CRÔNICA: BONS DIAS!
(publicada em 21 de janeiro de 1889)
Machado de Assis
Vi não me lembra onde...
É meu costume; quando não tenho que fazer em casa, ir por esse mundo de Cristo,
se assim se pode chamar à cidade de São Sebastião, matar o tempo.
Não conheço melhor ofício,
mormente se a gente se mete por bairros excêntricos; um homem, uma tabuleta,
qualquer coisa basta a entreter o espírito, e a gente volta para casa
"lesta e aguda", como se dizia em não sei que comédia antiga.
Naturalmente, cansadas as
pernas, meto-me no primeiro Bond, que pode trazer-me à casa ou à Rua do
Ouvidor, que é onde todos moramos. Se o Bond é dos que têm de ir por
vias estreitas e atravancadas, torna-se um, verdadeiro obséquio do céu. De
quando em quando, pára diante de uma carroça que despeja ou recolhe fardos. O
cocheiro trava o carro, ata as rédeas, desce e acende um cigarro: o condutor
desce também e vai dar uma vista de olhos ao obstáculo. Eu, e todos os
veneráveis camelos da Arábia, vulgo passageiros, se estamos dizendo alguma
coisa, calamo-nos para ruminar e esperar.
Ninguém sabe o que sou
quando rumino. Posso dizer, sem medo de errar, que rumino muito melhor do que
falo. A palestra é uma espécie de peneira, por onde a ideia sai com
dificuldade, creio que mais fina, mas muito menos sincera. Ruminando, a ideia
fica integra e livre. Sou mais profundo ruminando; e mais elevado também.
Ainda anteontem,
aproveitando uma meia hora de Bond parado, lembrou-me não sei como o
incêndio do club dos Tenentes do Diabo. Ruminei os episódios todos,
entre eles os atos de generosidade tia parte das sociedades congêneres; e
fiquei triste de não estar naquela primeira juventude, em que a alma se mostra
capaz de sacrifícios e de bravura. Todas essas dedicações dão prova de uma
solidariedade rara, grata ao coração.
Dois episódios, porém, me
deram a medida do que valho, quando rumino. Toda a gente os leu separadamente;
o leitor e eu fomos os únicos que os comparamos. Refiro-me, primeiramente, à
ação daqueles sócios de outro club, que correram à casa que ardia, e,
acudindo-lhes à lembrança os estandartes, bradaram que era preciso salvá-los.
"Salvemos os estandartes!", e tê-lo-iam feito, a troco da vida de
alguns, se não fossem impedidos a tempo. Era loucura, mas loucura sublime. Os
estandartes são para eles o símbolo da associação, representam a honra comum,
as glórias comuns, o espírito que os liga e perpetua.
Esse foi o primeiro
episódio. Ao pé dele temos o do empregado que dormia, na sala. Acordou este,
cercado de fumo, que o ia sufocando e matando. Ergueu-se, compreendeu tudo,
estava perdido, era preciso fugir. Pegou em si e no livro da escrituração e
correu pela escada abaixo. Comparai esses dois atos, a salvação dos estandartes
e a salvação do livro, e tereis uma imagem completa do homem. Vós mesmos que me
ledes sois outros tantos exemplos de conclusão. Uns dirão que o empregado,
salvando o livro, salvou o sólido; o resto é obra de sirgueiro. Outros
replicarão que a contabilidade pode ser reconstituída, mas que o estandarte,
símbolo da associação, é também a sua alma; velho e chamuscado, valeria muito
mais que o que possa sair agora' novo, de uma loja. Compará-lo-ão à bandeira de
uma nação, que os soldados perdem no combate, ou trazem esfarrapada e gloriosa.
E todos vós tereis razão;
sois as duas metades do homem formais o homem todo... Entretanto, isso que aí
fica dito está longe da sublimidade com que o ruminei. Oh! Se todos ficássemos
calados! Que imensidade de belas e grandes ideias! Que saraus excelentes! Que
sessões de Câmara! Que magníficas viagens de bond!
Mas por onde é que eu tinha
principiado? Ah! Uma coisa que vi, sem saber onde... Não me lembro se foi
andando de bond; creio que não. Fosse onde fosse, no centro da cidade ou
fora dela. Vi, à porta de algumas casas, esqueletos de gente postos em atitudes
joviais. Sabem que o meu único defeito é ser piegas; venero os esqueletos, já
porque o são, já porque o não sou. Não sei se me explico.
Tiro o chapéu às caveiras;
gosto da respeitosa liberdade com que Hamlet fala à do bobo Yorick. Esqueletos
de mostrador, fazendo guifonas, sejam eles de verdade ou não, é coisa que me
aflige. Há tanta coisa gaiata por esse mundo, que não vale a pena ir ao outro
arrancar de lá os que dormem. Não desconheço que esta minha pieguice ia melhor
em verso, com toada de recitativo ao piano: Mas é que eu não faço versos; isto
não é verso: Venha o esqueleto, mais tristonho e grave Bem como a ave, que
fugiu do além...
Sim, ponhamos o esqueleto
nos mostradores, mas sério, tão sério como se fosse o próprio esqueleto do
nosso avô, por exemplo... Obrigá-lo a uma polca, habanera, lundu ou
cracoviana... Cracoviana? Sim, leitora amiga, é uma dança muito antiga, que o
nosso amigo João, cá de casa, executa maravilhosamente, no intervalo dos seus
trabalhos. Quando acaba, diz-nos sempre, parodiando um trecho de Shakespeare:
"Há entre a vossa e a
minha idade, muitas mais coisas do que sonha a vossa vã filosofia."
Boas noites.
Biblioteca
Virtual do Estudante Brasileiro http://www.bibvirt.futuro.usp.br
Permitido uso para fins educacionais.
Entendendo a Crônica
1) Observe o seguinte trecho:
“Não
conheço melhor ofício, mormente se a gente se mete por bairros excêntricos; um
homem, uma tabuleta, qualquer coisa basta a entreter o espírito, e a gente
volta para casa “lesta e aguda”, como se dizia em não sei que comédia antiga”.
- Qual tipo de linguagem está representado na
expressão “se a gente”?
Linguagem coloquial, informal.
a) Estrangeirismos.
b) Variedades
sociais.
c) Variedades
regionais.
d) Variedades estilísticas.
3) No trecho “A palestra é uma espécie de peneira, por onde a ideia sai com dificuldade, creio que mais fina, mas muito menos sincera”, a palavra “mas” estabelece uma relação de:
a) Adição.
b) Oposição.
c) Alternância.
d) Explicação.
4) Em que pessoa verbal o narrador conta o fato?
Em primeira pessoa do singular.
Por estar no plural “Bons dias!” desperta a emoção de notícias boas,
alegres, e em se tratando de Machado de Assis com uma pitada de ironia.
6) De que se trata a crônica?
Revela o processo de criação do narrador-cronista. O andar de bonde “desliga”
o cronista do tempo cronológico e, deixando a mente vagar, mergulha nas
pequenas ocorrências do cotidiano.
Os fatos acontecem dentro de um Bond.
Nenhum comentário:
Postar um comentário