria experiência deles. Assim, palavras como
tijolo, construção, lavoura, milho, entre outras, eram as ferramentas de
trabalho dos professores.
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