segunda-feira, 16 de novembro de 2020

ARTIGO: PESQUE-SOLTE: PROTEÇÃO OU DANO PARA OS PEIXES? MIGUEL PETRENE JR. - COM GABARITO

 Artigo: Pesque-solte: Proteção ou dano para os peixes?

          Em todo o mundo, nas últimas décadas, aumentou o número de praticantes do chamado pesque-solte, em que os peixes são devolvidos à água após a captura. Os que defendem essa forma de lazer alegam que ela ajuda a preservar suas populações, mas outros a criticam, por causar estresse, lesões e até sua morte. Estudos internacionais confirmam que o estresse da captura tem efeitos, por vezes graves, em diferentes espécies. Este artigo aborda esse debate, que envolve aspectos éticos, fisiológicos, ecológicos e socioeconômicos.

Miguel Petrene Jr.

        A pesca amadora do tipo pesque-solte (catch and release fishing) provavelmente começou no Reino Unido, há mais de um século, e se espalhou pelo mundo. Essa atividade, de início, não era uma estratégia de conservação dos estoques pesqueiros, mas apenas um simples descarte de peixes de menor interesse recreativo.

        Essas espécies recebiam o nome genérico de coarse fish, para diferenciá-las dos chamados peixes nobres (game fish), em especial a truta (gênero Salmo), o salmão (Salmo salar) e o char (gênero Salvelinus).

        Hoje, esse tipo de pesca, com a soltura imediata dos peixes capturados, vem se difundindo no Brasil, como atividade turística ou de lazer. No entanto, ainda é comum a pesca amadora em que o peixe é consumido. Nos diferentes tipos de pesca amadora, não se podem comercializar os peixes capturados, o que as diferencia da pesca profissional (seja industrial ou artesanal). 

        Estima-se que a pesca amadora responda por 12% da captura mundial de pescado e mobilize cerca de 700 milhões de pessoas em todo o mundo

        Estima-se que a pesca amadora responda por 12% da captura mundial de pescado e mobilize cerca de 140 milhões de pessoas na América do Norte, na Europa e na Oceania – e 700 milhões em nível mundial. Nos Estados Unidos, a pesca amadora no mar é tão intensa que responde por 23% das capturas daquelas espécies que já passaram do nível ótimo de exploração.

        No Brasil, em meados da década de 1990, a pesca amadora capturou em torno de 75% do pescado registrado no Pantanal do Mato Grosso do Sul e hoje ainda responde por 50% da produção nessa área. Para cada peixe capturado e embarcado por pescadores amadores, no Pantanal, cerca de um peixe e meio foi capturado e solto, considerando apenas as espécies nobres, principalmente porque não atingiram o tamanho mínimo de captura.

        Em todo o mundo, cerca de 30 bilhões de indivíduos são anualmente liberados após a captura. Na América do Norte, 60% dos peixes capturados são soltos.

        Em alguns países ricos, como os Estados Unidos, a pesca amadora de água doce substituiu a pesca profissional-artesanal, mas em outros, como a França (lagos Annecy e Léman/Geneve) e a Suíça (lago Geneve/Léman) – e também nos emergentes e nos mais pobres –, essa última modalidade ainda é fonte importante de proteína animal de alta qualidade, gerando segurança alimentar, empregos, renda e um precioso repositório ecológico-cultural.

        Ainda não há estudos sobre os efeitos do estresse da captura para o tucunaré, uma das espécies preferidas dos praticantes da pesca do tipo pesque-solte no Brasil. (foto: Carlos Edwar C. Freitas/ Ufam)

        Há forte conflito de interesses entre a pesca profissional-artesanal e a amadora. No Brasil, esse conflito é intensificado pelas políticas públicas, que não buscam conciliar a prática das duas atividades, tratando-as como excludentes e quase sempre desconsiderando a pesca artesanal. O forte lobby turístico da pesca amadora tem facilidade de acesso aos meios de comunicação e acentua o viés das decisões políticas a seu favor. Como resultado, as pescarias comerciais chegaram a ser proibidas em alguns trechos de rios brasileiros. Isso aconteceu no rio Araguaia, onde a pesca profissional é coibida em Goiás, por lei estadual, desde 1997. A lei criou uma incoerência no acesso ao recurso, pois na margem esquerda do rio (em Mato Grosso) a pesca amadora e a profissional são permitidas, com capturas em proporções semelhantes, e na margem direita (em Goiás), os pescadores amadores têm maior acesso ao rio. Além disso, essa pesca amadora não é do tipo pesque-solte e a maioria dos indivíduos capturados é consumida.

Esporte ou maldade?

        As pescarias do tipo pesque-solte podem ser mandatórias ou voluntárias. No modelo mandatório, a soltura é obrigatória ou é determinado um tamanho mínimo legal para o peixe capturado, dependendo da espécie. No modelo voluntário, o pescador solta o peixe acreditando que ele irá sobreviver e poderá ser recapturado no futuro.

        Essa prática, no entanto, foi banida na Suíça e na Alemanha, por razões éticas, tanto que, para a organização não governamental Peta (People for Ethical Treatment of Animals – www.peta.org), é uma forma de “crueldade disfarçada como esporte”. Esse argumento gerou um movimento global contra essa modalidade de pesca, baseado nos direitos dos animais. Vale salientar que nem todos os peixes são ‘apropriados’ para o pesque-solte: a corvina de água doce (Plagioscion squamosissimus) e o dourado (Salminus maxillosus), por exemplo, normalmente morrem logo após a captura.

        O pesque-solte é discutido sob duas perspectivas: (I) a pragmática, que avalia se e como a atividade compromete a saúde dos peixes e a propagação de seus genes e estuda como evitar ou reduzir tais efeitos (o que implica aceitá-la como prática legítima); e (II) a ética, segundo a qual o bem-estar dos peixes depende da ausência de dor, embora ainda não se saiba se esses animais de fato a sentem (ao menos como é sentida por humanos). Esse tema tem gerado acirrado debate entre os fisiologistas.

        Algumas ou todas as práticas de lazer com peixes seriam inaceitáveis, principalmente o pesque-pague-solte, onde o estresse para o peixe é extremo em um corpo d’água reduzido

        Segundo esse último ponto de vista, algumas ou todas as práticas de lazer com peixes seriam inaceitáveis, principalmente o pesque-pague-solte, onde o estresse para o peixe é extremo em um corpo d’água reduzido, pois o mesmo indivíduo pode ser recapturado várias vezes, em curto intervalo de tempo. Seria possível justificar o tratamento supostamente cruel aos peixes por resultar em grandes benefícios aos humanos, como em pesquisas laboratoriais para desenvolver novos medicamentos, o que justificaria o tratamento supostamente cruel aos peixes. Outros autores, porém, preferem a abordagem pragmática, pautados em critérios fisiológicos, comportamentais ou nas condições dos indivíduos capturados e liberados. 

        Essa discussão ainda poderia incluir mais dois argumentos: (III) o ecológico, com duas posições, a negativa (o pesque-solte pode induzir a introdução e a dispersão de espécies exóticas e seus parasitos, aumentando a degradação ambiental) e a positiva (o pescador amador seria defensor da conservação do ecossistema onde vive sua ‘presa’); e (IV) o socioeconômico, pois a atividade gera empregos e renda.

        [...] espécies exóticas têm sido introduzidas em diferentes bacias brasileiras para fomentar a pesca amadora. Prevalecem, novamente, as razões socioeconômicas (por influência do turismo. [...].

        [...] revistas especializadas em pesca amadora salientam boas práticas de captura e soltura baseadas em normas internacionais, mas não questionam os aspectos éticos da atividade. Assim, apesar da inexistência de estudos que revelem como nossas espécies [...] respondem ao estresse do pesque-solte, pacotes turísticos são vendidos indiscriminadamente.

Como reduzir danos?

        Algumas normas gerais para diminuir as lesões nos peixes soltos incluem usar anzóis sem farpa, circulares ou a igarateia, para evitar sangramento ou rompimento de ligamentos da garganta e brânquias; liberar o peixe ainda dentro d’água, para evitar estresse térmico e de oxigenação. [...].

        Para minimizar outros danos, não é aconselhável prolongar a “briga” durante a captura, pois o animal cansado, depois de solto, pode ser uma presa fácil [...]. Além disso, deve-se usar uma luva macia no manuseio, para evitar que escamas se soltem, o que facilita a infecção do peixe [...]. Para fotografar os peixes, pode ser usado – embora seja melhor mantê-lo apenas na posição horizontal – um alicate especial (bogagrip), de preferência os que têm extremidades envolvidas em borracha macia, para retirar o animal da água [...], ou o passaguá [...].

Mortes e prejuízos

        Como mencionado, ainda não existem dados sobre os efeitos do pesque-solte relacionado às espécies de peixes brasileiros preferenciais, mas em outros países há muitos estudos sobre a mortalidade de várias espécies após a soltura [...].

        Experimentos com a truta-arco-íris (Oncorhynchus mykiss) mostraram que o estresse associado à captura é suficiente para suprimir a produção de hormônios reprodutivos. [...] Efeitos semelhantes foram relatados para o achigã, ou largemouth bass (Micropterus salmóides), e outros do gênero Micropterus soltos após a captura. Por outro lado, estudos de campo com o robalo-branco, ou common snook (Centropomus undecimalis), mostraram que o bloqueio dos ovários e a atividade reprodutiva foram similares em animais submetidos ao pesque-solte e naqueles não pescados.

        Em espécies que cuidam de seus ninhos, como o achigã, o achigã-da-boca-pequena (smallmouth bass, Micropterus dolomico) e outros, a remoção do macho pode deixar o ninho vulnerável à predação. [...]. Isso pode ocorre também com espécies brasileiras com o mesmo comportamento, como acarás (vários gêneros) e tucunarés (gênero Cichla). [...] Para espécies que guardam a prole na boca, como alguns acarás e o aruanã-prateado (Osteoglossum bicirrhosum), da Amazônia, o pesque-solte pode ser um desastre. [...].

        Os peixes são os últimos animais capturados pelos humanos, em grande escala. Cerca de 90% dos estoques pesqueiros marinhos já ultrapassaram seu nível ótimo de produção devido à pesca excessiva e 25% das espécies de água doce foram extintas em razão da canalização dos rios, do desmatamento das margens, da construção de represas e da poluição doméstica e industrial. O ditado diz que “o peixe morre pela boca”, e se continuarmos assim estamos condenados a morrer de solidão em um mundo sem animais.

Miguel Petrene Jr. Revista Ciência Hoje, n° 317, p. 16-19, ago. 2014.

                  Fonte: Livro – Para Viver Juntos – Português – 9º ano – Ensino Fundamental – Anos Finais – Edições SM – p. 126-8.

Entendendo o artigo:

01 – Releia este trecho da linha fina.

        “[...]Os que defendem essa forma de lazer alegam que ela ajuda a preservar suas populações, mas outros a criticam, por causar estresse, lesões e até sua morte.”

a)   As justificativas do grupo favorável ao pesque-solte e do grupo contrário são apresentadas como fato ou opinião? Comprove sua resposta.

Justificativa do grupo favorável: apresentada como opinião. As pessoas desse grupo dizem algo, é a visão delas; uma alegação.

Justificativa do grupo contrário: apresentada como fato. O pesque-solte causa efetivamente prejuízos.

b)   Segundo o texto integral da linha fina, o pesque-solte seria justificável ou reprovável? Explique.

Reprovável, pois se diz ali que estudos internacionais confirmam o estresse e as lesões causadas aos peixes.

02 – Apesar da posição de alerta quanto ao pesque-solte, o artigo é produzido sem que se tome partido de forma passional. Mostre como cada trecho a seguir comprova essa declaração.

I – “Seria possível justificar o tratamento supostamente cruel aos peixes por resultar em grandes benefícios aos humanos, como em pesquisas laboratoriais [...]”.

II – “[...] o bem-estar dos peixes depende da ausência de dor, embora ainda não se saiba se esses animais de fato a sentem (ao menos como é sentida por humanos)”.

      I – Ao escrever “supostamente”, o autor indica que o tratamento dado aos peixes não é consensualmente cruel.

      II – Ao escrever “embora ainda não se saiba...”, o autor indica que não há prova definitiva de dor sentida pelos peixes ou do tipo de dor que podem sentir.

03 – O fato de não se saber se os peixes de fato sentem dor invalida o argumento ético?

      Não. De qualquer forma, há um desrespeito ao animal, pois o estresse é confirmado, assim como o são outras consequências danosas.

04 – O texto faz uma explanação didática dos tipos de pesca.

a)   Construa um esquema para representa-los.

Pesca: Amadora – àquela em que o peixe não pode ser comercializado. 1 – Com o consumo do peixe. 2 – Com a soltura do peixe após a captura (pesque-solte): a) Mandatória; b) Voluntária.

Profissional – aquela em que o peixe é comercializado. 1 – Artesanal. 2 – Industrial.

b)   Explique a importância desse detalhamento.

Todos os termos da área ficam esclarecidos ao leitor, e isso é necessário porque várias daquelas designações são usadas no artigo. Além disso, não há o risco de o leitor julgar a pesca amadora como inofensiva apenas, ou o de julgar a pesca profissional como uma ameaça, pois a extensão dos termos é previamente esclarecida.

05 – No texto, por qual outra palavra o critério pragmático foi indicado?

      Fisiológico.

06 – Releia o final do texto e responda às questões a seguir.

a)   Qual o significado literal e o figurado do ditado citado?

Literalmente, a frase significa que o peixe morre quando morde a isca lançada pelo pescador. No sentido figurado, o ditado indica que devemos ter cuidado com aquilo que dizemos, porque podemos estar engolindo uma “isca”, uma armadilha que nos lançaram.

b)   A que o autor se refere ao escrever “se continuarmos assim”?

Se continuarmos matando o peixe pela boca.

c)   O autor empregou o ditado no sentido literal ou figurado? Explique.

Literal. Ele quis alertar para o fato de que ficaremos sem os animais, se continuarmos eliminando os peixes por meio da pesca (seja com o consumo deste, seja com sua soltura, pois esta também os atinge).

07 – Existem outros aspectos relativos à pesca que podem ser abordados em um artigo de divulgação científica, como a pesca predatória e a pesca industrial em larga escala. O autor do texto não discute essas questões. Por quê? Essa escolha é um defeito do texto? Explique.

      Um artigo de divulgação científica como esse tende a aprofundar a discussão, por isso escolhe-se um aspecto, justamente para ele poder ser bem trabalhado. Dessa forma, a ausência de outros aspectos (não pertinentes ao tema escolhido) não é considerada um defeito, justamente porque o autor não se propôs a discuti-los.

 

 

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