Conto: O HOMEM QUE RESOLVEU CONTAR APENAS MENTIRAS
Ignácio de Loyola Brandão Naquela manhã, acordou disposto a só
contar mentiras. A não dizer uma única verdade. A ninguém. Nem à própria
mulher. E assim quando afirmou: “vou para o trabalho”, empregou sua primeira
mentira. Não ia. Tinha resolvido faltar, esquecer o escritório, a mesa, os
papéis. Parar, ficar na rua.
Quando disse bom-dia para o zelador do
prédio, também mentia, porque odiava o zelador, um oportunista, que não
conservava o prédio, fazia fofocas entre empregadas, pedia gorjetas, ganhava
porcentagem na compra de materiais de limpeza.
Quando disse o endereço ao motorista do
táxi, também mentia, não pretendia ir para aquele lugar. Mas o chofer exigira o
destino pois as pessoas vivem exigindo as coisas. E nem sempre temos vontade ou
possibilidade de fazer. E as exigências crescem e se tornam parte de nossa vida
diária. Nos acostumamos com elas, nos acomodamos, sem perceber que cada
concessão é um pedaço da gente mesmo, envenenado, que a gente engole.
Quando o homem entrou no bar e pediu
café, mentia, porque não queria café. Estava apenas fazendo um teste, enquanto
observava o gesto maquinal daquele empregado que destacava uma ficha e a
entregava. Será que aquele funcionário, alguma vez, imaginou que alguém pudesse
não querer café? Pedir, por pedir, mas não querer? Nem sequer desejar ver a
xícara fumegante?
Com a ficha na mão, saiu pela rua.
Outra mentira, não queria ficar na rua. Mas se entrasse no escritório, seria
mentira maior. Odiava o escritório, o empregado, os colegas. De duas mentiras,
preferiu a menor, ainda que, ponderando, descobrisse que ficar com a mentira
menor era igualmente fuga, mentira, porque nesse dia tinha decidido mentir. E,
quando se decide uma coisa, o melhor é levá-la até o fim.
Andou. Pensando como a cidade era
bonita com seus prédios batidos de Sol e os vidros dando mil reflexos. Bonita
com a gente que andava apressada para trabalhar e construir alguma coisa.
Bonita na tranquilidade da vida, no sossego das casas, na calma que se
estampava nos rostos das gentes. Bonita no que oferecia de futuro e de
perspectivas. Bonita nos carros que andavam em fila, ruidosamente, um atrás do
outro, sempre para frente, sempre para frente. Bonita na fumaça negra que
escapava dos veículos e subia em espirais, milhares de fumaças reunidas,
formando uma bela nuvem negra, como um negro véu, que surgia sobre a terra,
espanando o Céu.
Andou sem querer andar.
Viu, sem querer ver.
Sentiu, sem querer sentir.
Cansou, sem querer cansar.
Tudo uma grande mentira neste dia. Como
mentira era a vida que ele vivia, cotidianamente, falsificada, pré-fabricada,
exaurida, imposta. Suada. Que repousante era viver este dia de mentira. Negar
tudo. Reviver.
Andou até a hora de voltar para casa.
Outra mentira, não queria voltar para casa, o lar, o aconchego, o refúgio, a
fuga. A verdade de sua vida encerrada entre aquelas quatro paredes, a família,
o amor, o carinho, o aconchego, o lar, o refúgio, a fuga, a realidade.
Não voltar e andar. Percorrendo as
ruas, entrando nos prédios, conversando com as pessoas. No entanto, não tinha
vontade de conversar. Sabia que precisava, mas não tinha vontade de falar.
Falava pouco, sua língua andava entorpecida, sem prática. O medo é que um dia
desacostumasse e perdesse a capacidade de se comunicar. E como andava difícil
se comunicar. Ficou parado numa esquina, esperando a noite passar.
Quando o dia chegou, tinha acabado o
período da mentira, podia enfrentar de novo a verdade. E disse bom-dia ao
porteiro, deu o endereço ao táxi, ligou para a mulher e o patrão. Disse no
emprego que estava doente. E, na verdade, estava.
(Ignácio de
Loyola Brandão. O homem do furo na mão e outras histórias. São Paulo: Ática,
2000. Adaptado.)
Fonte: Língua Portuguesa. Viva
Português. 9° ano. Editora Ática. Elizabeth Campos. Paula Marques Cardoso.
Silvia Letícia de Andrade. 2ª edição. 2011. P. 81-5.
Fonte da imagem:https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fwww.mensagenscomamor.com%2Fmensagem%2F7947&psig=AOvVaw0btdNZZ072v6p0ldf7Mkyb&ust=1605630177660000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCPDDleW8h-0CFQAAAAAdAAAAABAD
Entendendo o conto:
01 – Os fatos narrados no
texto sugerem que, em seu dia de mentiras, a personagem principal:
a)
Deixa de lado todos os seus sonhos de
conquista.
b)
Percebe que as escolhas de sua vida foram
acertadas.
c)
Limita-se a fazer somente do que gosta.
d)
Rompe, pelo menos nesse dia, com
todas as suas obrigações.
e)
Faz desse dia o mais feliz de sua vida.
02 – Todas as palavras
destacadas nos trechos a seguir têm função qualitativa, exceto em:
a)
“Quando disse bom-dia para o zelador do prédio(...)”.
b)
“(...) odiava o zelador, um
oportunista, que não conservava o
prédio (...)”.
c)
“(...) enquanto observava o gesto maquinal daquele empregado...”.
d)
“Nem sequer desejar ver a xícara fumegante?”.
e)
“Pensando como a cidade era bonita com seus prédios batidos
de Sol (...)”.
03 – No início do primeiro
parágrafo, o autor usou aspas (“ ”) para indicar:
a)
Um trecho escrito propositalmente de maneira
incorreta.
b)
Uma passagem importante.
c)
Fala da personagem.
d)
Comentário irônico.
e)
Pensamentos da personagem.
04 – Observe, no primeiro
parágrafo, o número de frases iniciadas pelo conectivo e. A repetição desse conectivo sugere que a sensação da
personagem é provocada:
a)
Por uma sucessão de acontecimentos
interligados por uma relação de causa e consequência.
b)
Por uma sucessão de acontecimentos
imprevistos.
c)
Por alguns fatos pouco inesperados.
d)
Pelo modo de agir de outras pessoas.
e)
Por um acúmulo de fatos de teor
semelhante.
05 – Em: “De duas mentiras,
preferiu a menor, ainda que,
ponderando, descobrisse que ficar com a mentira menor era igualmente fuga (...)”,
o conectivo em destaque expressa ideia de:
a)
Condição.
b)
Concessão.
c)
Comparação.
d)
Causa.
e)
Consequência.
06 – Sem prejuízo de
sentido, as palavras em destaque nas frases a seguir podem ser substituídas
pelas sugeridas entre parênteses, exceto
em:
a)
“(...) enquanto observava o gesto maquinal daquele empregado
(...)” (mecânico).
b)
“Nem sequer desejar ver a xícara fumegante?” (Muito quente).
c)
“Que repousante era viver este dia de mentira” (incômodo).
d)
“(...) não queria voltar para casa, o lar, o
aconchego, o refúgio, a fuga”
(aconchego).
e)
“Falava pouco, sua língua andava entorpecida, sem prática” (adormecida).
07 – Os fatos narrados no
texto evidenciam que o cotidiano das pessoas é repleto de:
a)
Atos mecânicos.
b)
Escolhas conscientes.
c)
Fatos extraordinários.
d)
Desafios.
e)
Aborrecimentos.
08 – No trecho: “(...)
formando uma bela nuvem negra, como um negro véu (...)” temos uma figura de
linguagem que consiste em:
a)
Atenuar o sentido desagradável, grosseiro e
indecoroso de uma palavra ou expressão.
b)
Empregar uma palavra por outra, com a qual
mantém relação. No caso, a parte pelo todo.
c)
Expressar ideia contrária do que se pensa com
a finalidade de criticar.
d)
Confronto entre dois termos para
ressaltar a semelhança entre eles.
e)
Exagero intencional de uma expressão.
09 – O trecho: “Como mentira
era a vida que ele vivia, cotidianamente, falsificada, pré-fabricada, exaurida,
imposta. Suada.” Sugere que a personagem mentia por razões de ordem:
a)
Pessoal.
b)
Social.
c)
Psicológica.
d)
Familiar.
e)
Profissional.
10 – No trecho: “Falava pouco, sua língua andava entorpecida, sem
prática”, os verbos destacados exprimem fatos:
a)
Concluídos.
b)
Incertos, duvidosos.
c)
Supostamente concluídos no passado.
d)
Passados anteriores a outros também passado.
e)
Inacabados no momento em que são
narrados.
11 – No trecho: “Sabia que
precisava, mas não tinha vontade de falar.”, a alteração em que a conjunção mas é substituída sem perda de
sentido original é:
a)
“Sabia que precisava, porém não tinha vontade de falar”.
b)
“Sabia que precisava, portanto não tinha vontade de falar”.
c)
“Sabia que precisava, assim não tinha vontade de falar”.
d)
“Sabia que precisava, porque não tinha vontade de falar”.
e)
“Sabia que precisava, isto é, não tinha vontade de falar”.
12 – Em: “Quando o dia chegou, tinha
acabado o período da mentira(...)”, o conectivo em destaque pode ser
substituído, sem alteração de sentido, por:
a)
No momento em que.
b)
Uma vez que.
c)
Desde que.
d)
Mesmo que.
e)
Embora.
13 – No trecho: “Disse no
emprego que estava doente. E, na verdade, estava.”, a doença a que se refere o
autor sugere:
a)
Cansaço físico.
b)
Inconformismo.
c)
Infelicidade.
d)
Preguiça.
e)
Malandragem.
14 – Para identificar o
assunto do conto, faça no caderno o que se pede:
a)
Identifique a(s) personagem(ns) principal(is).
Um homem comum, de família.
b)
Identifique o conflito vivido pela(s)
personagem(ns) principal(is).
O homem estava cansada da vida de obrigações que levava.
c)
Identifique a principal ação realizada por
ela(s).
Passou um dia contando mentiras para as pessoas que encontrava.
d)
Identifique o lugar e o momento da ação.
A ação se passa em uma cidade, em um período que vai da manhã de um
dia até a manhã do dia seguinte.
e)
Após responder a essas questões, reúna as
informações em um só período e apresente o assunto do conto.
Um homem de família (protagonista), cansado da vida sem alternativas
que levava (conflito da personagem), levanta um certo dia (tempo) disposto a
vagar pela cidade, contando apenas mentiras (lugar e ação) a quem encontrar.
15 – Para identificar o tema
do conto: Ação – Justificativa.
a)
Reúna as mentiras contadas pela personagem
principal e as ações realmente praticadas por ela. Para isso, copie no caderno
e preencha-o:
·
Mentiu
para a mulher dizendo que iria para o trabalho.
Não iria. Tinha resolvido esquecer o escritório, a mesa, os papéis
naquele dia.
·
Mentiu
a dizer bom-dia para o zelador.
Ele odiava o zelador porque o considerava oportunista e fofoqueiro.
·
Mentiu
ao informar o destino ao motorista de táxi.
Deu qualquer destino porque as pessoas vivem exigindo coisas.
·
Mentiu
ao pedir café no bar.
Na realidade não queria café, apenas observar o gesto maquinal do
funcionário.
·
Mentia
ao sair pela rua, mas ir para o escritório seria uma mentira maior.
Odiava o escritório, o emprego, os colegas.
·
Andou
até a hora de voltar para casa, mas não queria voltar para casa.
Via sua vida encerrada entre quatro paredes.
b) As justificativas apresentadas pelo homem sugerem seu descontentamento com certos aspectos de sua vida. Copie-os no caderno.
·
Trabalho.
·
Organização da cidade.
·
Relação com as demais pessoas.
·
A vida familiar.
·
Aparência física.
· Falta de tempo para o lazer.
c) Identificar o conflito do texto é importante para chegar ao tema. As informações acima (letra b) sugerem qual é o conflito vivido pela personagem principal. Aponte-o.
O homem está cansado de seu cotidiano cheio de regras, de pessoas, de imposições e de atividades que não foram escolhidas por ele.
d) Indique no caderno qual destes trechos melhor justifica a sua resposta ao item anterior:
·
“Naquela manhã, acordou disposto a só contar
mentiras.”
· “E as exigências crescem e se tornam parte de nossa vida diária. Nos acostumamos com elas, nos acomodamos, sem perceber que cada concessão é um pedaço da gente mesmo, envenenado, que a gente engole.”
· “[...] porque nesse dia tinha decidido mentir. E, quando se decide uma coisa, o melhor é levá-la até o fim.”
·
“Quando o dia chegou, tinha acabado o período
da mentira, podia enfrentar de novo a verdade.”
e)
Após destacar o conflito, é possível
identificar o tema. Nesse conto, basta atribuir um nome à sensação vivida pelo
homem. Indique no caderno quais dos temas a seguir poderiam dar nome a essa
sensação:
·
Desilusão amorosa.
·
Fracasso no emprego.
·
Desejo de tranquilidade.
·
Insatisfação com as imposições do
cotidiano.
·
Abandono das relações de
hipocrisia.
16 – Releia um trecho da
reflexão feita pela personagem principal no sexto parágrafo, depois responda no
caderno:
“Andou. Pensando como a cidade era
bonita com seus prédios batidos de Sol e os vidros dando mil reflexos. Bonita
com a gente que andava apressada para trabalhar e construir alguma coisa.
Bonita na tranquilidade da vida, no sossego das casas, na calma que se
estampava nos rostos das gentes. Bonita no que oferecia de futuro e de
perspectivas. Bonita nos carros que andavam em fila, ruidosamente, um atrás do
outro, sempre para frente, sempre para frente. Bonita na fumaça negra que
escapava dos veículos e subia em espirais, milhares de fumaças reunidas,
formando uma bela nuvem negra, como um negro véu, que surgia sobre a terra,
espanando o Céu.”
a)
Todas essas características da cidade podem
ser consideradas realmente belas?
Não.
b)
A ironia é a figura de linguagem que consiste
em afirmar o contrário do que se quer dizer. Considerando essa informação,
explique por que esse parágrafo pode ser considerado irônico.
O julgamento que a personagem fazia da cidade pode ser considerado
irônico por não retratar somente aspectos que realmente pudessem ser
considerados bonitos.
c)
A ironia desse parágrafo poderia se
relacionar com o fato de o homem ter decidido contar apenas mentiras? Explique
sua resposta.
Sim. Até o julgamento da cidade refletiria uma mentira contada pelo
homem.
17 – Releia a última parte
do conto:
“Quando
o dia chegou, tinha acabado o período da mentira, podia enfrentar de novo a
verdade. E disse bom-dia ao porteiro, deu o endereço ao táxi, ligou para a
mulher e o patrão. Disse no emprego que estava doente. E, na verdade, estava.”
a)
Detenha-se no significado do verbo enfrentar. Em que contextos empregamos
essa palavra?
Por exemplo, em contextos relacionados a desafio, a dificuldade.
b)
Observe que outros verbos poderiam ter sido
empregados na oração “podia enfrentar
de novo a verdade”:
·
Podia viver
de novo a verdade.
·
Podia participar
de novo da verdade.
·
Podia retomar
a verdade.
·
Podia reconciliar-se
com a verdade.
Na
sua opinião, por que foi usado o verbo enfrentar,
e não outro mais suave?
A verdade a que a personagem estava acostumada não era fácil para
ela, ao menos não era a verdade que ela queria. Daí o emprego do verbo enfrentar em lugar de outro de sentido
mais suave.
c)
A verdade na vida do homem era representada
pelo seu cotidiano ou pelo dia em que resolveu contar apenas mentiras?
Justifique sua resposta.
A verdade foi representada pelo dia em que resolveu contar apenas
mentiras; esse foi o único momento em que ele viveu de acordo com o que
realmente sentia, e não de acordo com as convenções sociais.
d)
“Disse no emprego que estava doente. E, na
verdade, estava.” Na sua opinião, qual era a doença do homem que resolveu
contar apenas mentiras?
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Pelo desânimo da personagem
diante da realidade vivida, ao desejo de ser ele mesmo numa sociedade cheia de
regras e de regularidades.
18 – Observe que a palavra homem aparece apenas duas vezes no texto: uma no título, outra no começo do quarto parágrafo. Nos demais períodos, o sujeito está oculto. Além disso, a personagem não tem nome próprio. Assim, responda no caderno:
a) Essa maneira de apresentar a personagem a especifica (isto é, torna suas características particulares, únicas, exclusivas) ou a universaliza (ou seja, torna suas sensações e comportamentos semelhantes aos da maioria das pessoas)?
Essa maneira de apresentar a personagem a universaliza.
b) Assinale a alternativa que melhor justifica a resposta ao item a, ao mesmo tempo que sintetiza uma conclusão que pode ser tirada do conto:
·
As pessoas que desejam abandonar família,
emprego e obrigações em geral querem viver a vida simplesmente, sem se
preocupar com mais nada.
·
O descontentamento com o cotidiano
é vivido por todos. Em algum momento da vida, todo ser humano necessita
expressar mais livremente sua verdadeira natureza, fugindo das convenções
sociais que o limitam.
·
O desejo de mentir está em todos os seres
humanos. Isso aparece como uma forma de recriar a realidade para suportá-la.
·
As pessoas devem se acostumar a fazer o que
não querem, afinal, essa é uma imposição da realidade vivida por todos.
Muito bacana as reflexões que você traz sobre o texto, a partir dos exercícios propostos!
ResponderExcluirGostei muito do seu trabalho, parabéns!
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