CRÔNICA: Touro, na 0084
Milton Dias Uma tarde, àquela hora angustiosa da espera do
bicho, praticamente desligado da realidade, perdido em sonhos e projetos, o
telefone tocou, na mesa vizinha, ele atendeu. Era uma voz de rapazote chamando
Vivaldo, que se ausentara um momento: – Olhe aqui! Seu Vivaldo pediu para
informar a milhar assim que corresse. Por favor, diga a ele que deu o touro na
0084. Inocêncio empalideceu, pediu que repetisse, que aguardasse um minuto.
Arrancou do bolso a pule, num gesto nervoso, conferindo, constatou: era a
milhar que tinha jogado, não havia dúvida. E repôs violentamente o fone no
gancho. A pele mulata retomou sangue subitamente, passou da palidez ao rubor, e
Inocêncio anunciou aos gritos para os companheiros: Deu o touro, ganhei! Deu o
touro na 0084, nós ganhamos, eu e o Vivaldo! E apoplético, as veias do pescoço
saltadas, o olhar esgazeado, caminhou, como um autômato, em direção ao gabinete
da gerência, abriu a porta intempestivamente, sem se anunciar. E diante do
gerente gordo, atônito, lento, instalado como um rei, abanou-lhe o queixo com a
pule, gritou triunfante: – Tá vendo isto aqui? É a minha carta de alforria! Não
preciso mais desta droga nem uma hora! Vão-se todos pro inferno, magote de
miserável! Já ouviu? Pro inferno! E saiu, batendo a porta com estrépito. Deixou
o gerente incapaz de entender aquele destampatório insólito, da parte de quem
sempre se manifestara aparentemente dócil, quase servil, junto aos chefes. Voltou,
em seguida, ao escritório, riu para os colegas o riso da vitória e ainda
excitado, agitando a pule como bandeira da vitória, comentou, quase aos gritos,
entre aliviado e superior: – Eu sabia! Eu sabia que havia de me livrar desta
corja... Nisto, Vivaldo entrou na sala. Inocêncio encaminhou-se para ele,
abriu-lhe os braços num gesto de confraternização e de alegria, num convite
tácito para a comemoração em comum do grande momento, a boca rasgada num riso
amplo, os olhos faiscando de felicidade. De repente, numa fração de segundo,
surpreendeu no olhar do companheiro uma expressão velhaca, um raio matreiro, de
inteligência e de mofa, acompanhado dum riso inesquecível, irônico, quase
zombeteiro. O qual riso, crescendo numa crise incontida, explodiu numa
gargalhada achincalhante, revelando, sem palavras, que Vivaldo lhe pregara uma
peça e que a estória toda da milhar não passava de um trote.
DIAS, Milton. Entre a boca da noite e a madrugada.
Fortaleza: Edições UFC, 2008, p. 24-25. Coleção Literatura no Vestibular.
01. Analise o que se pede em
cada subitem a seguir e assinale a única alternativa correta para cada um. A
escolha de mais de uma alternativa por item anula a resposta.
1.1. Da leitura do texto, depreende-se que
Inocêncio esperava vir, do sucesso no jogo, sua redenção financeira e, por
consequência, sua alforria da Companhia para a qual trabalhava; por isso, a
hora da espera do bicho era “angustiosa”. Nessa hora, Inocêncio desligava-se da
realidade e perdia-se “em sonhos e projetos”. Essa atitude de Inocêncio vai de
encontro ao dito popular:
A) Quem não arrisca não
petisca.
B) Não confie na
sorte, o triunfo nasce da luta.
C) Aproveite a sorte,
enquanto ela está a seu favor.
1.2. Ao acreditar que ganhara no
jogo-do-bicho, Inocêncio invade a sala do gerente da Companhia onde trabalha e
diz tudo o que pensa. Logo depois, porém, toma conhecimento de que “a estória
toda da milhar não passava de um trote”. Inocêncio teria poupado a si mesmo do
ridículo caso tivesse aplicado a lição do seguinte dito popular:
A) O que guarda
sua boca conserva sua alma.
B) Não deixes para amanhã o
que podes fazer hoje.
C) O sol nasce para todos, a
lua para quem merece.
1.3. A reação de Inocêncio
deixou “o gerente incapaz de entender aquele destampatório insólito, da parte
de quem sempre se manifestara aparentemente dócil, quase servil, junto aos
chefes”. Aplica-se ao caso de Inocêncio o dito popular:
A) As aparências
enganam.
B) Quem espera sempre
alcança.
C) Depois da tormenta,
sempre vem a bonança.
1.4. Em relação a Inocêncio,
Vivaldo mostrou ser um amigo ao qual se aplica o dito popular:
A) Amigos, amigos; negócios,
à parte.
B) Amigo
disfarçado, inimigo dobrado.
C) É na necessidade que se
conhece o amigo.
1.5. Quando ainda não sabia
que “a estória toda da milhar não passava de um trote”, Inocêncio “riu para os
colegas o riso da vitória”. Na continuidade, lê-se sobre a reação de Vivaldo ao
revelar o trote: “O qual riso, crescendo numa crise incontida, explodiu numa
gargalhada achincalhante.”. Aplica-se ao riso de Inocêncio o dito popular:
A) Muito riso,
pouco siso.
B) Rir é o melhor remédio.
C) Quem ri por último ri
melhor.
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