ARTIGO DE OPINIÃO: Cacófatos
Cláudio Moreno
No início do século passado, antes da
Primeira Grande Guerra, o estudo da Língua Portuguesa no Brasil era dominado
por um bando de corvos barulhentos, de pouca ou nenhuma ciência, que passavam
seu tempo a procurar “defeitos” na linguagem dos outros e a acusá-los, com o
dedo em riste, como se fossem criminosos hediondos. “Galicismo!”, bradava um;
“Errou a mesóclise!”, gritava outro; e a vítima, o autor desses “erros”,
tinha de vir a público fazer sua defesa, apoiar-se nos clássicos, invocar
autores consagrados que lhe avalizassem a frase suspeita. Nem Machado escapou
desses abutres! Só Camões passou livre por essa gentalha: escreveu “Alma minha
gentil que te partiste” bem na entrada de seu maravilhoso soneto, e não veio
nenhum desses pigmeus apontar-lhe o dedo e gritar “Fora! Falou maminha”!
Foi um tempo de trevas, para os estudos
do Português; esses inquisidores, todos eles autodidatas da pior espécie,
chegaram a deter o poder cultural e literário, aliados aos maus poetas do
Parnasianismo, aquele estilo fraco e artificial que grassava neste país e que
até hoje tem suas viúvas. Infelizmente, essa época deixou marcas profundas no
nosso ensino gramatical; é com indignação que vejo, até hoje (século XXI!),
professores falarem a seus alunos sobre “vícios de linguagem”! Meu Deus! Que
tipo de curso de Letras fizeram essas “sumidades”? E ainda enchem a boca,
falando da “crise atual da linguagem”. Pudera não; com mestres assim, o que
será dos discípulos?
Pois uma das preocupações desses
censores eram os cacófatos — palavras torpes,
obscenas ou ridículas (esta adjetivação é da época) formadas por
aqueles encontros casuais das sílabas finais de um vocábulo com as iniciais do
outro. “Não pense nunca nisso” – pronto! Falou caniço. “Já que tinha
resolvido…” — pronto! Falou jaquetinha. “O irmão pôs a culpa nela” —
pronto! Falou panela. “Existe uma herdeira” — pronto! Falou merdeira.
Sou obrigado a reconhecer, nesses fanáticos, uma imaginação exacerbada e uma
extrema sensibilidade para o mau vocábulo. Dir-se-ia que eles, como o Joãozinho
da anedota (ou, para ser mais atual, como Beavis e Butthead), andavam a pensar
apenas em sem-vergonhice, ou a procurá-la por toda parte. O leitor normal
(principalmente na leitura usual, silenciosa) sequer enxerga essas
preciosidades, e precisamos apontá-las com o dedo, sublinhá-las até, para que
ele finalmente se dê conta de que elas podem estar ali.
Foi por causa do cacófato que chegaram
a propor o uso do apóstrofo (na escrita!) em expressões como “u’a mão”,
para evitar o som /umamão/, (na fala!) que poderia ser segmentado como “um
mamão”. É de fazer chorar bacalhau em porta de venda! Lima Barreto, corrosivo e
denodado inimigo desses gramatiqueiros puristas, fez questão de colocar, no
título de um de seus romances (e já foi dito que o título é a frase do livro
que mais vezes será lida e repetida), “Vida e Morte de M.J. Gonzaga
de Sá”. Das milhentas combinações de iniciais que poderia ter usado, podem ter
certeza que não foi por acaso que escolheu essa insultuosa mijota.
Hoje só se admite uma certa preocupação
com os cacófatos no caso da TV e do rádio, e, mesmo assim, dificilmente o
ouvinte vai fazer essas segmentações tendenciosas. Só mesmo quando o efeito é
gritante; meu amigo Sérgio Nogueira fala da transmissão do jogo
Brasil e Coréia, em que ouviu “Fábio Conceição pediu a bola e Cafu
deu” — bom, aí é um petardo que não podemos deixar de ouvir, como também no
famoso “chuta Neneca, gol!”. Fora disso, tenho visto é aquele uso maroto do
cacófato, que o autor faz questão de sinalizar para que todos percebam. Lembro
de uma entrevista na TV com o humorista Jaguar, em que ele disse “o boom pausa
da literatura”; ao falar “pausa”, estava fazendo uma bela piada. Ou de uma
receita fornecida por Wilson Morais, na revista Culinária ICONet, em que ele
escreve “Sal e alho (pique, não amasse naquele aparelho de socar alho — perdão
pelo cacófato inevitável!)”. Ou ainda de um quadro do Moacyr Franco, no
programa A Praça é Nossa (vejam como Sua Língua também é
cultura!), em que ele interpretava um tal de Jeca Gay. Agora sim, parece
que encontraram o verdadeiro tratamento que o cacófato merece, diferente
daquela visão repressiva, obscurantista, do Brasil de antigamente: ele é um
jogo criativo com a linguagem, safado, moleque, presente nas brincadeiras
verbais do colégio e nas genuínas piadas do Casseta & Planeta.
http://educaterra.terra.com.br/sualíngua/02/02,
cacófatos.htm, acessado em 6/10/2005.
Fonte: Língua Portuguesa.
Viva Português. 9° ano. Editora Ática. Elizabeth Campos. Paula Marques Cardoso.
Silvia Letícia de Andrade. 2ª edição. 2011. P. 242-3.
Entendendo o texto:
01 – O que é cacófato?
É a aproximação
de palavras que causam mau impacto sonoro, provocando um sentido obsceno ou
ridículo.
02 – Segundo Cláudio Moreno,
quando o cacófato é bem usado?
Quando se objetiva fazer humor,
brincadeiras.
03 – Ainda de acordo com o
articulista, não devemos nos preocupar exageradamente com o cacófato na
linguagem escrita. Por quê?
Porque, em geral,
ninguém percebe sua ocorrência.
04 – No texto, ele apresenta
exemplos de cacófatos. Escreva dois exemplos.
Nunca nisso
(caniço), alma minha (maminha), já que tinha (jaquetinha), culpa nela (panela).
05 – O radical caco em grego significa “ruim”,
portanto cacofonia é tudo o que tem
som desagradável. Pesquise em programas humorísticos, em revistas de anedotas,
etc., outros exemplos de cacófatos.
Resposta pessoal
do aluno.
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