terça-feira, 25 de setembro de 2018

TEXTO: A MANIA NACIONAL DA TRANSGRESSÃO LEVE - MICHAEL KEPP - COM GABARITO

Texto: A mania nacional da transgressão leve

   Pequenos delitos são transgressões leves que passam impunes e, no Brasil, estão tão institucionalizados que os transgressores nem têm ideia de que estão fazendo algo errado. Ou então acham esses "mini-abusos" irresistíveis, apesar de causarem "mini-danos" e/ ou levarem a delitos maiores. Esses maus exemplos são também contagiosos. E, em uma sociedade na qual proliferam, ser um cidadão-modelo exige que se reme contra uma poderosa maré ou que se beire a santidade.
        Alguns pequenos delitos – fazer barulho em casa a ponto de incomodar os vizinhos ou usar as calçadas como depósito de lixo e de cocô de cachorro – diminuem a qualidade de vida em pequenas, mas significativas, doses. Eles ilustram a frase do escritor Millôr Fernandes: "Nossa liberdade começa onde podemos impedir a dos outros".
Apesar de os delitos pequenos estarem institucionalizados demais para notar ou serem tentadores demais para resistir, dizer "não" a eles beneficia a sociedade como um todo. E um "não" vigoroso o bastante pode alertar os distraídos e os fracos de espírito para que, em uma sociedade que se guia pela "lei de Gerson", nossa bússola moral possa nos apontar o caminho
        No ano passado, o grupo de adolescentes que furou a enorme fila para assistir ao show gratuito de Naná Vasconcelos, na qual eu e outros esperávamos por horas, impediu nossa liberdade. Os jovens receberam os ingressos gratuitos que, embora devessem ser nossos, se esgotaram antes de chegarmos à bilheteria.

       
A frase de Millôr também cai como uma luva para o casal que recentemente pediu a um amigo -na minha frente, na fila das bebidas, no intervalo de uma peça- que comprasse comes e bebes para ambos. O fura-fila indireto me irritou não só porque demorou mais para me atenderem mas também porque o segundo ato estava prestes a começar. Qual é a diferença deles para os motoristas que me ultrapassam pelo acostamento nas estradas e depois furam a fila, atrasando a minha viagem? E que dizer daqueles motoristas que costuram atrás das ambulâncias?
        Outros pequenos delitos causam danos porque representam uma pequena parte da reação em cadeia que corrói o tecido social. Os brasileiros que contribuem para a rede de consumo de drogas não são apenas os que as compram mas até os que as consomem de vez em quando em festas. Uma simples tragada liga você, mesmo que de modo ínfimo, ao traficante e à bala perdida, mas atos aparentemente tão inócuos e difíceis de condenar nos forçam a pensar no que constitui um pequeno delito.
        Por exemplo, que dano social pode ser causado pelo roubo de "lembrancinhas" -de toalhas e cinzeiros de hotel a cobertores de companhias aéreas? Bem, os hotéis e companhias aéreas compensam o custo de substituir esses objetos aumentando levemente o preço. Os varejistas fazem o mesmo para compensar as perdas com pequenos furtos.
        Outros pequenos delitos são mais fáceis de classificar, mas igualmente tentadores de cometer. Veja o caso da pessoa que não diz ao caixa que recebeu por engano uma nota de R$ 50 em vez da correta nota de R$ 10. Ou do garoto que obedece ao trocador, passa por baixo da roleta e lhe passa uma nota de R$ 1 em vez de pagar à empresa de ônibus R$ 1,60. Esse suborno não é igual a pagar à polícia uma propina para se safar? Essas caixinhas não seriam também crias do famoso caixa dois, que já virou uma instituição?
        Um dos meus vizinhos disse que alguns desses pequenos delitos, como vários tipos de caixa dois, são fruto da necessidade. Ele escreve, embora não assine, monografias para que universitários preguiçosos/ocupados terminem seus cursos. É assim que põe comida na mesa. Apesar de defender sua atividade antiética dizendo que "a fome também é antiética", ele bem que poderia perder 20 quilos.
        Outro vizinho vendeu sua cobertura no Rio com uma vista espetacular da floresta da Tijuca porque descobriu que, no prazo de um ano, um arranha-céu seria construído, acabando com a vista e desvalorizando o imóvel em R$ 50 mil. Ele disse isso aos compradores? Não. E eu também não considero esse delito tão pequeno diante do valor do prejuízo.
        Apesar de os delitos pequenos estarem institucionalizados demais para notar ou serem tentadores demais para resistir, dizer "não" a eles beneficia a sociedade como um todo. E um "não" vigoroso o bastante pode alertar os distraídos e os fracos de espírito para que, em uma sociedade que se guia pela "lei de Gerson", nossa bússola moral possa nos apontar o caminho.

MICHAEL KEPP. Folha de São Paulo.
São Paulo, 26 ago. 2004. Folha Equilíbrio.
Entendendo o texto:
01 – Observe a página em que o artigo lido foi publicado. Quem assina o artigo lido? 
      Michael Kepp.

02 – O texto está escrito em que pessoa? Dê um exemplo que comprove sua resposta. 
      O texto está em primeira pessoa. Possibilidades: "eu e outros esperávamos", "nossa liberdade", "na minha frente", "me irritou", "me ultrapassam". "minha viagem"

03 – Abaixo, os delitos estão divididos em quatro grupos. Localize no artigo e transcreva dois exemplos de cada grupo de delito.

Grupo A - Que prejudicam a qualidade de vida de outras pessoas e impedem sua liberdade.
      Furar fila, ultrapassar pelo acostamento. Fazer barulho, "costurar' atrás de ambulâncias. Jogar lixo nas calcadas, não recolher da calçada o cocô do cachorro. 

Grupo B - Que perturbam as relações sociais e causam danos à sociedade toda.
      Consumir drogas (que são vendidas por meio de uma rede de tráfico e violência), roubar "lembrancinhas" de hotel ou de companhia aérea. 

Grupo C - Que são tentadores.
      Não revelar engano de troco ou dividir o roubo" do dinheiro da passagem com o trocador. Pagar propina ou dar "caixinhas" a polícia para escapar da punição por delito cometido.

Grupo D - Que são justificados como fruto da necessidade. 
      Fazer um trabalho ilegal (fazer monografias no lugar de universitários, que pagam por elas). Esconder do comprador o defeito do que está sendo vendido. 

04 – Explique a frase: "Esses maus exemplos são também contagiosos".
      Espera-se que o aluno perceba que muitas vezes imitamos outras pessoas praticando os mesmos delitos. 

05 – Releia este trecho do texto. 
        “[...] ser um cidadão-modelo exige que se reme contra uma poderosa maré ou que se beire a santidade.” Qual é essa “poderosa maré”?
      Maré dos maus exemplos, das transgressões leves. 

06 – Em seu dia a dia, você observa algum dos delitos apontados no texto? Qual ou quais? Você considera leve(s) esse(s) delito(s)? Por quê? Conversem a respeito da opinião do autor do texto sobre o que ele considera "mania nacional. 
      Resposta pessoal do aluno.

07 – O autor do texto revela-se irônico e sarcástico, isto é, faz zombaria, mostra o que há por trás das situações e dos comportamentos que menciona. Sobre o vizinho que faz trabalhos para estudantes preguiçosos/ocupados e diz que "a fome também é antiética", qual é a ironia feita pelo autor? 
      Diz que o vizinho “bem que poderia perder 20 quilos”. 

08 – No texto, o autor empregou recursos estilísticos, como a linguagem figurada. Releia os seguintes trechos: 
        “[...] ser um cidadão-modelo exige que se reme contra uma poderosa maré ou que se beire a santidade. 
        Apesar de os delitos pequenos estarem institucionalizados demais para notar [...] dizer "não" a eles beneficia a sociedade como um todo. E um "não" vigoroso o bastante pode alertar os distraídos e os fracos de espírito para que, em uma sociedade que se guia pela "lei de Gerson", nossa bússola moral possa nos apontar o caminho.”
Relacione as alternativas que correspondam aos significados de: 
[B] "que se reme contra uma poderosa maré"; 
[C] "que se beire a santidade"; 
[A] "alertar os distraídos [...] para que [...] nossa bússola moral possa nos apontar o caminho". 
a) Conhecer as regras e saber as atitudes corretas para ensinar aos outros a melhor forma de agir. 
b) Fazer diferente daqueles que praticam pequenos delitos. 
c) Ser extremamente correto, ter conduta exemplar. 

09 – Releia: “Pequenos delitos são transgressões leves que passam impunes e, no Brasil, estão tão institucionalizados que os transgressores nem têm ideia de que estão fazendo algo errado”. Qual das palavras abaixo pode substituir institucionalizado?
a)   São aceitos.
b)   São de instituições.
c)   São comuns.
d)   São crimes.



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