quarta-feira, 8 de abril de 2020

POEMA: CONVÍVIO - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - COM GABARITO

Poema: Convívio

          Carlos Drummond de Andrade

Cada dia que passa incorporo mais esta verdade, de que eles não vivem senão em nós
e por isso vivem tão pouco; tão intervalado; tão débil.
Fora de nós é que talvez deixaram de viver, para o que se chama tempo.

E essa eternidade negativa não nos desola.
Pouco e mal que eles vivam, dentro de nós, é vida não obstante.
E já não enfrentamos a morte, de sempre trazê-la conosco.
Mas, como estão longe, ao mesmo tempo que nosso atuais habitantes
e nossos hóspedes e nossos tecidos e a circulação nossa!
A mais tênue forma exterior nos atinge.
O próximo existe. O pássaro existe,
E eles também existem, mas que oblíquos! e mesmo sorrindo, que disfarçados…
Há que renunciar a toda procura.
Não os encontraríamos, ao encontrá-los.
Ter e não ter em nós um vaso sagrado,
um depósito, uma presença contínua,
esta é nossa condição, enquanto,
sem condição, transitamos
e julgamos amar
e calamo-nos.
Ou talvez existamos somente neles, que são omissos, e nossa existência,
apenas uma forma impura de silêncio, que preferiram.

Carlos Drummond de Andrade, em “A família que me dei”, no livro
“Carlos Drummond de Andrade – Antologia poética” [organizada pelo autor].
54ª ed., Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 98.
Entendendo o poema:
01 – De que se trata o poema?
        Fala da percepção da relação do Ser com os seres na existência.

02 – Que verso do poema nota-se a marca da 1ª pessoa? Copie e sublinhe-o.
       “Cada dia que passa incorporo mais esta verdade, de que eles não vivem senão em nós.”

03 – Paradoxo é uma figura que se forma a partir da associação de ideias ou conceitos que resulta em contradições. Que verso do poema contêm um paradoxo e reforçam o caráter melancólico do poema?
        “Há que renuncia a toda procura.
         Não os encontraríamos, ao encontra-los.
         Ter e não ter em nós um vaso sagrado...”

04 – Como o olhar do autor aparece no poema? Cite um verso.
        Revela a percepção do relacionamento do Ser com os seres na existência.
         “O próximo existe. O pássaro existe.”


ARTIGO DE OPINIÃO: OS CLÁSSICOS REBELDES - FERNANDO DE BARROS - COM GABARITO

ARTIGO DE OPINIÃO: Os clássicos rebeldes
                                               Fernando de Barros

     Algumas peças de roupa foram decisivas para a transformação de uma geração no século XX. Uma delas foi a calça jeans, que Jacob Davis criou em 1853 com um pano geralmente usado para cobrir carroças. Outra foi a minissaia, nascida da imaginação e audácia da estilista inglesa Mary Quant.
        O pano que deu origem ao jeans, começou a ser fabricado em Nimes, na França, no final do século XVII. No século XVIII, já era produzido em Halifax, na Inglaterra, onde ficou conhecido como De Nimes, que deu origem ao seu nome: Denim. Da Europa ele seguiu para os Estados Unidos, junto com imigrantes, como o alemão Lévi-Strauss, que foi para a Califórnia em 1847 e abriu uma distribuidora de tecidos importados em San Francisco, com seu cunhado.
        Na mesma época, o alfaiate Jacob Davis fazia calças para os mineiros que trabalhavam nas minas da Califórnia. A clientela não estava muito satisfeita, pois a roupa se estragava com facilidade, no seu tipo de trabalho. Para resolver esse problema, Davis foi a San Francisco procurar um pano mais resistente. Lévi-Strauss então lhe vendeu um lote de tecido de sarja marrom, usado geralmente para cobrir tendas e carroças. Foi com ele que Davis fez as novas calças, reforçadas nos bolsos com rebites e fechadas na braguilha por botões de metal. O negócio foi melhorando devagar. Faltava a Davis o capital necessário para desenvolvê-lo, com um bom sistema de fabricação e distribuição. Ele então escreveu a Lévi-Strauss, que continuava a ser seu fornecedor de tecidos, e propôs lhe dar 50 por cento dos lucros se a firma fizesse registrar comercialmente o modelo de calça e fornecesse mais tecido. Strauss aceitou sua proposta. Em 1873 a marca e o feitio das calças estavam registrados. Assim foi criada a primeira grife de roupas jeans.
        A partir daí começou a existir dois panos. Como o escritor John Hayes já observava numa obra em 1942, um deles era o próprio jeans, um pano sarjeado de algodão com fios da mesma cor utilizado em calças rancheiras, camisas para trabalhar e macacões. O outro era o denim, uma versão na qual o sarjeado compreendia fios de algodão azuis e fios de algodão cru, tecido mais caro utilizado nas roupas de trabalho. No século XIX as calças de Lévi-Strauss já eram de tecido azul com fios de algodão cru e o tecido na cor marrom tinha sumido de circulação.
        No campo, nas indústrias e nas ferrovias que rasgavam o território americano, o jeans começava a fazer parte da paisagem. Quem usava uma camisa, um blusão ou uma rancheira jeans era identificado como trabalhador – não só os mineiros, como os trabalhadores do campo, os caubóis e os ferroviários. O jeans começou a se popularizar ainda mais no começo do século XX, com o lançamento dos filmes com o caubói Tom Mix, que se tornaram sucesso no mundo inteiro. Em No tempo das diligências, do diretor John Ford, filmado em 1939, John Wayne usava jeans. O filme que mais lançou o jeans no cinema, contudo, foi As vinhas da ira, 1940. Baseado no romance de John Steinbeck, tinha como personagem principal Henry Fonda no papel de um agricultor. A figura dos heróis do cinema com jeans se tornou quase uma marca nos filmes que Hollywood passou a produzir. Elvis Presley usou jeans em seu primeiro filme, Ama-me com ternura, 1956. Marlon Brando, em Uma rua chamada pecado, também. Marilyn Monroe em O rio das almas perdidas, de Otto Preminger, estava de jeans. James Dean, o astro rebelde do cinema americano, era tão associado ao jeans que os fabricantes passaram a utilizar sua imagem em material publicitário.
        Na Segunda Guerra, aquelas calças de sarja grossa deixaram de ser usadas apenas no trabalho das fábricas para ganhar destaque no dia-a-dia. As mulheres que trabalhavam como operárias não só usavam roupas jeans como as mesmas roupas jeans dos homens. Descobriram rápido a praticidade daquela roupa sem grandes pretensões e de preço acessível.
        O jeans se tornou o espírito da América que estava saindo da guerra. Começavam naqueles anos as mudanças que iriam influenciar as gerações seguintes. Depois disso, as pessoas e o modo como elas se vestiam nunca mais seriam os mesmos.
        Era o princípio também de um período delirante em que se buscava um novo estilo, e o jeans era o material favorito para essa transformação.
        Não bastava usar calça jeans; era preciso ser rebelde como ela. Aqueles tempos da moda nos pós-guerra procuravam novas afirmações. E o jeans, que nada mais era do que uma roupa popular, boa para o trabalho e o lazer, começou a se transformar em elemento de estilo.

Barros, Fernando de. O Homem casual. São Paulo: Mandarim, 1998. p. 54-9.
Fonte: Linguagem Nova. Faraco & Moura. Editora Ática. 8ª série. p. 38-42.
Entendendo o texto:

01 – Na sua origem, as calças jeans surgiram para resolver uma insatisfação dos clientes do alfaiate Jacob Davis. Explique.
      As calças jeans surgiram como roupa de trabalho. Por serem confeccionadas num tecido resistente e muito durável, resolveram o problema do desgaste fácil das roupas, de que se queixavam os mineiros da Califórnia.

02 – O tecido jeans, originalmente marrom, deixou de circular em que época?
      No século XIX.

03 – Assim como o tecido, os detalhes metálicos das calças jeans tinham, originalmente, uma finalidade prática. Qual?
      Os detalhes em metal – rebites dos bolsos e botões – eram um reforço na estrutura da roupa.

04 – O quinto parágrafo do texto é quase inteiramente dedicado ao papel exercido pelo cinema na divulgação do jeans.
a)   Que papel foi esse, segundo o texto?
O cinema foi um dos responsáveis pela transformação do jeans em moda, pois a roupa foi utilizada por personagens de  muitos filmes marcantes, representadas por atores famosos.

b)   A que veículo de comunicação você atribuiria, hoje, esse papel na divulgação de determinadas modas? Exemplifique.
A televisão sem dúvida.

05 – “O jeans se tornou o espírito da América que estava saindo da guerra.” Que roupa, na sua opinião, revela o espírito de nossa época?
      Resposta pessoal do aluno.

06 – “Não bastava usar a calça jeans; era preciso ser rebelde como ela.” Compare essa afirmação com a resposta que você deu à questão 1. A função e o significado do jeans mudaram ao longo do tempo? Explique.
      Sim, pois a questão da resistência e durabilidade do tecido ficou em segundo plano quando a roupa adquiriu um significado simbólico: expressar rebeldia.

07 – O uso desse tipo de roupa tem ainda hoje esse significado social?
      Não, pois o uso muito amplo de determinada moda esvaziam seu significado original, fato que ocorreu com o jeans.

08 – Há algum tipo de roupa que você usa não porque “está na moda” simplesmente, mas porque revela seu estado de espírito diante das pessoas? Descreva essa roupa para os colegas e explique por que ela expressa sua maneira de ser.
      Resposta pessoal do aluno.

09 – Na sua opinião, nó somos livres para usar a roupa que quisermos? Justifique.
      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: A adequação/ inadequação da vestimenta a determinadas situações, além das imposições da moda




terça-feira, 7 de abril de 2020

MÚSICA(ATIVIDADES): AVARANDADO - CAETANO VELOSO - COM GABARITO

Música(Atividades): Avarandado
                                                    João Gilberto/Caetano Veloso

Cada palmeira da estrada
Tem uma moça recostada
Uma é minha namorada
E essa estrada vai dar no mar.


Cada palma enluarada
Tem que estar quieta, parada
Qualquer canção, quase nada
Vai fazer o sol levantar
Vai fazer o dia nascer.

Namorando a madrugada
Eu e minha namorada
Vamos andando na estrada
Que vai dar no avarandado do amanhecer
No avarandado do amanhecer
No avarandado do amanhecer.
                    Caetano Veloso. Avarandado. In: TABORDA, F. & MARINHO, A. L. (coord.), op. cit., p. 89.
                     Fonte: Linguagem Nova. Faraco & Moura. Editora Ática. 8ª série. p. 19.
Entendendo a canção:

01 – Que título você daria para esta ilustração?
      Resposta pessoal do aluno.

02 – Em nossa língua, existem expressões populares relativas à palavra pombo, como “viver como dois pombinhos”.
a)   O que significa essa expressão?
Viver muito amorosamente.

b)   A que está associada a imagem dos pombos na ilustração de Glauco Rodrigues?
A um casal amoroso.

03 – Essa ilustração foi feita para a letra da canção e faz referência ao amanhecer nos versos:
         “Eu e minha namorada
          Vamos andando na estrada
          Que vai dar no avarandado do amanhecer.”
        Você acha que essas nuvens lembram esse período do dia?  Justifique sua resposta.
      Resposta pessoal do aluno.

04 – A ilustração sugere a você um clima romântico? Por quê?
      Resposta pessoal do aluno.

05 – Qual é o tema da canção?
      O tema abordado é o amor.

06 – Quem são as personagens da canção?
      O eu lírico e sua namorada.

07 – O eu lírico é feminino ou masculino? Explique extraindo um verso ou uma palavra da canção que compare sua resposta.
      É masculino. “Namorando a madrugada / Eu e minha namorada.”

08 – Você acha que quando amamos alguém, alguma coisa muda na nossa vida? Explique.
      Resposta pessoal do aluno.

09 – Marque com (X) os recursos empregados na canção que a caracterizam como poética:
a)   Versos, descrição, argumentos.
b)   Descrição, rimas, diálogos e ação de personagem.
c)   Rimas, estrofes, linguagem figurada.
d)   O fato de ser assinada por um poeta.




POEMA: O AUTO DO FRADE (FRAGMENTO) - JOÃO CABRAL DE MELO NETO - COM GABARITO

Poema: O Auto do Frade (Fragmento)  

              João Cabral de Melo Neto

(Doze trechos deste longo e sensacional poema).

Acordar não é de dentro,
acordar é ter saída.
Acordar é reacordar-se
ao que em nosso redor gira. (p. 17)

Padre existe é para rezar
pela alma, mas não contra a fome. (p. 23)

Por que será que ele não fala,
nem diz nada sua boca muda?
Senhor que ele foi das palavras,
não há uma só que hoje acuda. (p.26)

– Parecia que estava bêbado.
Era álcool ou sua desrazão?
– Bêbado da luz do Recife:
fez esquecer sua aflição.
– Mas pareceu falar em versos.
É isso estar bêbado ou não?
– Mesmo sem querer fala em verso
quem fala a partir do coração. (p. 31)

Eu era um ponto qualquer
na planície sem medida,
em que as coisas recortadas
pareciam mais precisas,
mais lavadas, mais dispostas
segundo clara justiça. (p. 36)

Sei que traçar no papel
é mais fácil que na vida.
Sei que o mundo jamais é
a página pura e passiva.
O mundo não é uma folha
de papel, receptiva:
o mundo tem alma autônoma,
é de alma inquieta e explosiva. (p. 36)

Risco nesse papel praia,
em sua brancura crítica,
que exige sempre a justeza
em qualquer caligrafia;
que exige que as coisas nele
sejam de linhas precisas;
e que não faz diferença
entre a justeza e a justiça. (p. 37)

Parece que o sagrado é poeira:
Muito facilmente é raspado. (p. 45)

– Veio andando calmo e sem medo,
ar aberto de amigo, e brando.
– Não veio desafiando a morte
nem indiferença ostentando.
– Veio como se num passeio,
mas onde o esperasse um estranho. (p. 57)

– É um homem como qualquer um,
e profeta não se pretende.
– É um homem e isso não chegou:
um homem plantado e terrestre.
(…)
Viveu bem plantado na vida,
coisa que a gente nunca esquece. (p. 61)

O peso do morto é o motor,
porém o carrasco é o operário. (p. 69)

– Esperar é viver num tempo
em que o tempo foi suspendido.
– Mesmo sabendo o que se espera,
na espera tensa ele é abolido.
– Se se quer que chegue ou que não,
numa espera o tempo é abolido.
– E o tempo longo mais encurta
o da vida, é como um suicídio. (p. 74)
                                                          Edição: Editora Objetiva, 2010.
(Fonte: Livro - Língua, Literatura, Redação - José de Nicola. Vol.3 . 9ª ed. Ed. Scipione - p.248/9)

SÍNTESE

        O Auto do Frade de 1984, é um poema de fundo histórico falando sobre a vida e destino de Frei Caneca, condenado à morte em 1825 por estar envolvido na Confederação do Equador. Um poema para vozes, exemplo do teatro poético do autor, João Cabral de Melo Neto.
        Em Auto do Frade, a estrutura textual é diversa: os monólogos são construídos em redondilhas maiores, enquanto os demais versos são octossílabos.
        Os versos exprimem a força política e revolucionária das palavras de Frei Caneca.
        A morte é o tema central.
        Os personagens são: Frei Caneca (Joaquim do Amor Divino Rabelo), as pessoas de Recife e os oficiais da justiça.
        João Cabral divide seu poema em sete partes, que são elas: na cela, na porta da cadeia, da cadeia à Igreja do Terço, no Adro do Terço, da Igreja do Terço ao Forte, na Praça do Forte e no Pátio do Carmo; e domina seu texto de poema para vozes, diga-se de passagem, um poema para muitas vozes, onde aparecem vozes da sociedade em geral que vai, desde as autoridades jurídicas, eclesiásticas, políticas, militares e o povo representado pelas ruas do Recife.

Entendendo o poema:

01 – De que se trata este poema?
      É de fundo histórico falando sobre a vida e o destino de Frei Caneca.

02 – Por que ele é condenado à morte em 1825?
      Por estar envolvido na Confederação do Equador.

03 – O Auto do Frade tem uma estrutura textual diversa. Explique.
      Os monólogos são construídos em redondilhas maiores, enquanto os demais versos são octossílabos.

04 – Como se divide o poema? Explique.
      Divide-se em sete partes, que são elas: na cela, na porta da cadeia, da cadeia à Igreja do Terço, no Adro do Terço, da Igreja do Terço ao Forte, na Praça do Forte e no Pátio do Carmo.

05 – Nos versos: “Padre existe é para rezar / pela alma, mas não contra a fome”. (p. 23). De que o Frade falava nestes versos?
      Ele tinha o dom da palavra, seus sermões eram capazes de mobilizar bastante pessoas; por isso, proibido de falar, pois sua fala causava grande perigo ao Império.




CONTO: O IRMÃO DE PINÓQUIO - MONTEIRO LOBATO - COM GABARITO

Conto: O irmão de Pinóquio
                    
                    Monteiro Lobato

        Enquanto lá na floresta Pedrinho pensava no melhor meio de vingar-se da boneca, Narizinho resolvia dar um passeio pelo pomar. Costumava fazer isso nas tardes agradáveis, sempre em companhia da sua companheira. Naquele dia, porém, Emília fez luxo.
        — Não posso hoje — disse mostrando o cavalinho. – Estou ensinando o ABC a este analfabeto, que anda com vontade de ler a história do Pégaso, do Bucéfalo, do cavalo de Tróia e outras “cavalências” célebres.
        Narizinho não gostava de passear só, por isso correu os olhos pela sala em procura de algum outro companheiro. Só viu o triste irmão de Pinóquio, que Pedrinho havia jogado para cima do armário.
        — Coitado! — exclamou. — Porque é feio como o Diogo e morto como um defunto, ninguém faz conta dele. Vou levá-lo comigo.
        Talvez que os ares do ribeirão lhe façam bem.
        Pescou-o de cima do armário com o cabo da vassoura e lá se foi com ele ao pomar, rumo do ribeirão, onde havia aquele velho pé de ingá de enormes raízes de fora. Sentou-se na “sua raiz” (havia outra de Pedrinho e outra do Visconde), recostou a cabeça no tronco e cerrou os olhos, porque o mundo ficava três vezes mais bonito quando cerrava os olhos. De todos os lugares que ela conhecia era aquele o mais gostado. Fora ali que vira pela primeira vez o príncipe das Águas Claras, e era ali que costumava pensar na vida, resolver seus problemazinhos e sonhar castelos.
        O sol ia descambando no horizonte (“horizonte” era o nome do morro atrás do qual o sol costumava esconder-se) e seus últimos raios vinham brincar de acende-e-apaga brilhinhos na correnteza. Volta e meia um lambari prateava o ar com um pulo.
        De repente Narizinho ouviu um bocejo — ahhh! Olhou… Era Faz-de-conta que se espreguiçava, como quem sai de um longo sono.
        Achando aquilo a coisa mais natural do mundo, a menina apenas disse:
        — Ora graças! eu tinha certeza de que os ares do ribeirão fariam você mudar.
        — Eu sou sempre o mesmo — respondeu o boneco. — Não mudei. Não mudo nunca. Quem muda são vocês, criaturas humanas. Você mudou, Narizinho.
        — Como isso? — exclamou a menina franzindo a testa. – Estou no que sempre fui…
        — Parece. Tanto mudou que está entendendo a minha linguagem e vai ver coisa que sempre existiu neste sítio e no entanto você nunca viu. Olhe lá!
        A menina olhou para onde ele apontava e realmente viu um bando de lindas criaturas, envoltas em véus de finíssima tule, dançando por entre as árvores do pomar. No meio delas estava um ente estranho, de orelhas bicudas como as de Mefistófeles, dois chifrinhos na testa e cauda de bode. Soprava músicas numa flauta de Pã, isto é, numa flauta feita de canudos incões, tal qual a casa de barro que umas vespas chamadas “Nhá Inacinhas” haviam feito na parede do fundo da casa de dona Benta.
        — Oh! — exclamou a menina recordando-se. — Ainda ontem vi num dos livros de vovó uma gravura com uma cena igualzinha a esta. São as ninfas do bosque e o homem é um fauno.
        Apesar de ter falado baixo, as dançarinas ouviram aquelas palavras e, não se sabe por que, fugiram numa corrida louca em todas as direções. O fauno até deixou cair a sua flauta.
        — É minha agora! — gritou Narizinho correndo a apanhá-la.
        — Ganhei uma flauta de Pã!…
        Mas, ai! Agarrou a flauta com tanta força que a moeu, porque era de barro e estava cheia de vespas, que voaram numa grande aflição atrás das ninfas. Só ficou uma, presa entre o polegar e o fura bolos da menina.
        — Que vespa esquisita! — exclamou ela, examinando atentamente a prisioneira. — Parece uma velhinha coroca.
        — Hein? — murmurou Faz-de-conta chegando e olhando. – Estou reconhecendo esta vespa. Quando o tronco de pau de que fiz parte era árvore viva, cheia de flores cada mês de setembro, muitas vezes a vi lá em nossos galhos. Desconfio que é uma fadazinha disfarçada em vespa.
        — Se é fada — disse a menina duvidando — por que não fugiu com as outras e deixou que eu a pegasse?
        — Porque queria conversar com você — respondeu a vespa.
        A menina arregalou os olhos tomada de grande alegria.
        — É fada mesmo, Faz-de-conta! E das que falam, porque há umas que só fazem tlim, tlim, tlim, como aquela fada Sininho que gostava de Peter Pan. Que pena Pedrinho e Emília não estarem aqui. Vão ficar danados de eu ter visto fadas antes deles.
        A vespa-fada contou-lhe sua vida desde que nasceu e disse que já de muitos anos andava a correr mundo atrás de um alfinete mágico sem o qual não poderia ser, bem, bem, bem, fada das que podem tudo e viram uma coisa noutra. Esse alfinete era uma varinha de condão das mais poderosas, que andava perdida entre os mortais. Ao ouvir aquilo o coração da menina pulou dentro do peito. Lembrou-se logo do alfinete que tia Nastácia havia dado à boneca e imaginou que talvez fosse o tal alfinete mágico. Para certificar-se indagou…
        — Não era um alfinete de pombinha carijó?
        — Isso mesmo! Como sabe? — exclamou a fada, admiradíssima.
        Narizinho viu que havia feito asneira dizendo aquilo, pois a vespa poderia tomar o alfinete da boneca, impedindo-a de vir a ser uma famosa fada de pano — coisa que nunca existiu. Quis remendar a imprudência e disse:
        — Sonhei. Sonhei a noite passada com um alfinete assim, isto é, mais ou menos assim. Não era de pombinha, não, agora me lembro. Era de galo ou bicho parecido. Como a senhora sabe, os sonhos são sempre atrapalhados.
        — Mais atrapalhadas são as mentiras de nariz arrebitado! — disse a vespa, fugindo da mão da menina e indo pousar num galho de árvore. — Estou vendo que você sabe onde está o alfinete e não quer me contar.
        Faz-de-conta chegou-se ao ouvido da menina e cochichou:
        — Não caia nessa! Não conte! Você lá sabe se ela merece? Com fadas é preciso muita cautela, porque se algumas são anjos de bondade, outras são más como bruxas.
        — Estou ouvindo tudo! — disse a vespa lá do galho. — E para castigo vou dar uma ferroada bem venenosa na ponta do nariz dessa menina má. Esperem aí!…
        E começou a inchar, a inchar, até ficar do tamanho duma enorme aranha caranguejeira. E arreganhou os terríveis ferrões e lançou-se contra a menina.
        — Acuda, Faz-de-conta! — berrou Narizinho fechando os olhos.
        Ela sabia que o melhor meio de escapar dos grandes perigos era fechar os olhos, bem fechados, como a gente faz nos sonhos quando sonha que está caindo num precipício.
        De um pulo Faz-de-conta colocou-se entre a vespa e a menina, pronto para sacrificar a vida em sua defesa. O boneco era feio, mas tinha a alma heroica. E como estivesse desarmado, puxou do prego que prendia sua cabeça ao corpo, como quem puxa duma espada e investiu contra a vespa. Ao fazer isso, porém, sua cabeça caiu por terra, rolou morro abaixo e foi mergulhar — tchibum! — no ribeirão.
        A vespa assustou-se ao ver tão estranha criatura avançar para ela de prego em punho e sem cabeça. Assustou-se e — zunn! – desapareceu no ar…
        — Pronto? — perguntou a menina sempre de olhos fechados.
        Ninguém respondeu.
        — Ela ainda está aí? — perguntou de novo.
        Ninguém respondeu.
        Narizinho foi então entreabrindo os olhos, com muito medo, e afinal abriu-os de todo. Mas deu um grito de horror, ao ver o boneco na sua frente, de prego na mão e sem cabeça.
        — Que é isso, Faz-de-conta? Que fim levou sua cabeça?
        O boneco está claro que nada respondeu. Só tinha boca e ouvidos na cabeça e como a cabeça rolara morro abaixo não podia ouvi-la nem responder.
        — E agora? — disse consigo a menina. — Este lugar me parece muito perigoso, e sem auxílio de Faz-de-conta podem me acontecer grandes desgraças. Se ao menos houvesse aqui por perto alguma casinha…
         Olhou em redor e viu não muito longe uma fumaça. “Deve ser casa”, pensou, e correu para lá. Era casa, sim, a mais linda casa que ela viu em toda a sua vida, com trepadeiras na frente e duas janelas de venezianas verdinhas.
        A menina bateu — toc, toc, toc…
        — Entre quem é! — gritou de lá dentro uma voz.
        Narizinho abriu e entrou e deu um grito de alegria.
        — Capinha! Que felicidade encontrar-te aqui!
        — E a minha felicidade de receber tua visita ainda é maior, Narizinho! Há quanto tempo te espero!…
        Abraçaram-se e beijaram-se e ficaram de mãos presas e os olhos postos uma na outra. Era ali a casa da Menina da Capinha Vermelha, cuja avó havia sido devorada pelo lobo. Capinha já tinha estado no sítio de dona Benta no dia da recepção dos príncipes encantados e ficara gostando muito de Narizinho e Emília, tendo-as convidado para virem passar uns dias com ela.
        — Mas por que não me avisaste da tua visita, Narizinho?
        — É que cheguei aqui por acaso. Vi-me só na floresta, depois que meu guia perdeu a cabeça, e não sei o que seria de mim se não fosse a fumacinha de tua casa, que vi de longe. E vim correndo, mas sem saber quem morava aqui.
         Narizinho contou então tudo o que lhe havia acontecido e a terrível desgraça que sucedera a Faz-de-conta.
        — Que coincidência! — exclamou Capinha. — Não faz minutos eu estava tomando banho no ribeirão e um objeto, feito castanha de caju veio rolando pela água abaixo até esbarrar em mim. Peguei-o, olhei e vi que era uma cabeça, com boca, nariz e tudo. Quem sabe se não é a cabeça de Faz-de-conta? Está guardada no bolso do meu avental.
        Foi lá dentro e trouxe a cabeça.
        — É essa mesma! — exclamou Narizinho satisfeitíssima daquele inesperado e feliz desenlace. — Vou consertar o meu João, já, já.
        Foi um instante. Em meio minuto a cabeça do boneco estava outra vez no lugar e ele em condições de falar e contar tudo o que acontecera enquanto a menina estivera de olhos fechados. Quando Faz-de-conta concluiu a narrativa, Capinha suspirou e disse:
        — Quem me dera ter um companheiro leal e valente como este! Vivo tão sozinha nestas solidões…
        Narizinho prometeu que viria visitá-la sempre que pudesse.
        — E não deixe de trazer a Emília. Gostei muito dela.
        Narizinho contou-lhe, então, em grande segredo para que alguma vespa escondida por ali não pudesse ouvir, que a boneca estava na posse do alfinete de pombinha, que era uma vara de condão e poderia, portanto, de um momento para outro, virar uma poderosa fada — e uma fada que nunca existiu no mundo: a Fada de Pano.
        — Pois ela que se transforme e apareça por aqui para brincarmos de virar.
        Nisto surgiu João Faz-de-conta, que tinha saído para o terreiro a fim de refrescar a cabeça. Vinha muito alegre, dizendo:
        — Adivinhem quem passou por aqui! Peter Pan. Conversou comigo meio minuto e lá se foi, voando, para a Terra do Nunca, onde mora. Disse que qualquer dia aparece no sítio de dona Benta para brincar com Pedrinho.
        — Que pena não ter portado um minuto para tomar café conosco! — exclamou Capinha. — Ele sempre me visita e gosto muito dele.
        Narizinho, que já conhecia Peter Pan, fez várias perguntas a respeito desse extraordinário “menino que jamais quis ser gente grande” e de sua inseparável companheira, a fada Sininho. E ainda estava a ouvir histórias dele, quando Faz-de-conta deu um berro de desespero, apontando para a estranha figura que acabava de pular a cerca do quintal com uma enorme faca de matar mulher na mão.
        — Feche os olhos, Narizinho! — gritou ele. — Barba Azul vem vindo!…
        A menina, para salvar-se fechou os olhos com quanta força teve…

LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Pica-pau Amarelo vol. I. 

Entendendo o conto:

01 – Quais são as personagens deste conto?
      Sininho, Narizinho, Faz-de-conta, Barba Azul, Peter Pan, Capinha, dona Benta, tia Nastácia, Pedrinho, Emília.

02 – Em relação à estrutura textual do conto:
a)   Quantos parágrafos tem o conto?
Setenta e dois parágrafos.

b)   Narrador: (X) participada história.
                 (   ) Conta os fatos sem participar da história.

c)   Em relação ao discurso das personagens:
Presença de discurso: (X) direto.
                                      (   ) indireto.

d)   Qual é a tipologia predominante no conto?
(X) narrativa.
(   ) argumentativa.
(   ) descritiva.

03 – Onde ocorreram os fatos?
      No pomar, no ribeirão, na casa da menina de Capinha Vermelha.

04 – Quem é a personagem principal?
      Narizinho.

05 – Dentro deste tipo textual (conto) há que narrador?
(   ) Narrador-observador.
(X) Narrador-personagem.
(   ) Narrador-onisciente.

06 – Que fato provocou o desenrolar dos acontecimentos descritos no conto?
      O fato de irmão do Pinóquio, Faz-de-Conta ter despertado de um longo sono e falado com Narizinho.

07 – Em que personagem do conto ocorre o clímax, ou seja, o momento de maior tensão da história? Explique.
      Quando Faz-de-Conta deu um pulo e colocou-se entre a vespa e a menina, pronto para sacrificar a vida, tirando um prego que prendia sua cabeça ao corpo, investindo contra a vespa, e sua cabeça rolou morro abaixo.

08 – Qual o desfecho (epílogo ou conclusão) da história?
      Narizinho foi na casa da Capinha Vermelha e, ela tinha achado a cabeça do Faz-de-Conta.

09 – Agora você resuma os fatos que compõem a ação narrada.
      Resposta pessoal do aluno.