sábado, 7 de novembro de 2020

CRÔNICA: O SOBREVIVENTE - DRÁUZIO VARELLA - COM GABARITO

 Crônica: O sobrevivente

            Dráuzio Varella

        Com uma caixa de engraxate pintada de amarelo pendurada no ombro, o rapaz cruzou a rua em minha direção:

        ─ Não sei se o senhor lembra de mim, mas quando estive lá me chamavam de Neguinho de Guaianases, para diferenciar do finado Negão de Pirituba que era alto e forte.

         Para ser sincero, não lembrava dele nem do finado, mas se dizia que estivera lá, pelo menos ficava claro de onde nos conhecíamos. Todo ex-presidiário que encontro pela rua se refere à extinta Casa de Detenção dessa forma, como se trouxesse mau agouro pronunciar o nome do presídio.

         ─ Quanto tempo você cumpriu lá?

        ─ Seis anos.

        ─ Não voltou mais para a cadeia?

       ─ Deus me livre, agora sou trabalhador.

      ─ E dá para viver engraxando sapato?

      Explicou que, saindo de casa às sete da manhã e voltando às nove da noite, conseguia tirar R$ 40 a R$ 50 por dia, quantia suficiente para pagar os R$ 150 do aluguel de um cômodo no Bexiga e as demais despesas fixas.

       E ainda sobrava para visitar os irmãos em Itaquaquecetuba aos domingos, para um baile em Pinheiros de vez em quando e para pagar o hotelzinho na saída, nas noites em que os céus ouviam suas preces.

       Com a caixa amarela nas costas, percorria dez a quinze quilômetros por dia no encalço da clientela:

      ─ Procuro passar em lugar que tem homem parado: ponto de táxi, porta de bar, restaurante com fila de espera, praça com aglomeração de aposentado. Cobro de acordo com a aparência do cidadão: R$ 2 se aparentar ser trabalhador; R$ 5 se tiver cara de rico.

       Neguinho foi aluno comportado até os treze anos, quando o primo que mais admirava o convidou para distribuir panfleto no Largo da Concórdia. Nessa fase, pegou o gosto por dinheiro, por roupas da hora e conheceu a maconha. Para desgosto do pai, pedreiro em Guaianases, parou de estudar.

       Um dia, o primo decidiu mudar de ramo:

       ─ Disse que não se conformava com aquela mixaria; tinha nascido para uma vida melhor. Levantou a camisa e exibiu o revólver no cinto. "Vem comigo, é apontar a arma e pegar o dinheiro."

       Neguinho não tinha coragem; dois de seus amigos de infância haviam acabado de morrer num tiroteio na Vila. Mas, o mais velho insistiu:

       ─ Eu enquadro as vítimas e você recolhe o dinheiro e os objetos de valor. É só ficar de cabisbaixo para ninguém te reconhecer mais tarde. Não requer prática nem tampouco habilidade.

       Na primeira vez, quando assaltaram uma loja do bairro, tudo se passou como o primo previra. Na partilha, coube R$ 300 para cada um:

       ─ Nunca tinha visto tanto dinheiro junto. Deu gosto no bolso. Comprei blusa para minha mãe, camiseta para o pai, dei dinheiro para os irmãos e saí com o primo para gastar na cidade.

        Aos 17 anos foi parar na Febem. Saiu com 18, mais esperto e com novas amizades.

       Juntou-se ao inseparável primo e formaram uma quadrilha.

       Meses mais tarde, o primo foi morto por justiceiros a serviço dos comerciantes da Vila.

       Uma noite, Neguinho e dois comparsas assaltaram um posto de gasolina e fugiram num carro roubado. Cinco minutos mais tarde foram cercados por duas viaturas de polícia. Os policiais gritaram para que jogassem as armas e saíssem com as mãos na cabeça. Pensaram em reagir, mas prevaleceu o bom senso do finado Alemão:

        ─ Era o mais experiente de nós. Disse que se a gente atirasse morria no ato: era três contra oito.

        Preso em flagrante, foi levado para a detenção. Acabou condenado a seis anos e três meses por dois assaltos a mão armada; nada mal para quem havia praticado mais de trinta.

       Na cadeia, adotou uma atitude humilde, estratégia à qual atribui a sobrevivência:

       ─ Dos que tinham fama de bandidão, sangue nos olhos, só um escapou vivo.

       Quando Neguinho foi libertado, construiu a caixa de engraxate, pintou-a de sua cor favorita e jurou nunca mais pôr os pés num lugar daqueles.

       Quando perguntei se era mais feliz engraxando sapato, respondeu com um sorriso:

       ─ Nem compara, doutor. Sabe o que é viver com medo? Qualquer carro que passa, imaginar que os justiceiros chegaram? O senhor entrar numa padaria, pedir uma média com pão e manteiga e não ter o direito de sentar de costas para a porta?

São Paulo, sábado, 07 de julho de 2007      Folha de S.Paulo Ilustrada

Entendendo a crônica

  01.      Há várias formas de se fazer uma comparação. No trecho, me chamavam de Neguinho de Guaianases, para diferenciar do finado Negão de Pirituba que era alto e forte, pode-se dizer que há dois grupos de ideias que promovem o sentido de comparação – um relacionado à descrição de personagens e outro relacionado ao estado de personagens.

 Assinale a alternativa que apresenta uma comparação que ilustra o estado de personagens:

    a) a explicitação da palavra ‘diferenciar’.

    b) a presença de uma voz que se manifesta e a adjetivação finado.

    c) o jogo diminutivo/aumentativo Neguinho/Negão.

    d) a distinção entre os espaços Guaianases e Pirituba.

 

 02.               Textos são composições que se apresentam coesivamente, ou seja, ideias, frases, parágrafos, se articulam por meio de elementos concretos, visíveis, de forma a dar sequência e ligação entre as ideias.

Quanto ao trecho em destaque a seguir, estão corretas as indicações de elementos coesivos, EXCETO:

          Com uma caixa de engraxate pintada de amarelo pendurada no ombro, o rapaz cruzou a rua em minha direção:

          ─ Não sei se o senhor lembra de mim, mas quando estive lá me chamavam de Neguinho de Guaianases, para diferenciar do finado Negão de Pirituba que era alto e forte.

          Para ser sincero, não lembrava dele nem do finado, mas se dizia que estivera lá, pelo menos ficava claro de onde nos conhecíamos. Todo ex-presidiário que encontro pela rua se refere à extinta Casa de Detenção dessa forma, como se trouxesse mau agouro pronunciar o nome do presídio.

     a) em minha direção / o senhor.

     b) o rapaz / dele.

     c) lá / Casa de Detenção.

     d) Finado / Negão de Pirituba

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