segunda-feira, 17 de setembro de 2018

CRÔNICA: PESCADORES - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - COM GABARITO

Crônica: Pescadores
                            Carlos Drummond de Andrade

        Domingo pé-de-cachimbo, todo domingo aquele esquema: praia, bar, soneca, futebol, jantar em restaurante. Acaba em chatura. Os quatro jovens executivos sonhavam com um programa diferente.
        — Se a gente desse uma de pescador?
        — Falou.
        Muniram-se do necessário, desde o caniço até o sanduíche incrementado, e saíram rumo à praia mais deserta, mais viscosa, mais sensacional.
        Lá estavam felizes da vida, à espera de peixe. Mas os peixes, talvez por ser domingo, e todos os domingos serem iguais, também tinham variado de programa — e não se deixavam fisgar.
        — Tem importância não. Daqui a pouco aparecem. De qualquer modo, estamos curtindo.
        — É.
        Peixe não vinha. Veio pela estrada foi a Kombi, lentamente. Parou, saltaram uns barbudos:
        — Pescando, hem? Beleza de lugar. Fazem muito bem aproveitando a folga num programa legal. Saúde. Esporte. Alegria.
        — Estamos só arejando a cuca, né? Semana inteira no escritório, lidando com problemas.
        — Ótimo. Assim é que todos deviam fazer. Trocar a poluição pela natureza, a vida ao ar livre. Somos da televisão, estamos filmando aspectos do domingo carioca. Podem colaborar?
        — Que programa é esse?
        — “Aprenda a Viver no Rio”. Programa novo, cheio de bossas. Vai ser lançado semana que vem. Gostaríamos que vocês fossem filmados como exemplo do que se pode curtir num dia de lazer, em benefício do corpo e da mente.
        — Pois não. O grilo é que não pescamos nada ainda.
        — Não seja por isso. Tem peixe na Kombi, que a gente comprou para uma caldeirada logo mais.
        Desceram os aparelhos e os peixes, e tudo foi feito com técnica e verossimilhança, na manhã cristalina. Os quatro retiravam do mar, em ritual de pescadores experientes, os peixes já pescados. O pessoal da TV ficou radiante:
        — Um barato. Vocês estavam ótimos.
        — Quando é que passa o programa?
        — Quinta-feira, horário nobre. Já está sendo anunciado.
        Quinta-feira, os quatro e suas jovens mulheres e seus encantadores filhos reuniram-se no apartamento de um deles — o que tivera a ideia da pescaria.
        — Vocês vão ver os maiores pescadores da paróquia em plena ação.
        O programa, badaladíssimo, começou. Eram cenas do despertar e da manhã carioca, trens superlotados da Linha Auxiliar, filas no elevador, escritórios em atividade, balconistas, telefonistas, enfermeiras, bancários, tudo no batente ou correndo para. O apresentador fez uma pausa, mudou de tom:
        “— Agora, o contraste. Em pleno dia de trabalho, com a cidade funcionando a mil por cento para produzir riqueza e desenvolvimento, os inocentes do Leblon dedicam-se à pescaria sem finalidade. Aí estão esses quatro folgados, esquecidos de que a Guanabara enfrenta problemas seríssimos e cada hora desperdiçada reduz o produto nacional bruto…”
        — Canalhas!
        — Pai, você é um barato!
        — E eu que não sabia que você, em vez de ir para o escritório, vai pescar com a patota, Roberto!
        — Se eu pego aqueles safados mato eles.
        — E o peixe, pai, você não trouxe o peixe pra casa!
        — Não admito gozação!
        — Que é que vão dizer amanhã no escritório!
        — Desliga! Desliga logo essa porcaria!
        Para aliviar a tensão, serviu-se uísque aos adultos, refrigerante aos garotos.
            Fonte: Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. 
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
Entendendo a crônica:

01 – O texto “Pescadores” faz alusão a uma brincadeira de criança que consiste em recitar versos de cinco ou seis sílabas e que tem por finalidade divertir e ajudar a memorizar. Esse tipo de brincadeira chama-se parlenda.
        Identifique, no texto, que palavras fazem parte de uma parlenda. Você saberia recitá-la?
      Domingo pé-de-cachimbo... / Areia é fina, / Que dá no sino, / O sino é de ouro, / Que dá no besouro, / O besouro é valente, / Que dá no tenente, / O tenente é valente, / Que dá na gente, / A gente é valente, / Que senta o ... no batente.

02 – Que estratagema a equipe de televisão usou para cativar os jovens executivos?
      Elogiaram os jovens executivos pela escolha do programa de domingo: trocaram a poluição da cidade para ficar em contato com a natureza.

03 – Na sua opinião, a equipe de TV fez uso responsável da mídia? Por quê?
      Resposta pessoal do aluno.

04 – Você acha que as pegadinhas são realmente feitas ao vivo ou são forjadas (armadas)?
      Resposta pessoal do aluno.

05 – Você concorda com esse tipo de programa? Justifique sua resposta.
      Resposta pessoal do aluno.

06 – Identifique no texto a pontuação usada com frequência nos diálogos. Transcreva algumas frases com exemplos desses sinais de pontuação.
      Travessão; dois-pontos, ponto de exclamação, de interrogação, reticências.

07 – O texto é rico em adjetivação. Como se pode verificar no quarto parágrafo, os adjetivos foram usados numa espécie de gradação para expressar aspectos extraordinários da praia. Agora é a sua vez. Reescreva as frases a seguir, usando adjetivação abundante para completa-las: “Ele era...”, “O mar estava...”, “Os quatro executivos...”.
      Resposta pessoal do aluno.

08 – Pelo contexto da crônica e lendo o verbete de dicionário, anote que palavra da frase abaixo insinua uma ironia, isto é, algo contrário do que se pensa, em tom de zombaria:
“... em pleno dia de trabalho, com a cidade funcionando a mil por cento para produzir riquezas e desenvolvimento, os inocentes do Leblon dedicam-se à pescaria sem finalidade...”.
      A palavra “inocentes”.

09 – Nas 15 últimas linhas do texto, aparece muitas vezes o ponto de exclamação. Ele expressa sentimentos iguais ou diferentes das personagens? Explique.
·        “Canalhas!” expressa revolta.
·        “Pai, você é um barato!” expressa admiração, aprovação.
·        “E peixe, pai, você não trouxe o peixe!” expressa frustação.
·        “Não admito gozação!” expressa desaprovação.
·        “Que é que vão dizer no escritório!” expressa apreensão.
·        “Desliga! Desliga logo essa porcaria!” expressa ordem.

10 – Dentro da linguagem popular existe um tipo de falar, geralmente próprio de um grupo social, que se chama gíria. Identifique, no texto, palavras ou expressões consideradas gíria e anote-as.
      Falou, arejando a cuca, bossas, curtir, grilo, barato, paróquia, badaladíssimo, batente, patota.

11 – Um texto quase sempre utiliza palavras relativas ao tema / assunto que apresenta. Assim, num texto sobre futebol, podem aparecer: gol, impedimento, chutar, vitória, juiz, defender, rápido, violento, etc.
        Identifique no texto palavras relacionadas com o título, e que auxiliam na coesão e construção do texto em torno do assunto e escreva-as.
      Coesão lexical: pescador, caniço, piscosa, peixe, fisgar, pescando, caldeirada, pescadores, pescados, pescaria.


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