Texto: A mania nacional da
transgressão leve
Pequenos delitos são transgressões
leves que passam impunes e, no Brasil, estão tão institucionalizados que os
transgressores nem têm ideia de que estão fazendo algo errado. Ou então acham
esses "mini-abusos" irresistíveis, apesar de causarem "mini-danos"
e/ ou levarem a delitos maiores. Esses maus exemplos são também contagiosos. E,
em uma sociedade na qual proliferam, ser um cidadão-modelo exige que se reme
contra uma poderosa maré ou que se beire a santidade.
Alguns pequenos delitos – fazer barulho
em casa a ponto de incomodar os vizinhos ou usar as calçadas como depósito de
lixo e de cocô de cachorro – diminuem a qualidade de vida em pequenas, mas
significativas, doses. Eles ilustram a frase do escritor Millôr Fernandes:
"Nossa liberdade começa onde podemos impedir a dos outros".
Apesar de os delitos
pequenos estarem institucionalizados demais para notar ou serem tentadores
demais para resistir, dizer "não" a eles beneficia a sociedade como
um todo. E um "não" vigoroso o bastante pode alertar os distraídos
e os fracos de espírito para que, em uma sociedade que se guia pela "lei
de Gerson", nossa bússola moral possa nos apontar o caminho
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A frase de Millôr também cai como uma luva para o casal que recentemente pediu a um amigo -na minha frente, na fila das bebidas, no intervalo de uma peça- que comprasse comes e bebes para ambos. O fura-fila indireto me irritou não só porque demorou mais para me atenderem mas também porque o segundo ato estava prestes a começar. Qual é a diferença deles para os motoristas que me ultrapassam pelo acostamento nas estradas e depois furam a fila, atrasando a minha viagem? E que dizer daqueles motoristas que costuram atrás das ambulâncias?
Outros pequenos delitos causam danos
porque representam uma pequena parte da reação em cadeia que corrói o tecido
social. Os brasileiros que contribuem para a rede de consumo de drogas não são
apenas os que as compram mas até os que as consomem de vez em quando em festas.
Uma simples tragada liga você, mesmo que de modo ínfimo, ao traficante e à bala
perdida, mas atos aparentemente tão inócuos e difíceis de condenar nos forçam a
pensar no que constitui um pequeno delito.
Por exemplo, que dano social pode ser
causado pelo roubo de "lembrancinhas" -de toalhas e cinzeiros de
hotel a cobertores de companhias aéreas? Bem, os hotéis e companhias aéreas
compensam o custo de substituir esses objetos aumentando levemente o preço. Os
varejistas fazem o mesmo para compensar as perdas com pequenos furtos.
Outros pequenos delitos são mais fáceis
de classificar, mas igualmente tentadores de cometer. Veja o caso da pessoa que
não diz ao caixa que recebeu por engano uma nota de R$ 50 em vez da correta
nota de R$ 10. Ou do garoto que obedece ao trocador, passa por baixo da roleta
e lhe passa uma nota de R$ 1 em vez de pagar à empresa de ônibus R$ 1,60. Esse
suborno não é igual a pagar à polícia uma propina para se safar? Essas
caixinhas não seriam também crias do famoso caixa dois, que já virou uma
instituição?
Um dos meus vizinhos disse que alguns
desses pequenos delitos, como vários tipos de caixa dois, são fruto da
necessidade. Ele escreve, embora não assine, monografias para que
universitários preguiçosos/ocupados terminem seus cursos. É assim que põe
comida na mesa. Apesar de defender sua atividade antiética dizendo que "a
fome também é antiética", ele bem que poderia perder 20 quilos.
Outro vizinho vendeu sua cobertura no
Rio com uma vista espetacular da floresta da Tijuca porque descobriu que, no
prazo de um ano, um arranha-céu seria construído, acabando com a vista e
desvalorizando o imóvel em R$ 50 mil. Ele disse isso aos compradores? Não. E eu
também não considero esse delito tão pequeno diante do valor do prejuízo.
Apesar de os delitos pequenos estarem
institucionalizados demais para notar ou serem tentadores demais para resistir,
dizer "não" a eles beneficia a sociedade como um todo. E um
"não" vigoroso o bastante pode alertar os distraídos e os fracos de
espírito para que, em uma sociedade que se guia pela "lei de Gerson",
nossa bússola moral possa nos apontar o caminho.
MICHAEL KEPP. Folha
de São Paulo.
São Paulo, 26 ago.
2004. Folha Equilíbrio.
Entendendo o texto:
01 – Observe a página em que
o artigo lido foi publicado. Quem assina o artigo lido?
Michael Kepp.
02 – O texto está escrito em
que pessoa? Dê um exemplo que comprove sua resposta.
O texto está em primeira pessoa.
Possibilidades: "eu e outros esperávamos", "nossa
liberdade", "na minha frente", "me irritou", "me
ultrapassam". "minha viagem".
03 – Abaixo, os delitos
estão divididos em quatro grupos. Localize no artigo e transcreva dois exemplos
de cada grupo de delito.
Grupo
A
- Que prejudicam a qualidade de vida de outras pessoas e impedem sua
liberdade.
Furar fila,
ultrapassar pelo acostamento. Fazer barulho, "costurar' atrás de
ambulâncias. Jogar lixo nas calcadas, não recolher da calçada o cocô do cachorro.
Grupo
B
- Que perturbam as relações sociais e causam danos à sociedade toda.
Consumir drogas
(que são vendidas por meio de uma rede de tráfico e violência), roubar
"lembrancinhas" de hotel ou de companhia aérea.
Grupo
C
- Que são tentadores.
Não revelar engano de troco ou dividir o roubo" do
dinheiro da passagem com o trocador. Pagar propina ou dar "caixinhas"
a polícia para escapar da punição por delito cometido.
Grupo
D
- Que são justificados como fruto da necessidade.
Fazer um trabalho
ilegal (fazer monografias no lugar de universitários, que pagam por elas).
Esconder do comprador o defeito do que está sendo vendido.
04 – Explique a frase: "Esses maus exemplos são também
contagiosos".
Espera-se que o
aluno perceba que muitas vezes imitamos outras pessoas praticando os mesmos
delitos.
05 – Releia este trecho do
texto.
“[...] ser um cidadão-modelo exige que
se reme contra uma poderosa maré ou que se beire a santidade.” Qual é essa
“poderosa maré”?
Maré dos maus
exemplos, das transgressões leves.
06 – Em seu dia a dia, você
observa algum dos delitos apontados no texto? Qual ou quais? Você considera
leve(s) esse(s) delito(s)? Por quê? Conversem a respeito da opinião do autor do
texto sobre o que ele considera "mania nacional.
Resposta pessoal
do aluno.
07 – O autor do texto
revela-se irônico e sarcástico, isto é, faz zombaria, mostra o que há por trás
das situações e dos comportamentos que menciona. Sobre o vizinho que faz
trabalhos para estudantes preguiçosos/ocupados e diz que "a fome também é
antiética", qual é a ironia feita pelo autor?
Diz que o vizinho
“bem que poderia perder 20 quilos”.
08 – No texto, o autor
empregou recursos estilísticos, como a linguagem figurada. Releia os seguintes
trechos:
“[...] ser um cidadão-modelo exige que
se reme contra uma poderosa maré ou que se beire a santidade.
Apesar de os delitos pequenos estarem
institucionalizados demais para notar [...] dizer "não" a eles
beneficia a sociedade como um todo. E um "não" vigoroso o bastante
pode alertar os distraídos e os fracos de espírito para que, em uma sociedade
que se guia pela "lei de Gerson", nossa bússola moral possa nos
apontar o caminho.”
Relacione as alternativas
que correspondam aos significados de:
[B] "que se reme contra uma
poderosa maré";
[C] "que se beire a
santidade";
[A] "alertar os distraídos [...]
para que [...] nossa bússola moral possa nos apontar o caminho".
a) Conhecer as regras e
saber as atitudes corretas para ensinar aos outros a melhor forma de
agir.
b) Fazer diferente
daqueles que praticam pequenos delitos.
c) Ser extremamente
correto, ter conduta exemplar.
09 – Releia: “Pequenos
delitos são transgressões leves que passam impunes e, no Brasil, estão tão institucionalizados que os
transgressores nem têm ideia de que estão fazendo algo errado”. Qual das
palavras abaixo pode substituir institucionalizado?
a)
São aceitos.
b)
São de instituições.
c)
São comuns.
d)
São crimes.
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