Conto: João, Francisco, Antônio
Cecília Meireles João, Francisco, Antônio põem-se a
contar-me a sua vida. Moram tão longe, no subúrbio, precisam sair tão cedo de
casa para chegar pontualmente a seu serviço. Já viveram aglomerados num quarto,
com mulher, filhos, a boa sogra que os ajuda, o cão amigo à porta... A noite
deixa cair sobre eles o sono tranquilo dos justos. O sono tranquilo que nunca
se sabe se algum louco vem destruir, porque o noticiário dos jornais está
repleto de acontecimentos inexplicáveis e amargos.
João, Francisco, Antônio vieram a este
mundo, meu Deus, entre mil dificuldades. Mas cresceram, com os pés descalços
pelas ruas, como os imagino, e os prováveis suspensórios – talvez de barbante –
escorregando-lhes pelos ombros. É triste, eu sei, a pobreza, mas tenho visto
riquezas muito mais tristes para os meus olhos, com vidas frias, sem nenhuma
participação do que existe, no mundo, de humano e de circunstante.
João, Francisco, Antônio conhecem os
passarinhos, pena por pena, são capazes de descrevê-los: acompanharam os seus hábitos,
sabem as árvores onde moram, distinguem, no sussurro geral, a voz de cada um.
João, Francisco, Antônio conhecem as
pedras, as suas arestas, a sua temperatura, que faíscas desprendem de noite.
Conhecem as fisionomias das casas e, evidentemente, os seus habitantes, os
letreiros das lojas, os diversos comerciantes e os seus negócios. Tudo isso é
uma forma de instrução que vem da infância, que ocupou os dias sem
possibilidades especiais de aquisições sistematizadas. Aprenderam nomes de ruas
e veículos, observando, alguns deles, com particular curiosidade, quando a
vocação é para engenhos, máquinas, motores. Mas outros, por natureza menos
práticos, mais poéticos, decerto, construíram papagaios, combinando cores de
papel de seda, inventando formas geométricas, recortando bandeirinhas,
levantando nos ares as suas transparentes construções, querendo alcançar o céu
– que talvez julgassem alcançável – ou apenas as nuvens, para sentir, na ponta
de uma linha, como se encastelam e como se desfazem.
Não falo de outros, que matam passarinhos com
atiradeiras, que quebram vidraças, que maltratam os outros meninos da sua
idade, que lhes rasgam as roupas... Não, não, quero falar de João, Francisco,
Antônio, os que, desde pequenos, vêm sendo construtivos, que procuram
realizar-se, entre as maiores dificuldades, ajudando os pais, amparando os
irmãozinhos, realizando suas breves alegrias entre mil sombras.
João, Francisco, Antônio conseguem, a
tanto custo, aprender alguma coisa do que é preciso para encontrar o caminho do
seu trabalho e, se possível, da sua vocação. Mal saídos da adolescência –
quando outros da mesma idade, em outras condições, folgam, e acham ou que é
cedo para começar ou que já são infelizes porque ouviram falar de assuntos do
mundo adulto –, eles vão para algum trabalho de madrugada, sentem-se uma parte
da família a que pertencem e querem ajudar-se e ajuda-la.
João, Francisco, Antônio amam, casam,
acham que a vida é assim mesmo, que se vai melhorando aos poucos. Desejam ser pontuais,
corretos, exatos no seu serviço. É dura a vida, mas aceitam-na. Desde pequenos,
sozinhos sentiram sua condição humana e, acima dela, uma outra condição a que
cada qual se dedica, por ver depois da vida a morte e sentir a responsabilidade
de viver.
João, Francisco, Antônio conversam
comigo, vestidos de macacão azul, com perneiras, lavando vidraças, passando
feltros no assoalho, consertando fechos de portas. Não lhes sinto amargura.
Relatam-se, descrevem as modestas construções que eles mesmos levantaram com
suas mãos, graças a pequenas economias, a algum favor, a algum benefício. E não
sabem com que amor os estou escutando, como penso que este Brasil imenso não é
feito só do que acontece em grandes proporções, mas destas pequenas, ininterruptas,
perseverantes atividades que se desenvolvem na obscuridade e de que as outras,
sem as enunciar, dependem.
Por isso, as enuncio, porque sei que,
na sombra, se desenvolve este trabalho humilde de Antônio, Francisco, João.
Cecília Meireles. Janela
mágica. São Paulo: Moderna, 1983. P. 14-15.
Fonte: Português – Linguagem &
Participação, 8ª Série – MESQUITA, Roberto Melo / Martos, Cloder Rivas – 2ª
edição – 1999 – Ed. Saraiva, p.33 – 34 e 36.
Fonte da imagem:https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fwww.youtube.com%2Fwatch%3Fv%3Dqge1pC7g7J0&psig=AOvVaw3_Qe9wAzfB_JI6QNIrj2Ts&ust=1606602302748000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCNi3kpDio-0CFQAAAAAdAAAAABAD
Entendendo o conto:
01 – De acordo com o texto, qual
o significado das palavra abaixo:
·
Pontualmente: na hora certa.
·
Vocação: tendência para o exercício de determinada atividade.
·
Aglomerados: amontoados.
·
Circunstante: que está à volta; presente.
·
Encastelar: afastar-se subindo; acumular, amontoar.
·
Distinguir: perceber a diferença.
·
Ininterruptas: incessantes.
·
Arestas: ângulos, saliências.
·
Perseverantes: persistentes.
·
Faíscas: pequenas chamas provocadas pelo atrito.
·
Obscuridade: ausência de notoriedade, de fama; condição humilde.
·
Aquisições: conquistas.
·
Sistematizadas: organizadas segundo um método.
·
Enunciar: dizer.
02 – Que tipo de narração
aparece no texto?
Aparece narração
em primeira pessoa (o texto é constituído a partir de uma suposta conversa
entre narrador/personagem).
03 – Qual é a relação entre
o nome e o comportamento das personagens?
São nomes de
pessoas simples e também de santos da religião católica. Como são nomes muito
comuns, podemos inferir que o que se diz deles vale para muitas outras pessoas
que vivem e trabalham como eles.
04 – O que João, Francisco e
Antônio apresentam em comum?
São pobres, não
puderam estudar, mas são honestos e trabalhadores.
05 – Onde João, Francisco e
Antônio se encontraram com a narradora?
O encontro se deu em um prédio onde as
personagens estão trabalhando.
06 – Durante todo o texto a
narradora enuncia vários sentimentos a respeito dos três rapazes. Quais são
eles?
A narradora sente respeito, admiração e
um amor humanitário pelos três.
07 – Como você entendeu:
“Não falo outros, que matam passarinhos com atiradeiras, que quebram vidraças,
que maltratam os outros meninos da sua idade, que lhes rasgam as roupas...”?
A narradora sabe
que há outros rapazes que não se comportam tão bem como as personagens mas
estes não serão mencionados.
08 – Como vivem no presente
João, Francisco e Antônio?
Vivem no
subúrbio, em casas que eles mesmos construíram. Lutam para melhorar de vida.
09 – Como João, Francisco e
Antônio enfrentam as dificuldades da vida? Justifique com palavras do texto.
Com aceitação,
perseverança e coragem. “... desde pequenos, vêm sendo construtivos, que
procuram realizar-se, entre as maiores dificuldades, ajudando os pais,
amparando os irmãozinhos, realizando suas breves alegrias entre mil sombras.”
10 – Por que a narradora
escolheu os três como personagens?
Porque eles são
importantes, embora desenvolvam suas atividades no anonimato, pois muitas
pessoas dependem de seu trabalho.
11 – Para você, em geral
como são tratados os humildes em nosso pais?
Resposta pessoal do aluno.
12 – O texto mescla partes
narrativas e dissertativas.
a)
Localize um trecho inteiramente narrativo.
Está no terceiro parágrafo.
b)
Localize um trecho em que o narrador
interrompe a história das personagens para expressar sua opinião.
“...E não sabem com que amor os estou escutando, como penso que este
Brasil imenso não é feito só do que acontece em grandes proporções, mas destas
pequenas, ininterruptas, perseverantes atividades que se desenvolvem na
obscuridade...”.
c)
Com que objetivo a autora se valeu dessa
mescla de elementos narrativos e dissertativos?
Ela se utiliza da história de três personagens para ilustrar uma
ideia: que um pais é o resultado do trabalho de pessoas humildes e anônimas
que, sem alarde, vão colaborando para o bem comum.
Me deu estresse essa questão pprt
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