sábado, 7 de novembro de 2020

CRÔNICA: BONS DIAS! (21 DE JANEIRO DE 1889) - MACHADO DE ASSIS - COM GABARITO

 CRÔNICA: BONS DIAS!

(publicada em 21 de janeiro de 1889)            


        Machado de Assis

 

Vi não me lembra onde...
É meu costume; quando não tenho que fazer em casa, ir por esse mundo de Cristo, se assim se pode chamar à cidade de São Sebastião, matar o tempo.

Não conheço melhor ofício, mormente se a gente se mete por bairros excêntricos; um homem, uma tabuleta, qualquer coisa basta a entreter o espírito, e a gente volta para casa "lesta e aguda", como se dizia em não sei que comédia antiga.

Naturalmente, cansadas as pernas, meto-me no primeiro Bond, que pode trazer-me à casa ou à Rua do Ouvidor, que é onde todos moramos. Se o Bond é dos que têm de ir por vias estreitas e atravancadas, torna-se um, verdadeiro obséquio do céu. De quando em quando, pára diante de uma carroça que despeja ou recolhe fardos. O cocheiro trava o carro, ata as rédeas, desce e acende um cigarro: o condutor desce também e vai dar uma vista de olhos ao obstáculo. Eu, e todos os veneráveis camelos da Arábia, vulgo passageiros, se estamos dizendo alguma coisa, calamo-nos para ruminar e esperar.

Ninguém sabe o que sou quando rumino. Posso dizer, sem medo de errar, que rumino muito melhor do que falo. A palestra é uma espécie de peneira, por onde a ideia sai com dificuldade, creio que mais fina, mas muito menos sincera. Ruminando, a ideia fica integra e livre. Sou mais profundo ruminando; e mais elevado também.

Ainda anteontem, aproveitando uma meia hora de Bond parado, lembrou-me não sei como o incêndio do club dos Tenentes do Diabo. Ruminei os episódios todos, entre eles os atos de generosidade tia parte das sociedades congêneres; e fiquei triste de não estar naquela primeira juventude, em que a alma se mostra capaz de sacrifícios e de bravura. Todas essas dedicações dão prova de uma solidariedade rara, grata ao coração.

Dois episódios, porém, me deram a medida do que valho, quando rumino. Toda a gente os leu separadamente; o leitor e eu fomos os únicos que os comparamos. Refiro-me, primeiramente, à ação daqueles sócios de outro club, que correram à casa que ardia, e, acudindo-lhes à lembrança os estandartes, bradaram que era preciso salvá-los. "Salvemos os estandartes!", e tê-lo-iam feito, a troco da vida de alguns, se não fossem impedidos a tempo. Era loucura, mas loucura sublime. Os estandartes são para eles o símbolo da associação, representam a honra comum, as glórias comuns, o espírito que os liga e perpetua.

Esse foi o primeiro episódio. Ao pé dele temos o do empregado que dormia, na sala. Acordou este, cercado de fumo, que o ia sufocando e matando. Ergueu-se, compreendeu tudo, estava perdido, era preciso fugir. Pegou em si e no livro da escrituração e correu pela escada abaixo. Comparai esses dois atos, a salvação dos estandartes e a salvação do livro, e tereis uma imagem completa do homem. Vós mesmos que me ledes sois outros tantos exemplos de conclusão. Uns dirão que o empregado, salvando o livro, salvou o sólido; o resto é obra de sirgueiro. Outros replicarão que a contabilidade pode ser reconstituída, mas que o estandarte, símbolo da associação, é também a sua alma; velho e chamuscado, valeria muito mais que o que possa sair agora' novo, de uma loja. Compará-lo-ão à bandeira de uma nação, que os soldados perdem no combate, ou trazem esfarrapada e gloriosa.

E todos vós tereis razão; sois as duas metades do homem formais o homem todo... Entretanto, isso que aí fica dito está longe da sublimidade com que o ruminei. Oh! Se todos ficássemos calados! Que imensidade de belas e grandes ideias! Que saraus excelentes! Que sessões de Câmara! Que magníficas viagens de bond!

Mas por onde é que eu tinha principiado? Ah! Uma coisa que vi, sem saber onde... Não me lembro se foi andando de bond; creio que não. Fosse onde fosse, no centro da cidade ou fora dela. Vi, à porta de algumas casas, esqueletos de gente postos em atitudes joviais. Sabem que o meu único defeito é ser piegas; venero os esqueletos, já porque o são, já porque o não sou. Não sei se me explico.

Tiro o chapéu às caveiras; gosto da respeitosa liberdade com que Hamlet fala à do bobo Yorick. Esqueletos de mostrador, fazendo guifonas, sejam eles de verdade ou não, é coisa que me aflige. Há tanta coisa gaiata por esse mundo, que não vale a pena ir ao outro arrancar de lá os que dormem. Não desconheço que esta minha pieguice ia melhor em verso, com toada de recitativo ao piano: Mas é que eu não faço versos; isto não é verso: Venha o esqueleto, mais tristonho e grave Bem como a ave, que fugiu do além...

Sim, ponhamos o esqueleto nos mostradores, mas sério, tão sério como se fosse o próprio esqueleto do nosso avô, por exemplo... Obrigá-lo a uma polca, habanera, lundu ou cracoviana... Cracoviana? Sim, leitora amiga, é uma dança muito antiga, que o nosso amigo João, cá de casa, executa maravilhosamente, no intervalo dos seus trabalhos. Quando acaba, diz-nos sempre, parodiando um trecho de Shakespeare:

"Há entre a vossa e a minha idade, muitas mais coisas do que sonha a vossa vã filosofia."

Boas noites.

Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro http://www.bibvirt.futuro.usp.br
Permitido uso para fins educacionais.

 

Entendendo a Crônica

1)   Observe o seguinte trecho:

“Não conheço melhor ofício, mormente se a gente se mete por bairros excêntricos; um homem, uma tabuleta, qualquer coisa basta a entreter o espírito, e a gente volta para casa “lesta e aguda”, como se dizia em não sei que comédia antiga”.

 - Qual tipo de linguagem está representado na expressão “se a gente”?

Linguagem coloquial, informal.

 2)   Palavras  como “bond” e “club”. São exemplos de:

a)   Estrangeirismos.

b)   Variedades sociais.

c)   Variedades regionais.

d)   Variedades estilísticas.

3)   No trecho “A palestra é uma espécie de peneira, por onde a ideia sai com dificuldade, creio que mais fina, mas muito menos sincera”, a palavra “mas” estabelece uma relação de:

    a)   Adição.

   b)   Oposição.

   c)   Alternância.

   d)   Explicação.


4)   Em que pessoa verbal o narrador conta o fato?

             Em primeira pessoa do singular.

      5)   O título de um texto é sempre o primeiro a levantar expectativas quanto ao seu conteúdo. A partir dele fazemos uma série de suposições iniciais que depois podem ser modificadas ou confirmadas. Que emoções e ideias foram despertadas pela leitura dessa crônica? Comente.

        Por estar no plural “Bons dias!” desperta a emoção de notícias boas, alegres, e em se tratando de Machado de Assis com uma pitada de ironia.

    6)   De que se trata a crônica?

     Revela o processo de criação do narrador-cronista. O andar de bonde “desliga” o cronista do tempo cronológico e, deixando a mente vagar, mergulha nas pequenas ocorrências do cotidiano.

 7)   Onde acontecem os fatos narrados?

Os fatos acontecem dentro de um Bond.

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