Reportagem: A rebelião dos reclusos
Breiller
Pires
Jogadores se mobilizam para implodir a
concentração, um regime do futebol de antigamente que não faz o menor sentido
nos dias de hoje.
No início dos anos 50, Neném Prancha,
folclórico roupeiro do Botafogo, cunhou uma de suas frases mais famosas: “Se
concentração ganhasse jogo, o time do presídio não perdia uma partida”. O ato
de confinar jogadores já soava antiquado naquele tempo em que o
profissionalismo começava a se assentar no Brasil, mas segue como praxe
inquebrantável na maioria dos clubes nacionais, enquanto o resto do mundo
desentrava os portões da clausura.
A Copa do Mundo no Brasil ofereceu mais
uma prova de que a reclusão pouco interfere em gols e vitórias. Alemanha e
Holanda, duas das seleções que mais concederam liberdade a seus jogadores
durante o torneio, terminaram em primeiro e terceiro lugares, respectivamente.
[…]
Uma referência para os jogadores
do Bom Senso FC, movimento surgido um ano atrás, que, entre diversas
reivindicações para modernizar o futebol brasileiro, ensaia um levante para
acabar com as concentrações antes dos jogos de seus clubes. Argumentos não
faltam. O inchaço de datas nos campeonatos, além de longas viagens ao redor de
um país com dimensões continentais, é suficiente para inflar a carga de
trabalho em uma rotina de dois jogos semanais. Segundo líderes do grupo, essa
dinâmica só seria atenuada com a readequação do calendário ou, no mínimo, o fim
da concentração em jogos como mandante.
Paulo André, ex-zagueiro do
Corinthians, hoje no Shanghai Shenhua, da China, e um dos cabeças do Bom Senso
FC, calcula que um jogador brasileiro de primeira ou segunda divisão fique, em
média, 120 dias concentrado por ano. “Se a carreira do atleta dura 15 anos, ele
passa quase cinco preso em concentração, longe dos amigos, dos filhos, da
família. Há um excesso dos clubes, que tratam o jogador como gado”, diz.
Dependendo do clube, o número de dias em confinamento pode ser ainda maior. Em
2012, jogadores do Atlético-MG, vice-campeão brasileiro, passaram 165 dias
concentrados.
Técnico do time na época, Cuca não
abria mão da concentração antecipada, a dois dias de cada partida. A
insatisfação do elenco atingiu o ápice em setembro daquele ano, culminando em
atrito entre o técnico e Ronaldinho, que coincidiu com o pior mês da equipe no
Brasileirão: 37,5% de aproveitamento e três derrotas. No início de outubro,
Cuca cedeu e abortou os dois dias de concentração, mas já era tarde. O
Atlético, que havia feito o melhor primeiro turno da história dos pontos
corridos, acabou perdendo a liderança para o Fluminense e não conseguiu mais
tirar a diferença. Na campanha do título da Libertadores, no ano seguinte,
mesmo se tratando de uma competição mais curta, o clube só antecipou a
concentração a partir das oitavas de final.
Curiosamente, Cuca foi o primeiro
técnico a experimentar uma mudança no método tradicional depois da curta vigência
da Democracia Corintiana na década de [19]80. No começo de 2008, quando dirigia
o Botafogo, ele dispensou os jogadores de dormirem em General Severiano antes
dos jogos em casa. “Quero passar confiança e credibilidade ao grupo. Se o cara
dorme às 23h aqui, ele vai dormir no mesmo horário na casa dele”, discursou ao
anunciar a medida. Cinco meses depois, eliminado da Copa do Brasil, deixou
o clube carioca e assumiu o Santos. Sua primeira providência foi instituir a
concentração antecipada, alegando que não queria ver jogadores madrugada
adentro na antevéspera do jogo. “No Botafogo, se algum jogador saía de casa na
hora errada, os outros vigiavam e me avisavam. Aqui o grupo ainda está sendo
formado”, afirmou.
No primeiro dia de agosto deste ano,
Levir Culpi, atual comandante do Atlético, deu cabo da concentração para
jogos em Belo Horizonte, atendendo um antigo pedido dos jogadores, à revelia do
presidente Alexandre Kalil e do diretor de futebol Eduardo Maluf. “Nosso
calendário é ridículo”, justificou o técnico, que colocou o cargo à disposição
caso a estratégia falhe. “Dormir em casa, com a família, é muito melhor do que
com 30 homens dentro de um CT.”
Lei
da compensação
Experiências recentes em
torno do fim da concentração têm sido diretamente relacionadas a pendências
salariais nos clubes. Insatisfeitos com os atrasos de ordenado, jogadores
de Botafogo, Vasco e Portuguesa impuseram boicote ao toque de recolher das
comissões técnicas em 2013. Como concentrar é uma das obrigações contratuais
do atleta, o não cumprimento do acordo por parte do clube dá brecha para a
rebelião. No caso do Glorioso, a atitude foi iniciativa de Seedorf durante sua
passagem pelo alvinegro. O holandês sugeriu a concentração facultativa: quem
preferisse poderia passar a noite em General Severiano, em vez de ir para
casa, e só se apresentar horas antes do jogo. No fim do ano, após derrota
para o Coritiba, o elenco teve uma reunião acalorada no vestiário, rachado
entre “rebelados” e concentrados, que questionavam o quanto o desmantelamento
do retiro teria influenciado o desempenho do time.
“O Botafogo deu um grande passo para
acabar com a concentração no Brasil. Ninguém gosta de ficar isolado. É preciso
mudar a cabeça das pessoas, porque o jogador não é tão irresponsável como
tentam pintar”, diz Seedorf, que se tornou treinador e, apesar do
pensamento, não alterou a fórmula de confinamento no Milan ao longo de seus
seis meses no comando da equipe italiana. No Botafogo, que acumula mais de
cinco meses de salários atrasados, os jogadores agora têm autonomia para
decidir em quais partidas o elenco irá se concentrar.
O Coritiba, de Alex, outro líder do
Bom Senso FC, chegou a testar a abolição da clausura no ano passado, sob o
comando de Marquinhos Santos. A liberdade de jogadores antes das partidas no
Couto Pereira durou apenas um semestre, até o presidente Vilson Ribeiro de
Andrade decretar concentração antecipada de dois dias devido aos maus
resultados do time no Campeonato Brasileiro. “Não há uma política para acabar
com a concentração no Brasil”, diz Alex. “Tudo gira em torno da parte
financeira e do resultado.” Atualmente, apenas Atlético e Internacional,
desde fevereiro, mantêm o modelo brando de concentração, com o aval de Abel
Braga e da diretoria. “Isso não significa deixar o jogador à vontade para fazer
o que quiser. Na verdade, estamos colocando mais responsabilidade em suas
mãos. O comprometimento do atleta precisa ser incondicional, dentro ou fora do
clube”, afirma o técnico.
Com isso, jogadores colorados têm se
apresentado no fim da manhã para almoçar no hotel, assistir à preleção da
comissão técnica e, então, seguir para o Beira-Rio. O esquema só muda na
véspera do clássico Grenal, quando toda a delegação dorme no hotel. Por
enquanto, Abel não se arrepende da decisão. “No ano passado, os caras ficaram
168 dias concentrados. Tá louco, isso não existe. Tinha jogador que não
aguentava mais olhar pra cara do outro. Grandes clubes do mundo inteiro já não
concentram mais. Hoje o atleta profissional tem mais responsabilidade.”
Dá
pra confiar?
De acordo com técnicos e dirigentes, os
grandes entraves para o veto definitivo às concentrações são o comportamento do
jogador fora do ambiente de trabalho e o constante patrulhamento dos torcedores.
“Concentração no futebol tem de ser abolida a partir de dezembro de
2014”, disse Alexandre Kalil, ferrenho adepto do expediente, antes de
Levir Culpi revogar sua norma no Atlético dois dias depois de Ronaldinho deixar
o clube. “Porque meu mandato acaba no fim do ano. Aí eu não vou ter de sair de
madrugada atrás de jogador. Se soltar, meu amigo, a torcida vai pegar
um monte na rua, na farra...”
Outros mais moderados defendem a
controversa medida de que apenas jogadores solteiros deveriam se concentrar, por, supostamente,
estarem mais expostos às tentações noturnas. “Já vi jogador marcar encontro
dentro da concentração. Trancados, eles já dão um jeito, imagina sem
regra, sem controle? Os solteiros precisam de vigilância contínua. O que não
garante que o cara casado tenha uma noite de sono bem dormida ou uma
alimentação balanceada”, afirma o ex-zagueiro e diretor de futebol do
Botafogo Wilson Gottardo, que é contrário à resolução dos jogadores de não se
concentrarem por causa dos atrasos de pagamento no clube. Edmundo, hoje
comentarista, conta que nunca se opôs à concentração nos tempos de jogador e
acredita que a regra deva valer para todos. “Às vezes, o craque do seu time é o
irresponsável. E aí não dá pra concentrar só um ou outro, senão racha o grupo.
Tem de reunir todo mundo.” [...]
Por sua vez, jogadores pedem um voto de
confiança. Argumentam que já seguem uma rígida cartilha dos departamentos de
futebol, como os cuidados para se alimentar adequadamente nos horários de
folga. Que a concentração gera prejuízo ao clube, sobretudo aos pequenos
que não dispõem de instalações no centro de treinamento e precisam bancar
hospedagem para o elenco – o gasto estimado de times grandes com hotéis é de
aproximadamente 50000 reais por mês. Que a tecnologia, em forma de
internet, celulares, computadores e videogames, que têm uso liberado
nos redutos boleiros, substituiu antigos passatempos, como sinuca, dominó
e carteado, que favoreciam o convívio em grupo. Com isso, a maioria dos
jogadores, quando está no alojamento ou no hotel, se encerra em sua ocupação
individual e canaliza a interação em suas redes sociais.
“Cada um tem seu ritual para passar o
tempo na concentração. São raros os momentos de união do grupo. Acredito que o
atleta profissional no Brasil já atingiu maturidade suficiente para se cuidar
fora do clube”, diz Paulo André, que entende que o fim da reclusão compulsória
criaria uma espécie de “seleção natural” no meio. “O jogador é quem fica
exposto com o erro, com o desempenho abaixo do esperado. Quem abusar da noite
antes de um jogo não vai resistir à cobrança da torcida e dos próprios
companheiros de time.”
Mesmo com um grupo crescente de
jogadores que questionam o tratamento que comparam ao de babás, o fim da
concentração não é uma unanimidade na classe. Alguns atletas dizem apreciar o
confinamento por costume. Técnicos, cartolas e ex-jogadores se prendem à velha
guarda. “Eu nunca fugi de concentração”, afirma Vampeta, ex-jogador e
presidente do Grêmio Osasco Audax. “Sempre gostei, porque eu descansava e comia
bem. No meu time, jogador sempre vai concentrar.”
Para quem vive a era do quarto
individual e do videogame na concentração, o tempo é de combate às
práticas arcaicas que remetem à época do amadorismo. O atacante Diego Tardelli,
um dos que condenaram o rigoroso regime fechado de Cuca no Atlético e que mais
fizeram lobby com Levir Culpi para flexibilizar as regras na
Cidade do Galo, um CT com hotel moderno e 20 suítes construídas especialmente
para abrigar o elenco alvinegro, faz coro à grita por mais liberdade. “É
preciso dar crédito aos jogadores. Hoje, o que restou de ‘concentração’ é só o
nome. A gente se reúne para jogar videogame. Concentrar mesmo é a caminho
do estádio, no ônibus, no vestiário. A tendência é mudar esse regime. Tomara
que os clubes acabem com isso o mais rápido possível”, diz. Depois de avistarem
a luz no horizonte de dívidas e caos financeiro dos clubes, os jogadores
prometem concentrar esforços para derrubar a última prisão do futebol. […]
Breiller Pires. Disponível em: http://placar.abril.com.br/materia/a-rebeliao-dos-reclusos-jogadores-lutam-pelo-fim-da-concentracao/. Acesso em: 7 abr. 2015.
Fonte: Livro – Para Viver Juntos – Português – 9º ano –
Ensino Fundamental – Anos Finais – Edições SM – p. 92-6.
Entendendo a reportagem:
01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:
·
Amadorismo: dedicação a algo sem caráter profissional.
·
Facultativo: que não é
obrigatório; opcional.
·
À revelia: sem o conhecimento
ou o consentimento.
·
Lobby: pressão de um grupo organizado sobre políticos e
poderes públicos com o objetivo de defender determinados interesses.
·
Clausura: situação de quem
não pode sair do internamento.
·
Mandante: time que joga em
sua cidade.
·
Compulsório: obrigatório.
·
Ordenado: salário.
·
CT: abreviação de centro de treinamento.
·
Preleção: palestra com
finalidade didática.
·
Dar cabo: extinguir.
·
Revogar: anular, cancelar.
02 – Essa reportagem aborda um assunto recorrente e polêmico no futebol.
a)
Qual é o seu
tema?
A concentração dos jogadores antes dos jogos.
b)
Que aspecto
desse tema ela investiga?
Se a concentração é válida ou não nos dias de hoje.
03 – As informações presentes na reportagem baseiam-se em quais dos
elementos a seguir, além do relato de fatos feito pelo jornalista?
·
Depoimentos de
técnicos.
·
Dirigentes.
·
Jogadores.
·
Estudiosos do
assunto.
·
Dados
estatísticos.
·
Citação de
regulamentos.
04 – Copie a tabela a seguir e preencha-a com as referências da
reportagem.
·
Favoráveis à concentração: Cuca
(enquanto técnico do Santos); Alexandre Kalil; Eduardo Maluf; Seedorf (enquanto
técnico do Milan); Vilson R. de Andrade; Wilson Gottardo; Edmundo.
·
Contrários à concentração: Bom
Senso FC; Cuca; Levir Culpi; Seedorf; Marquinhos Santos; Alex; Abel Braga;
Diego Tardelli.
05 – Entre os que são favoráveis à concentração, há um argumento
recorrente.
a)
Qual é esse
argumento?
O de que o jogador em seu tempo livre tende a cometer
excessos e isso faz gerar maus resultados nos jogos.
b)
Esse argumento
aparece no discurso do jornalista ou no discurso de terceiros? Comprove sua
resposta.
No discurso de terceiros, tanto direto (citando
Alexandre Kalil no parágrafo 12; Wilson Gottardo e Edmundo no parágrafo 13)
quanto indireto (citando técnicos e dirigentes no parágrafo 12).
06 – A reportagem menciona um contra-argumento à alegação de que o fim
da concentração geraria maus resultados.
a)
Qual é esse
contra-argumento?
Afirma-se que o jogador de hoje (que atua
profissionalmente) é mais responsável, pois, se ele cometer excessos, não terá
um bom desempenho e acabará se expondo diante da torcida e dos companheiros.
Logo, não iria querer correr esse risco.
b)
Esse
contra-argumento é assumido no discurso do jornalista ou no discurso de
terceiros? Comprove sua resposta.
No discurso de terceiros (direto, citando Seedorf,
no parágrafo 9, Abel Braga, no parágrafo 11, e Paulo André, no parágrafo 15.
07 – A reportagem aponta que a concentração perdeu sua utilidade.
a)
Como ela
esclarece essa declaração para o leitor?
No passado, época do amadorismo, a equipe
permanecia mais tempo junta, pois o entretenimento disponível levava a isso.
Hoje, na concentração, os jogadores se isolam, em razão do uso de celulares,
computadores e videogames.
b)
Esse
relacionamento aparece no discurso do jornalista ou de terceiros?
No discurso de terceiros (tanto indireto, citando
jogadores em geral no parágrafo 15, quanto direto, citando Diego Tardelli no
parágrafo 18).
08 – Em que parágrafos o discurso do jornalista, e não das diversas
referências que ele cita, manifesta um ponto de vista sobre a concentração?
Nos parágrafos 1 e 2.
09 – A reportagem apresenta intertítulos, o primeiro é “Lei da
compensação”.
a)
A que compensação
esse intertítulo se refere?
Em alguns times, os jogadores não recebem seus
salários em dia. Dessa forma, eles se sentem à vontade para não cumprir uma
regra do contrato, que é a da concentração. Trata-se, portanto, de uma forma de
compensação.
b)
O segundo é
“Dá pra confiar?”. Que efeito o ponto de interrogação cria?
Ele lança dúvida quanto à possibilidade de confiar
no jogador, em sua responsabilidade.
10 – A proposta de acabar com a concentração é polêmica. A que mudanças,
exatamente, a reportagem se refere, no que diz respeito à concentração?
Diminuir ou acabar com a concentração quando o jogo
se realiza na cidade do time e, eventualmente, aliviar a rigidez do isolamento
quando a concentração é necessária (como em uma Copa), com a liberação de
visitas.
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