Conto: A Repartição dos Pães
Clarice LispectorEra sábado e estávamos
convidados para o almoço de obrigação. Mas cada um de nós gostava demais de
sábado para gastá-lo com quem não queríamos. Cada um fora alguma vez feliz e
ficara com a marca do desejo. Eu, eu queria tudo. E nós ali presos, como se
nosso trem tivesse descarrilado e fôssemos obrigados a pousar entre estranhos.
Ninguém ali me queria, eu não queria a ninguém. Quanto a meu sábado – que fora
da janela se balançava em acácias e sombras – eu preferia, a gastá-lo mal,
fechá-la na mão dura, onde eu o amarfanhava como a um lenço. À espera do
almoço, bebíamos sem prazer, à saúde do ressentimento: amanhã já seria domingo.
Não é com você que eu quero, dizia nosso olhar sem umidade, e soprávamos
devagar a fumaça do cigarro seco. A avareza de não repartir o sábado, ia pouco
a pouco roendo e avançando como ferrugem, até que qualquer alegria seria um
insulto à alegria maior.
Só a dona da casa não
parecia economizar o sábado para usá-lo numa quinta de noite. Ela, no entanto,
cujo coração já conhecera outros sábados. Como pudera esquecer que se quer mais
e mais? Não se impacientava sequer com o grupo heterogêneo, sonhador e
resignado que na sua casa só esperava como pela hora do primeiro trem partir,
qualquer trem – menos ficar naquela estação vazia, menos ter que refrear o
cavalo que correria de coração batendo para outros, outros cavalos.
Passamos afinal à sala para
um almoço que não tinha a bênção da fome. E foi quando surpreendidos deparamos
com a mesa. Não podia ser para nós…
Era uma mesa para homens de
boa-vontade. Quem seria o conviva realmente esperado e que não viera? Mas
éramos nós mesmos. Então aquela mulher dava o melhor não importava a quem? E
lavava contente os pés do primeiro estrangeiro. Constrangidos, olhávamos.
A mesa fora coberta por uma
solene abundância. Sobre a toalha branca amontoavam-se espigas de trigo. E
maçãs vermelhas, enormes cenouras amarelas, redondos tomates de pele quase
estalando, chuchus de um verde líquido, abacaxis malignos na sua selvageria,
laranjas alaranjadas e calmas, maxixes eriçados como porcos-espinhos, pepinos
que se fechavam duros sobre a própria carne aquosa, pimentões ocos e
avermelhados que ardiam nos olhos – tudo emaranhado em barbas e barbas úmidas
de milho, ruivas como junto de uma boca. E os bagos de uva. As mais roxas das
uvas pretas e que mal podiam esperar pelo instante de serem esmagadas. E não
lhes importava esmagadas por quem. Os tomates eram redondos para ninguém: para
o ar, para o redondo ar. Sábado era de quem viesse. E a laranja adoçaria a
língua de quem primeiro chegasse.
Junto do prato de cada
mal-convidado, a mulher que lavava pés de estranhos pusera – mesmo sem nos
eleger, mesmo sem nos amar – um ramo de trigo ou um cacho de rabanetes ardentes
ou uma talhada vermelha de melancia com seus alegres caroços. Tudo cortado pela
acidez espanhola que se adivinhava nos limões verdes. Nas bilhas estava o
leite, como se tivesse atravessado com as cabras o deserto dos penhascos.
Vinho, quase negro de tão pisado, estremecia em vasilhas de barro. Tudo diante
de nós. Tudo limpo do retorcido desejo humano. ‘Tudo como é, não como
quiséramos. Só existindo, e todo. Assim como existe um campo. Assim como as
montanhas. Assim como homens e mulheres, e não nós, os ávidos. Assim como um
sábado. Assim como apenas existe. Existe.
Em nome de nada, era hora de
comer. Em nome de ninguém, era bom. Sem nenhum sonho. E nós pouco a pouco a par
do dia, pouco a pouco anonimizados, crescendo, maiores, à altura da vida
possível. Então, como fidalgos camponeses, aceitamos a mesa.
Não havia holocausto: aquilo
tudo queria tanto ser comido quanto nós queríamos comê-lo. Nada guardando para
o dia seguinte, ali mesmo ofereci o que eu sentia àquilo que me fazia sentir.
Era um viver que eu não pagara de antemão com o sofrimento da espera, fome que
nasce quando a boca já está perto da comida. Porque agora estávamos com fome,
fome inteira que abrigava o todo e as migalhas. Quem bebia vinho, com os olhos
tornava conta do leite. Quem lento bebeu o leite, sentiu o vinho que o outro
bebia. Lá fora Deus nas acácias. Que existiam. Comíamos. Como quem dá água ao
cavalo. A carne trinchada foi distribuída. A cordialidade era rude e rural.
Ninguém falou mal de ninguém porque ninguém falou bem de ninguém. Era reunião
de colheita, e fez-se trégua. Comíamos. Como uma horda de seres vivos,
cobríamos gradualmente a terra. Ocupados como quem lavra a existência, e
planta, e colhe, e mata, e vive, e morre, e come. Comi com a honestidade de
quem não engana o que come: comi aquela comida e não o seu nome. Nunca Deus foi
tão tomado pelo que Ele é. A comida dizia rude, feliz, austera: come, come e
reparte. Aquilo tudo me pertencia, aquela era a mesa de meu pai. Comi sem
ternura, comi sem a paixão da piedade. E sem me oferecer à esperança. Comi sem
saudade nenhuma. E eu bem valia aquela comida. Porque nem sempre posso ser a
guarda de meu irmão, e não posso mais ser a minha guarda, ah não me quero mais.
E não quero formar a vida porque a existência já existe. Existe como um chão
onde nós todos avançamos. Sem uma palavra de amor. Sem uma palavra. Mas teu
prazer entende o meu. Nós somos fortes e nós comemos.
Pão é amor entre estranhos.
ENTENDENDO
O CONTO
1) Qual é a tipologia predominante no conto:
a) Narrativa.
b) Argumentativa.
c) Descritiva.
Um almoço por obrigação.
3) Quais personagens fazem parte dessa narrativa?
Os convidados e a dona da casa.
4) Qual o cenário em que se desenrola a história?
Era um sábado e as pessoas convidados para o almoço estavam ali por
obrigação.
5) Descreva o que “era uma mesa para os homens de boa-vontade”.
A mesa fora coberta por uma solene abundância. Sobre a toalha branca
amontoavam-se espigas de trigo. E maçãs vermelhas, enormes cenouras amarelas,
redondos tomates de pele quase estalando, chuchus de um verde líquido, abacaxis
malignos na sua selvageria, laranjas alaranjadas e calmas, maxixes eriçados
como porcos-espinhos, pepinos que se fechavam duros sobre a própria carne
aquosa, pimentões ocos e avermelhados que ardiam nos olhos – tudo emaranhado em
barbas e barbas úmidas de milho, ruivas como junto de uma boca. E os bagos de
uva. As mais roxas das uvas pretas e que mal podiam esperar pelo instante de
serem esmagadas. E não lhes importava esmagadas por quem. Os tomates eram
redondos para ninguém: para o ar, para o redondo ar. Sábado era de quem viesse.
E a laranja adoçaria a língua de quem primeiro chegasse.
6) Em que passagem do texto ocorre o clímax, ou seja, o momento que surpreende a todos?
Quando os convidados passam para a sala do almoço e se deparam com
uma mesa coberta por uma solene abundância.
7) No conto o narrador participa da história ou simplesmente conta a história estando fora dela? Qual o nome dado a esse tipo de narrador?
Sim, o narrador participa da história.
Narrador-personagem.
8) Do ponto de vista da norma culta, a única substituição/mudança que poderia ser feita, sem alteração de valor semântico e linguístico, seria:
a) “ali
mesmo ofereci o que eu sentia àquilo que me fazia sentir” = ali mesmo ofereci o
que eu sentia àquilo que fazia-me sentir.
b) “Tudo
cortado pela acidez espanhola que se adivinhava nos limões verdes” = Tudo
cortado pela acidez espanhola que adivinhava-se nos limões verdes.
c) “Mas cada um de nós gostava demais de sábado para gastá-lo com quem
não queríamos”. = Mas cada um de nós gostava demais de sábado para o gastar com
quem não queríamos.
d) “Só
a dona da casa não parecida economizar o sábado para usá-lo numa quinta de
noite”. = Só a dona da casa não parecia economizar o sábado para usá-lo numa
quinta de noite”.
e) “Quanto a meu sábado – que fora da janela se balançava em acácias e sombras – eu preferia, a gastá-lo mal”. = Quanto a meu sábado – que fora da janela se balançava em acácias e sombras – eu preferia, do que gastá-lo mal.
9) No início o narrador relata de uma forma como se não conhecesse a mulher que "lava o pé de qualquer estrangeiro", porém ao final do conto relata qual o grau de parentesco com ela. Qual era?
Ela era sua mãe.
10) E em uma simples frase o narrador deixa isso bem claro: "A cordialidade era rude e rural". As analogias são feitas à quê?
À Santa Ceia como: o dia de sábado como hospitaleiro e dos homens.
Obrigado essa matéria me ajudou a corrigir o meu trabalho
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