segunda-feira, 9 de novembro de 2020

CONTO: TRABALHADORES DO BRASIL - WANDER PIROLI - COM GABARITO

 Conto: Trabalhadores do Brasil

             Wander Piroli

    Como uma ilha entre as pessoas que se comprimiam no abrigo de bonde, o homem mantinha-se concentrado no seu serviço. Era especialista em colorir retrato e fazia caricatura em cinco minutos. No momento ele retocava uma foto de Getúlio Vargas, que mostrava um dos melhores sorrisos do presidente morto.

        O homem estava sentado num tamborete rústico, com os joelhos cruzados e a cabeça baixa. À sua direita havia uma mesinha de desarmar, entulhada de lápis de vários tipos e cores, folhas de papel em branco, borrachas, tesoura e um pouco de estopa. Havia ainda uma tabuleta em cima da pequena mesa, apoiando-se na pilastra onde estavam expostos seus trabalhos: fotografias coloridas de grandes personalidades e caricaturas também de grandes personalidades.

        Nem sequer a chegada do bonde fez o homem levantar a cabeça. Trabalhava variando de lápis calmamente, como se não tivesse nenhuma pressa ou mesmo não desejasse terminar o serviço. Getúlio na foto continuava sorrindo para o homem com um de seus melhores sorrisos.

        Uma mulher esturrada, de alpargata e vestido muito largo, aproximou-se e parou à sua frente. O homem levantou a cabeça:

        -- Você, Maria.

        Ela moveu o rosto com dificuldade e fez o possível para sorrir, fixando atenta e profundamente a cara do homem.

        -- Aconteceu alguma coisa?

        -- Não – murmurou a mulher.

        O homem pôs a fotografia e o lápis na mesa e esperou que a mulher falasse. Olhavam-se como duas pessoas de intensa convivência.

        -- Não houve mesmo nada? – tornou o homem.

        -- Claro que não, Zé. Eu vim à toa.

        -- E os meninos?

        -- Mamãe está com eles.

        -- Como é que você arranjou para chegar até aqui?

        -- Uai, eu vim.

        -- A pé? Você não devia ter vindo, Maria. Estou achando que houve alguma coisa.

        -- Não teve nada, não. Mamãe chegou lá em casa e então eu aproveitei para dar um pulo até aqui.

        -- Ah – o homem sorriu. E uma onda de carinho, quase imperceptível, assomou-lhe o rosto lento e sofrido.

        -- Fez alguma coisa hoje, Zé?

        -- Fiz um – respondeu levantando-se. – Senta aqui. Você deve estar cansada.

        A mulher sentou no tamborete, desajeitada.

        -- Você não devia ter vindo, Maria – disse o homem.

        -- Eu sei, mas me deu vontade. Mamãe ficou lá com os meninos.

        -- Mas ela não estava doente?

        -- Você sabe como mamãe é.

        -- E o Tonhinho?

        -- Está lá. 

        -- O carnegão saiu?

        A mulher fez sim com a cabeça e em seguida olhou para o abrigo, onde havia pequenas lojas de frutas, café, pastelaria.

        -- Espera um pouquinho aí – disse o homem, e caminhou na direção de uma das lojas.

        A mulher permaneceu sentada no tamborete, observou por um momento o vendedor de agulhas, que continuava gritando, depois deteve a vista na foto de Getúlio Vargas sorrindo para os trabalhadores do Brasil. O homem reapareceu com um saquinho manchado de gordura.

        -- Esses pastéis.

        -- Oh, Zé, para que você fez isso?

        -- Vamos, come um.

        -- Você não devia ter comprado.

        -- Vamos.

        A mulher retirou um pastelzinho do saco e começou a mastigá-lo com muito prazer.

        -- Come o outro, Zé.

        -- Já comi uns dois hoje. Esse outro também é seu.

        -- Então eu vou levar ele pros meninos.

        -- É pior, Maria.

        O homem ficou de pé, ao lado da mulher, observando-a comer o segundo pastel. A mulher acabou de comer, limpou a boca na manga do vestido e fez menção de levantar-se:

        -- Fica aqui, Zé. Pode aparecer alguém.

        -- Não, eu passei a manhã toda assentado.

        A mulher sentada e o homem em pé conservaram-se silenciosos durante um breve e ao mesmo tempo longo momento, ora olhando um para o outro, ora cada um olhando as pessoas agora espalhadas no abrigo ou não olhando coisa nenhuma. A mulher se ergueu:

        -- Acho que eu vou andando. 

        -- Já vai?

        -- Mamãe não aguenta eles, você sabe.

        -- Ah, é mesmo. Você não devia ter vindo.

        O homem tirou uma nota de dentro do bolso do paletó e estendeu-a para a mulher.

        -- Volta de bonde.

        -- Não, Zé.

        -- É muito longe, criatura.

        -- Não.

        -- Ora, minha nega.

        A mulher pegou o dinheiro com a mão indecisa.

        -- Vou ver se levo.

        O homem assentiu com a cabeça, abriu a boca mas não disse nada. A mulher desviou o rosto e piscou os olhos várias vezes.

        -- Não chega tarde não, viu, Zé.

        -- Chego não.

        -- Você vai fazer.

        -- Hoje eu sei que vai melhorar.

        -- Vai sim, Zé. Eu seu que vai. Eu sei.

        A mulher se afastou rapidamente, sem voltar o rosto. O homem empinou-se um pouco para vê-la atravessar a rua. Depois sentou no tamborete e pegou um lápis e o retrato.

        Durante muito tempo o homem permaneceu com a cabeça baixa, imóvel dentro de sua ilha, curvado sobre a foto que mostrava o presidente morto com aquele sorriso de seus melhores dias.

                                       Wander Piroli. A mãe e o filho da mãe: e a máquina de fazer amor. Belo Horizonte: Leituras, 2009.

                       Fonte: Livro – Para Viver Juntos – Português – 9° ano – Ensino Fundamental – Anos Finais – Edições SM – p. 46-50.

Entendendo o conto:

01 – Qual é o principal evento narrado nesse conto?

      O conto narra a visita de uma mulher a seu companheiro (ou marido), no local onde ele trabalha.

02 – As personagens conversam pouco, porém algumas de suas ações revelam o sentimento que poderia existir entre elas.

a)   Qual é, provavelmente, esse sentimento?

Sentimento de carinho, afeição.

b)   Copie o quadro abaixo no caderno e complete-o com atitudes das personagens que sugerem esse sentimento ao leitor.

-- Sem que a mulher peça, o homem:

* Levanta do tamborete e oferece a ela o lugar;

* O homem compra pastéis para a mulher;

* Oferece dinheiro para que ela volte de bonde.

-- Ela, em troca:

* Faz menção de devolver o lugar oferecido;

* Oferece a ele o segundo pastel;

* A mulher recomenda a ele que não chegue tarde e mostra esperança de que o dia melhore (que ele tenha trabalho).

03 – Releia este trecho:

        “-- Não houve mesmo nada? – tornou o homem.

         -- Claro que não, Zé. Eu vim à toa.

         [...]

         -- A pé? Você não devia ter vindo, Maria. Estou achando que houve alguma coisa.

        -- Não teve nada, não. Mamãe chegou lá em casa e então eu aproveitei para dar um pulo até aqui.

        [...]

        -- Você não devia ter vindo, Maria – disse o homem.

        -- Eu sei, mas me deu vontade.”

a)   Dentre as opções abaixo, copie a resposta certa: O que o homem tem a intenção de dizer à mulher, ao repetir que ela não deveria ter ido até a praça?

·        Que ela cometeu um grave erro indo até lá.

·        Que ela não precisava ter feito tal sacrifício só para vê-lo.

b)   A mulher afirma que sua visita não foi motivada por nenhum problema. O que a teria levado até lá?

Ela foi porque teve vontade, porque quis estar perto do marido.

c)   O fato de a visita da mulher não ter sido motivada por um problema reforça ou contradiz o sentimento que, possivelmente, as personagens alimentam uma pela outra? Explique.

Reforça, pois, pelos comentários do homem, percebemos que ela fez um sacrifício indo até lá, e apenas para vê-lo por uns momentos.

04 – Releia estas passagens.

        I – Ela [...] fez o possível para sorrir, fixando atenta e profundamente a cara do homem.

        II – O homem [...] esperou que a mulher falasse. Olhavam-se como duas pessoas de intensa convivência.

        III – O homem ficou de pé, ao lado da mulher, observando-a comer o segundo pastel.

        A comunicação entre as personagens, nesses trechos, acontece por meio de um gesto específico. Qual?

      O olhar.

05 – As falas das personagens são curtas. Essa característica da linguagem pode ser associada a certa reserva ou secura na manifestação do afeto entre as personagens. Copie um trecho do texto em que o narrador confirma esse jeito de ser das personagens.

      “Ela moveu o rosto com dificuldade e fez o possível para sorrir, fixando atenta e profundamente a cara do homem.”

      “-- Ah – o homem sorriu. E uma onda de carinho, quase imperceptível, assomou-lhe o rosto lento e sofrido.”.

06 – Analise as circunstâncias em que acontece o encontro das personagens.

a)   Em que horário do dia deve ter ocorrido? Em que você se baseia para concluir isso?

Provavelmente no fim da manhã, já que Zé diz que passara a manhã toda sentado.

b)   Quantos trabalhos o homem tinha feito até aquele momento?

Apenas um.

c)   As personagens dizem que o dia vai melhorar, ou seja, que Zé vai ter mais trabalho. Elas se baseiam em algum dado objetivo para prever isso? Explique.

Elas não se baseiam em dados objetivos; trata-se mais de um desejo de que o dia melhore do que de uma previsão realista.

07 – Os silêncios, as falas curtas das personagens e a ausência de demonstrações de alegria e de afeto reforçam qual das ideias a seguir? Copie a resposta no caderno.

a)   A ideia de que a vida dura que as personagens levam as fez se cansarem uma da outra e tornou-as pessoas sem sentimentos.

b)   A ideia de que as personagens levam uma vida dura, enfrentando dificuldades financeiras, carente de alegria e prazeres.

08 – A vida das personagens do conto é marcada pela pobreza. Para cada item a seguir, anote as informações do texto que comprovam isso.

a)   Meio de transporte utilizado pela mulher.

Ela faz o percurso a pé na ida; na volta, para economizar, reluta em tomar o bonde.

b)   Aparência das personagens.

O homem tem rosto lento e sofrido; a mulher é esturrada.

c)   Maneira como a mulher se veste.

Ela usa um vestido muito largo e alpargatas.

d)   Ocupação do homem.

Retoca retratos e faz caricaturas em uma banca armada em um abrigo de bonde.

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