Crônica: Noite de vento, noite dos mortos
Érico Veríssimo No inverno do último ano como interno
no Colégio Cruzeiro do Sul ocupava sozinho o quarto número 50, um cubículo
estreito onde mal cabiam uma cama, um lavatório de ferro com jarro e bacia, e o
baú onde eu guardava as minhas roupas. Nessa época comecei a sofrer de insônias.
Talvez insônia não seja a palavra exata para definir o que eu sentia, pois na
realidade sono mesmo não me faltava. O que acontecia era que eu acordava
sobressaltado cerca das dez horas da noite e começava a sentir aos poucos no
quarto escuro e fechado uma angústia de emparedado. Precisava desesperadamente
de acender uma luz – o que não era possível, pois o dormitório era iluminado
por lâmpadas alinhadas no centro do teto e que se apagavam irremediavelmente a
uma hora certa. Minhas pálpebras em geral pesavam de sono, mas aquela opressão
no peito, aquela ansiedade me mantinham acordado. Era uma espécie de falta de
ar, de necessidade de companhia humana ou pelo menos de uma janela aberta para
a noite, para o mundo, para a vida. E o pior era que essa angústia podia
transformar-se em pânico dum momento para outro. Eu tinha a impressão de estar
num túnel sem ar, ou sepultado numa carneira, fechado num féretro...
Consultei um médico de ar bondoso e
bovino que costumava tratar dos internos do Cruzeiro do Sul. Fez-me perguntas.
Sofria eu de falta de memórias? Era distraído? Algum problema me preocupava? Eu
respondia numa atitude meio defensiva de quem tem segredos a guardar. Por fim o
bom homem me receitou Fosfato Ácido de Oxford. Tomei um vidro sem nenhum
resultado positivo.
Observava que minha ansiedade aumentava
ou então era desencadeada nas noites em que eu ouvia o vento uivar lá fora.
Sim, a voz do vento era um fator de ansiedade. Eu tratava de chamar-se à razão.
Tudo estava bem. Em breve apareceria o sol e a vida normal começaria. Inútil.
Aquela coisa que me comprimia o peito e me dava gana de sair correndo a abrir
janelas e portas, a acender luzes e a procurar a companhia dos colegas,
continuava. Só madrugada alta – e eu não sabia como – é que conseguia dormir
algumas horas. (Num romance que eu haveria de escrever dali a quase 30 anos,
uma personagem diria: “Noite de vento, noite dos mortos”.)
Solo de clarineta.
Globo, 1974.
Fonte: Português – Linguagem &
Participação, 8ª Série – MESQUITA, Roberto Melo / Martos, Cloder Rivas – 2ª
edição – 1999 – Ed. Saraiva, p. 25-6.
Fonte da imagem:https://www.google.com/url?sa=i&url=http%3A%2F%2Fwww.luizcarlosbill.com.br%2Fblog%2Fcronica%2Fo-frio-e-o-vento-da-noite%2F&psig=AOvVaw2RfOYPXKXmFP6wEI5rjPE-&ust=1606600646902000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCPCk6vjbo-0CFQAAAAAdAAAAABAD
Entendendo a crônica:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Carneira: gaveta em que, num cemitério, se enterram cadáveres.
·
Féretro:
caixão de defunto.
02 – Qual é a importância do
lugar sobre o fato relatado no texto?
É o lugar que produz a angústia que
oprime o narrador.
03 – Como se sentia o
narrador no quarto número 50?
Sentia-se preso,
emparedado, não conseguia dormir direito, embora tivesse sono.
04 – Identifique no texto um
fato que mostra que o autor vivia sob um regime autoritário.
“... o dormitório
era iluminado por lâmpadas alinhadas no centro do teto e que se apagavam
irremediavelmente a uma hora certa.”
05 – Em que pessoa é narrado
o texto? E de que se trata?
O texto é narrado
em primeira pessoa. Trata-se de uma recordação da infância em um colégio
interno.
06 – O que você acha que o
autor pretendeu expressar com a frase “Noite de vento, noite dos mortos”?
Resposta pessoal do aluno.
07 – De acordo com o texto,
pra você o que é possível perceber nas escolas de antigamente?
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Percebe-se
que a escola internato antiga era bem mais autoritária.
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