Notícia: Palmas e preconceitos
Talento
não bastava: para se aa primeira cantora brasileira aplaudida na Europa,
Lapinha teve de esconder sua pele negra
Por Paulo Castagna, 3/1/2011
Óperas já eram encenadas no Brasil
durante o século XVIII. Foi nesse período que surgiu, no Rio de Janeiro,
Joaquina Lapinha, a primeira cantora lírica brasileira que virou celebridade, e
sobre quem pouca coisa se sabe. O sucesso de suas apresentações a levou a fazer
uma longa e bem-sucedida temporada na Europa. Mesmo assim, até hoje não foram
descobertos retratos que mostrem suas feições. Só existem citações de seu nome
em documentos da época, principalmente programas teatrais, partituras e
críticas musicais. Sua origem é tão misteriosa quanto sua morte. O pouco que se
sabe dela é que, por ser negra, teve que vencer diversos entraves sociais para
que pudesse deleitar as plateias cariocas e lusitanas.

Mesmo na Europa, raramente havia
cantoras de ópera até meados do século XVIII. Os papéis femininos eram, em
grande parte, interpretados por homens. Muitos desses intérpretes, por sinal,
eram castrados, como o famoso cantor italiano Farinelli, alcunha pela qual
Carlo Maria Broschi (1705-1782) se tornou conhecido. Algo parecido ocorria no
cenário da música sacra. A Igreja Católica foi a instituição que mais
restringiu o gênero feminino, proibindo que as mulheres cantassem nas missas
até o começo do século XX. Uma passagem da Primeira Epístola de Paulo aos
Coríntios justifica essa proibição: “É vergonhoso para a mulher falar na
igreja”. E na opinião de Santo Ambrósio, que viveu no século IV, “a mulher
deverá permanecer calada na igreja”.
Foi somente a partir das transformações
sociais e do crescimento dos valores burgueses – como o maior acesso à música,
a construção de teatros públicos de ópera que podiam ser frequentados pela
compra de ingressos, e não somente pela condição de nobreza – no decorrer do
século XVIII que as mulheres começaram a atuar e a cantar profissionalmente.
Como o canto sacro ainda lhes era vetado, essas primeiras profissionais
acabaram encontrando seu espaço no teatro e na ópera. A italiana Margherita
Durastanti (ativa entre 1700 e 1734) foi uma das primeiras cantoras
profissionais na Europa, chegando a participar de várias óperas de Händel
(1685-1759) na Inglaterra. Cantoras brasileiras surgiram pouco tempo depois.
Já havia mulheres cantando no Rio de
Janeiro e em Minas Gerais pelo menos desde 1770. Nesse ano, João de Souza
Lisboa, proprietário da casa da ópera de Vila Rica – atual Teatro Municipal de
Ouro Preto (MG) –, chegou a comunicar ao governador da capitania de Minas
Gerais que já tinha “na casa da ópera duas fêmeas que representam, e uma delas
com todo o primor, muito melhor que as do Rio de Janeiro”. Diferentemente do que
ocorria no Velho Mundo, eram comuns no Brasil, até o início do século XIX,
atores negros e mulatos, maquiados com tinta branca e vermelha, representando
os europeus daquela época. Cantar ópera por aqui, naquele tempo, não envolvia o
glamour dos cantores de hoje. Esse tipo de trabalho, muito pelo contrário, era
feito por subalternos, e seu descumprimento poderia ser severamente punido. Em
casos extremos, a punição podia ser até a prisão.
Foi nesse contexto que surgiu Lapinha,
cujo nome verdadeiro era Joaquina Maria da Conceição Lapa e que começou a atuar
e cantar em óperas no Rio de Janeiro na década de 1780. Manuscritos que vêm
sendo estudados em Portugal, principalmente pelo musicólogo inglês David
Cranmer, demonstram que ela trabalhou em várias peças dos italianos Giovanni
Paisiello (1740-1816) e Domenico Cimarosa (1749-1801), os compositores mais
conhecidos do gênero em seu tempo. De Paisiello, ela cantou, entre outras, “O
Barbeiro de Sevilha” – cujo enredo também foi musicado por Gioacchino Rossini
(1792-1868) anos depois. Lapinha se apresentou ainda em algumas óperas do
italiano Fortunato Mazziotti (1782-1855), do lusitano Marcos Portugal
(1762-1830) e do brasileiro José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), que lhe
dedicou papéis líricos em “Ulisseia” e em “O Triunfo da América”, representadas
no Rio de Janeiro em 1809.
Preparar-se para atuar numa ópera,
tanto naquela época quanto posteriormente, exigia muito tempo e bastante
trabalho. As boas cantoras executavam com frequência as coloraturas, ou seja, a
emissão de várias notas agudas numa só sílaba, técnica que exigia muito do
intérprete e que, quando bem utilizada, causava furor na plateia. Lapinha não
só tinha nesse recurso um de seus trunfos, como o usou para cativar o público,
segundo algumas críticas que foram preservadas até hoje.
Os documentos até agora localizados
sobre Lapinha indicam que, depois de seu começo de carreira no Rio de Janeiro,
a cantora se apresentou em várias cidades de Portugal entre 1791 e 1805. A
edição da Gazeta de Lisboa de 16 de janeiro de 1795 se refere a “Joaquina Maria
da Conceição Lapinha, natural do Brasil, onde se fizeram famosos os seus
talentos músicos, que têm já sido admirados pelos melhores avaliadores desta
capital”. Em 6 de fevereiro de 1795, o mesmo jornal fez uma crítica ainda mais
elogiosa, que enfatizou a capacidade que a cantora tinha de deixar até mesmo
plateias europeias deslumbradas: “A 24 do mês passado, houve no Teatro de São
Carlos desta cidade [de Lisboa] o maior concurso que ali se tem visto, para
ouvir a célebre cantora americana Joaquina Maria da Conceição Lapinha, a qual,
na harmoniosa execução do seu canto, excedeu a expectação de todos: foram
gerais e muito repetidos os aplausos que expressavam a admiração que causou a
firmeza e sonora flexibilidade da sua voz, reconhecida por uma das mais belas e
mais próprias para teatro”.
Além de receber os aplausos dos
portugueses, Lapinha havia superado outra barreira na Europa: ela foi uma das
primeiras mulheres a receber autorização para participar de espetáculos
públicos em Lisboa. Assim que chegou à cidade, Joaquina se deparou com um veto
da própria rainha D. Maria I à participação feminina nas apresentações
realizadas nos teatros da capital. O motivo provavelmente estava relacionado
aos flertes de seu marido, o rei D. Pedro III, com as atrizes que se
apresentavam em Lisboa. O viajante sueco Carl Ruders (1761-1837), responsável
por essa informação, também comenta que a cantora era obrigada a disfarçar a
cor de sua pele – que os europeus julgavam “inconveniente” – com tinta branca:
“Joaquina Lapinha é natural do Brasil e filha de uma mulata, por cujo motivo
tem a pele bastante escura. Este inconveniente, porém, remedeia-se com
cosméticos. Fora disso, tem uma figura imponente, boa voz e muito sentimento
dramático”.
Depois de passar esse período em
Portugal, enfrentando as dificuldades decorrentes da sua condição de mulher
negra, a cantora retornou ao Rio de Janeiro e continuou cantando óperas. Seu
nome parou de aparecer nos anúncios de espetáculos de música lírica em meados
de 1813.
O sucesso que Joaquina Lapinha alcançou
em vida ocorreu independentemente de sua condição racial. Isso demonstra que a
herança africana e a excelência da arte, mesmo vistas por um olhar europeu, não
eram fatores opostos, como se acreditava antes.
Paulo Castagna.
Disponível em: http://revistadehistoria.com.br/secao/retrato/opera-da-discriminacao.
Acesso em: fev. 2013.
Fonte: Arte em
Interação – Hugo B. Bozzano; Perla Frenda; Tatiane Cristina Gusmão – volume
único – Ensino médio – IBEP – 1ª edição – São Paulo, 2013. p. 272-274.
Entendendo a notícia:
01 – Qual foi o principal
desafio enfrentado por Joaquina Lapinha para alcançar o sucesso como cantora
lírica, tanto no Brasil quanto na Europa, e como ela o superou?
O principal
desafio enfrentado por Joaquina Lapinha foi o preconceito racial e de gênero em
uma sociedade onde mulheres e, especialmente, mulheres negras, tinham seu
acesso à música profissional severamente restrito. No Brasil do século XVIII,
embora atores negros fossem comuns, o trabalho em ópera era subalterno, e na
Europa, cantoras eram raras e o canto era predominantemente masculino. Como mulher
negra, Lapinha teve que superar entraves sociais significativos. Ela superou
isso através de seu talento excepcional, especialmente sua maestria nas
coloraturas e sua voz reconhecida como "uma das mais belas e mais próprias
para teatro", que deslumbrou plateias cariocas e lusitanas. Além disso, na
Europa, ela precisou esconder a cor de sua pele com cosméticos para ser aceita
em espetáculos públicos, uma exigência para superar o preconceito racial
"inconveniente" na visão europeia da época.
02 – De que forma a trajetória
de Joaquina Lapinha, apesar dos obstáculos, desafiou as concepções da época
sobre a arte e a origem racial?
A trajetória de
Joaquina Lapinha desafiou diretamente as concepções da época ao provar que o
talento artístico e a excelência não estavam atrelados à raça ou ao gênero,
mesmo sob o olhar europeu. Em uma era onde o preconceito racial era arraigado e
a participação feminina na música lírica era limitada, Lapinha, uma mulher
negra, alcançou reconhecimento internacional e foi aplaudida em teatros
europeus. Seu sucesso demonstrou que a "herança africana e a excelência da
arte" não eram "fatores opostos", como se acreditava. Ela
quebrou barreiras ao ser uma das primeiras mulheres a se apresentar em
espetáculos públicos em Lisboa e ao ser aclamada por sua voz, superando a visão
de sua pele como "inconveniente" através da maestria de sua arte.
03 – Quais foram as restrições
impostas às mulheres no cenário musical, tanto sacro quanto secular, antes do
surgimento de cantoras profissionais como Lapinha?
Antes do
surgimento de cantoras profissionais como Lapinha, as mulheres enfrentavam
significativas restrições no cenário musical. No âmbito da música sacra, a
Igreja Católica proibia a participação feminina nas missas até o início do século
XX, baseando-se em passagens bíblicas como a Primeira Epístola de Paulo aos
Coríntios ("É vergonhoso para a mulher falar na igreja") e na opinião
de Santo Ambrósio ("a mulher deverá permanecer calada na igreja"). No
cenário secular da ópera europeia, até meados do século XVIII, era raro haver
cantoras, com muitos papéis femininos sendo interpretados por homens, inclusive
castrados. Essas restrições sociais e religiosas limitavam severamente as
oportunidades para as mulheres desenvolverem carreiras profissionais na música,
direcionando as primeiras profissionais que surgiram para o teatro e a ópera
quando as transformações sociais permitiram.
04 – Descreva a situação das
cantoras e atores no Brasil do século XVIII em comparação com a Europa,
conforme o texto.
No Brasil do
século XVIII, a situação das cantoras e atores diferia consideravelmente da
Europa. Enquanto na Europa as mulheres encontravam grandes restrições para
atuar e cantar profissionalmente em óperas até meados do século XVIII, no
Brasil, já havia mulheres cantando no Rio de Janeiro e em Minas Gerais pelo
menos desde 1770. O texto menciona que eram comuns no Brasil, até o início do
século XIX, atores negros e mulatos, que frequentemente se maquiavam com tinta
branca e vermelha para representar europeus. No entanto, o trabalho em ópera no
Brasil daquela época não possuía o glamour de hoje, sendo realizado por
subalternos e sujeito a punições severas, incluindo prisão, em caso de
descumprimento, o que contrasta com o status de celebridade que cantores como
Farinelli alcançavam na Europa.
05 – Quais foram as evidências
documentais que confirmam o sucesso e a aclamação de Joaquina Lapinha na
Europa?
As evidências
documentais que confirmam o sucesso e a aclamação de Joaquina Lapinha na Europa
incluem manuscritos estudados em Portugal, principalmente pelo musicólogo
inglês David Cranmer, que demonstram sua participação em várias peças de
compositores renomados como Giovanni Paisiello e Domenico Cimarosa. Além disso,
edições da Gazeta de Lisboa de 1795 são citadas como prova de seu
reconhecimento. A edição de 16 de janeiro de 1795 se refere a ela como
"natural do Brasil, onde se fizeram famosos os seus talentos músicos, que
têm já sido admirados pelos melhores avaliadores desta capital". Mais
enfaticamente, a edição de 6 de fevereiro de 1795 elogia sua performance no
Teatro de São Carlos, descrevendo o "maior concurso que ali se tem
visto" para ouvi-la e ressaltando que ela "excedeu a expectação de
todos", recebendo "gerais e muito repetidos os aplausos que
expressavam a admiração que causou a firmeza e sonora flexibilidade da sua
voz".
06 – Explique a importância da
técnica de "coloratura" para as cantoras da época, incluindo Lapinha,
e como ela foi utilizada para cativar o público.
A técnica da
coloratura, que consiste na "emissão de várias notas agudas numa só
sílaba", era de extrema importância para as cantoras da época, incluindo
Lapinha, pois exigia um alto nível de habilidade e controle vocal do
intérprete. Quando bem executada, essa técnica causava furor e deslumbramento
na plateia, sendo um verdadeiro trunfo para as cantoras. Para Lapinha, a
coloratura era um de seus recursos mais fortes, e ela a utilizava precisamente
para cativar o público, como atestam críticas preservadas. A capacidade de
executar essa técnica com "firmeza e sonora flexibilidade" era um
diferencial que evidenciava o talento e a destreza da cantora, contribuindo
significativamente para sua aclamação e sucesso.
07 – Embora pouco se saiba
sobre a vida de Joaquina Lapinha, o que o texto revela sobre sua origem e o
período em que atuou, e por que a falta de retratos é um detalhe significativo?
O texto revela
que Joaquina Lapinha, cujo nome verdadeiro era Joaquina Maria da Conceição
Lapa, surgiu e começou a atuar e cantar em óperas no Rio de Janeiro na década
de 1780. Sua origem é descrita como "misteriosa", mas sabe-se que ela
era negra ("filha de uma mulata"), o que implicava superar diversos
entraves sociais. Ela atuou em Portugal entre 1791 e 1805 e continuou cantando
óperas no Rio de Janeiro após seu retorno, com seu nome deixando de aparecer em
anúncios por volta de 1813. A falta de retratos que mostrem suas feições é um
detalhe significativo porque, apesar de seu imenso sucesso e fama como
"primeira cantora lírica brasileira que virou celebridade" e a
primeira a ser aplaudida na Europa, a ausência de sua imagem perpetua a ideia
de que sua identidade visual, em particular a cor de sua pele, era algo a ser
ocultado ou negligenciado, reforçando o preconceito e a invisibilidade que
mulheres negras enfrentavam naquela época, mesmo as mais talentosas e
aclamadas. Isso contrasta com a documentação de outros artistas da época, mostrando
como o preconceito ainda a limitava na história visual.