Crônica: A casa das ilusões perdidas
MOACYR SCLIAR
Quando ela anunciou que estava grávida,
a primeira reação dele foi de desagrado, logo seguida de franca irritação. Que
coisa, disse, você não podia tomar cuidado, engravidar logo agora que estou
desempregado, numa pior, você não tem cabeça mesmo, não sei o que vi em você,
já deveria ter trocado de mulher havia muito tempo. Ela, naturalmente, chorou,
chorou muito. Disse que ele tinha razão, que aquilo fora uma
irresponsabilidade, mas mesmo assim queria ter o filho. Sempre sonhara com
isso, com a maternidade -e agora que o sonho estava prestes a se realizar, não
deixaria que ele se desfizesse.
--Por favor, suplicou. --Eu faço tudo
que você quiser, eu dou um jeito de arranjar trabalho, eu sustento o nenê, mas,
por favor, me deixe ser mãe.
Ele disse que ia pensar. Ao fim de três
dias daria a resposta. E sumiu.
Voltou, não ao cabo de três dias, mas
de três meses. Àquela altura ela já estava com uma barriga avantajada que
tornava impossível o aborto; ao vê-lo, esqueceu a desconsideração, esqueceu
tudo - estava certo de que ele vinha com a mensagem que tanto esperava, você
pode ter o nenê, eu ajudo você a criá-lo.
Estava errada. Ele vinha, sim,
dizer-lhe que podia dar à luz a criança; mas não para ficar com ela. Já tinha
feito o negócio: trocariam o recém-nascido por uma casa. A casa que não tinham
e que agora seria o lar deles, o lar onde – agora ele prometia – ficariam para
sempre.
Ela ficou desesperada. De novo caiu em
prantos, de novo implorou. Ele se mostrou irredutível. E ela, como sempre,
cedeu.
Entregue a criança, foram visitar a
casa. Era uma modesta construção num bairro popular. Mas era o lar prometido e
ela ficou extasiada. Ali mesmo, contudo, fez uma declaração:
-- Nós vamos encher esta casa de
crianças. Quatro ou cinco, no mínimo.
Ele não disse nada, mas ficou pensando.
Quatro ou cinco casas, aquilo era um bom começo.
Moacyr Scliar. Folha de São Paulo, 14/6/1999.
Entendendo a crônica:
01 – No texto, a ideia de
ilusões perdidas diz respeito à:
a)
Realização da maternidade que, na verdade,
não atinge a sua plenitude.
b)
Desolação da jovem mãe ao ver que a
casa recebida não era luxuosa como concebera.
c)
Alegria da mãe com a casa e à superação da
tristeza pela doação da criança.
d)
Melancolia da mãe por programar todas as
crianças que teria para trocar por casas.
e)
Certeza do homem de que a mulher não formará
com ele um lar na casa nova.
02 – O texto pertence ao
gênero:
a)
Notícia.
b)
Crônica.
c)
Poema.
d)
Conto.
03 – Em “Quando ela anunciou que estava
grávida” [...], a palavra grifada na frase estabelece relação de:
a)
Causa.
b)
Tempo.
c)
Oposição.
d)
Adição.
04 – O casal age de modo
contrário aos sentimentos comuns de justiça e dignidade. No contexto da
narrativa, tais comportamentos explicam-se:
a)
Pela falta de amor que há entre a mulher e o
companheiro, fazendo com que tudo que os rodeia se torne um negócio vantajoso.
b)
Pelo ódio exagerado que a mulher sente do
companheiro e pela forma displicente e pouco amável como ele a vê.
c)
Pelo amor exagerado que a mulher sente e pela
confusão de sentimentos que o companheiro vive na descoberta desse amor.
d)
Pela submissão exagerada da mulher
ao companheiro e pela forma mesquinha e interesseira como ele resolve as
coisas.
05 – As duas frases finais
do texto deixam evidente que ter mais filhos:
a)
É uma possibilidade pouco atraente para o
casal que, por hora, já conquistou algo à custo de sofrimento.
b)
Será para o casal uma forma de alcançar a
felicidade, já que a mulher e seu companheiro poderão ter a casa cheia de
crianças.
c)
Pode tornar-lucrativo na ótica do
companheiro, embora a mulher ainda veja isso com olhos sonhadores.
d)
Se torna uma forma de compensar o episódio
pouco feliz da doação do primeiro filho do casal.