sexta-feira, 21 de setembro de 2018

CRÔNICA: O VENDEDOR DE PALAVRAS - FÁBIO REYNOL - COM GABARITO

Crônica: O vendedor de palavras  
                
                           Fábio Reynol 


        Ouviu dizer que o Brasil sofria de uma grave falta de palavras. Em um programa de TV, viu uma escritora lamentando que não se liam livros nesta terra, por isso as palavras estavam em falta na praça. O mal tinha até nome de batismo, como qualquer doença grande, "indigência lexical". Comerciante de tino que era, não perdeu tempo em ter uma ideia fantástica. Pegou dicionário, mesa e cartolina e saiu ao mercado cavar espaço entre os camelôs.
        Entre uma banca de relógios e outra de lingerie instalou a sua: uma mesa, o dicionário e a cartolina na qual se lia: "Histriônico — apenas R$ 0,50!".
        Demorou quase quatro horas para que o primeiro de mais de cinquenta curiosos parasse e perguntasse.
        — O que o senhor está vendendo?
        — Palavras, meu senhor. A promoção do dia é histriônico a cinquenta centavos como diz a placa.
        — O senhor não pode vender palavras. Elas não são suas. Palavras são de todos.
        — O senhor sabe o significado de histriônico?
        — Não.
        — Então o senhor não a tem. Não vendo algo que as pessoas já têm ou coisas de que elas não precisem.
        — Mas eu posso pegar essa palavra de graça no dicionário.
        — O senhor tem dicionário em casa?
        — Não. Mas eu poderia muito bem ir à biblioteca pública e consultar um.
        — O senhor estava indo à biblioteca?
        — Não. Na verdade, eu estou a caminho do supermercado.
        — Então veio ao lugar certo. O senhor está para comprar o feijão e a alface, pode muito bem levar para casa uma palavra por apenas cinquenta centavos de real!
        — Eu não vou usar essa palavra. Vou pagar para depois esquecê-la?
        — Se o senhor não comer a alface ela acaba apodrecendo na geladeira e terá de jogá-la fora e o feijão caruncha.
        — O que pretende com isso? Vai ficar rico vendendo palavras?
        — O senhor conhece Nélida Piñon?
        — Não.
        — É uma escritora. Esta manhã, ela disse na televisão que o País sofre com a falta de palavras, pois os livros são muito pouco lidos por aqui.
        — E por que o senhor não vende livros?
        — Justamente por isso. As pessoas não compram as palavras no atacado, portanto eu as vendo no varejo.
        — E o que as pessoas vão fazer com as palavras? Palavras são palavras, não enchem barriga.
        — A escritora também disse que cada palavra corresponde a um pensamento. Se temos poucas palavras, pensamos pouco. Se eu vender uma palavra por dia, trabalhando duzentos dias por ano, serão duzentos novos pensamentos cem por cento brasileiros. Isso sem contar os que furtam o meu produto. São como trombadinhas que saem correndo com os relógios do meu colega aqui do lado. Olhe aquela senhora com o carrinho de feira dobrando a esquina. Com aquela carinha de dona-de-casa ela nunca me enganou. Passou por aqui sorrateira. Olhou minha placa e deu um sorrisinho maroto se mordendo de curiosidade. Mas nem parou para perguntar. Eu tenho certeza de que ela tem um dicionário em casa. Assim que chegar lá, vai abri-lo e me roubar a carga. Suponho que para cada pessoa que se dispõe a comprar uma palavra, pelo menos cinco a roubarão. Então eu provocarei mil pensamentos novos em um ano de trabalho.
        — O senhor não acha muita pretensão? Pegar um...
        — Jactância.
        — Pegar um livro velho...
        — Alfarrábio.
        — O senhor me interrompe!
        — Profaço.
        — Está me enrolando, não é?
        — Tergiversando.
        — Quanta lenga-lenga...
        — Ambages.
        — Ambages?
        — Pode ser também evasivas.
        — Eu sou mesmo um banana para dar trela para gente como você!
        — Pusilânime.
        — O senhor é engraçadinho, não?
        — Finalmente chegamos: histriônico!
        — Adeus.
        — Ei! Vai embora sem pagar?
        — Tome seus cinquenta centavos.
        — São três reais e cinquenta.
        — Como é?
        — Pelas minhas contas, são oito palavras novas que eu acabei de entregar para o senhor. Só histriônico estava na promoção, mas como o senhor se mostrou interessado, faço todas pelo mesmo preço.
        — Mas oito palavras seriam quatro reais, certo?
        — É que quem leva ambages ganha uma evasiva, entende?
        — Tem troco para cinco?
                           REYNOL, Fábio. O vendedor de palavras.
São Paulo: Baraúna, 2008. p. 8-10.
Entendendo a crônica:
01 – Logo no primeiro parágrafo, o narrador refere-se a um "mal" de que sofreria o Brasil. Que "mal" é esse? Explique a partir da leitura desse parágrafo.
      O “mal” é a falta de palavras, isto é, o fato de faltarem palavras às pessoas já que, segundo o texto, lê-se muito pouco no país.

02 – “Comerciante de tino que era, não perdeu tempo em ter uma ideia fantástica."
• Nesse trecho, o narrador do texto refere-se ao vendedor, atribuindo-lhe uma qualidade. Que qualidade é essa? Explique.
      A qualidade atribuída ao vendedor é a de ser um comerciante de tino, isto é, alguém que entende do que faz, vender comercializar produtos e também ter intuição para perceber novas oportunidades.

03 – Retire do trecho:
"[...] não se liam livros nesta terra, por isso as palavras estavam em falta na praça.  O mal tinha até nome de batismo, como qualquer doença grande, 'indigência lexical'."
A expressão destacada é referida no texto como uma doença. Está empregada em linguagem figurada, isto é, fora de seu sentido literal.
• Como poderia ficar esta expressão em linguagem com sentido literal, não figurado?
      Sugestão: Vocabulário escasso, com poucas palavras; carência de uma linguagem com mais palavras.

04 – No texto, o vendedor fala sobre uma escritora que afirma que o país sofre com falta de palavras porque os livros são poucos livros.
• Em seguida, o vendedor afirma que as pessoas não compram palavras no atacado.
a) Responda: que relação o vendedor fez entre livros e as palavras no atacado?
      Os livros têm grande quantidade de palavras, portanto, comprar livros significa ‘comprar palavras no atacado’, isto é, em grande quantidade.

b) Observe a frase "As pessoas não compram as palavras no atacado, portanto eu as vendo no varejo"   Substitua as expressões destacadas por outras que deixam clara a intenção do vendedor.
      As pessoas não compram livros, portanto vendo palavras isoladas.

05 – A primeira pessoa atraída para "banca de palavras" fica indignada com o produto que estava sendo vendido: palavras. 
• Explique o argumento que esta pessoa empregou para mostrar sua indignação.
      Disse que palavras não podiam ser vendidas por uma pessoa, pois as palavras pertencem a todos.

06 – Qual o argumento que o vendedor empregou como resposta?
      O argumento empregado foi que uma palavra só pertenceria a alguém se essa pessoa soubesse o seu significado.

07 – Leia: "E o que as pessoas vão fazer com as palavras? Palavras são palavras, não enchem barriga."      
Esse é um argumento empregado pelo cliente para não comprar palavras.
a) Explique o sentido desse argumento.
      Provavelmente quis dizer que palavras, conversas, não rendem sustento, dinheiro para sobreviver.

b)  Que tipo de característica pessoal essa forma de pensar pode revelar em relação ao cliente? Marque a(s) alternativa(s) que caracteriza(m) a personagem que falou isso.
(A) Pessoa sensível, para quem os sentimentos têm mais valor que as coisas práticas.
(B) Pessoa muito objetiva, para quem as coisas têm de ter uma finalidade prática.
(C) Pessoa que valoriza a cultura, principalmente a que é encontrada nos livros.
(D) Pessoa para quem a cultura só terá valor se apresentar resultados concretos visíveis.

08 – O cliente pergunta ao vendedor: "O que pretende com isso? Vai ficar rico vendendo palavras?". Pelos argumentos que apresenta, esse é o objetivo do vendedor? Explique com argumentos retirados da fala do vendedor.
      Sim. Entretanto, ao argumentar, fala também em enriquecer as pessoas com pensamentos, portanto, seu objetivo não parece ser exclusivamente se tornar financeiramente rico, mas também contribuir para o enriquecimento cultural das pessoas.



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