Crônica: No país do futebol
Carlos Eduardo Novaes
Juvenal Ouriço aproximou-se de um
vendedor parado à porta de uma loja de eletrodomésticos e perguntou:
– Qual desses oito televisores os
senhores vão ligar na hora do jogo?
– Qualquer um – disse o vendedor
desinteressado.
– Qualquer um não. Eu cheguei com duas
horas de antecedência e mereço uma certa consideração.
– Para que o senhor quer saber?
– Para já ir tomando posição diante
dele.
O vendedor apontou para um aparelho.
Juvenal observou os ângulos, pegou a almofada que o acompanhava ao Maracanã e
sentou-se no meio da calçada.
– Ei, psiu – chamou-o um mendigo
recostado na parede da loja – como é que é, meu irmão?
– Quer me botar na miséria? Esse ponto
aqui é meu.
– Eu não vou pedir esmola.
– Então senta aqui ao meu lado.
– Aí não vai dar para eu ver o jogo.
– Na hora do jogo nós vamos lá pra
casa.
– Você tem TV em cores?
– Claro. Você acha que eu fico me
matando aqui pra quê?
Juvenal agradeceu. Disse que preferia
ficar na loja, onde tinha marcado encontro com uns amigos que não via desde a
final da Copa de 78. O mendigo entendeu. E como gostou de Juvenal, lhe deu o
chapéu onde recolhia esmolas. Juvenal, distraído, enfiou-o na cabeça.
-- Não, não. Na cabeça não.
-- Por que não?
-- Já viu mendigo usar chapéu na
cabeça? deixe-o aí no chão. Sempre pinga qualquer coisa.
Aos poucos o público foi aumentando,
operários, vendedores, contínuos, vagabundos, e às 15h e 45min já não havia
mais lugar diante das lojas de eletrodomésticos, os retardatários corriam de
uma para a outra à procura de uma brecha. Alguns ficavam pulando atrás da
multidão tentando enxergar a tela do aparelho.
-- Quer que eu lhe ajude? – perguntou um
cidadão já meio irritado com um contínuo pulando rente às suas costas.
-- Quero.
-- Então me diz onde é o seu controle
da vertical.
-- Controle da vertical, por quê?
-- Pra ver se você para de pular aqui
nas minhas costas.
As lojas concentravam multidões. As
calçadas da cidade, que já são poucas, desapareciam completamente. Em jogos da
Seleção Brasileira, durante a semana, cresce bastante o número de
atropelamentos porque o pedestre é obrigado a circular pelas ruas. Além disso,
os motoristas ficam muito mais ligados no rádio do que no trânsito.
Na porta da loja onde estava Juvenal
havia umas 200 pessoas do lado de fora e somente uma do lado de dentro: o
gerente. Até os vendedores da loja já tinham se bandeado afirmando que assistir
a um jogo atrás da televisão não é a mesma coisa que vê-lo atrás do gol. Quando
a bola saía entravam os comentários dos torcedores.
No
início do segundo tempo, um cidadão que não se interessava por futebol (um dos
18 que a cidade abriga) foi pedindo licença à galera e com muita dificuldade
conseguiu entrar na loja. O gerente foi ao seu encontro: “O senhor deseja
algo?”
– Um aparelho de televisão.
– Por que o senhor não leva aquele?
– Qual?
– Aquele que está ligado ali na porta.
– É bom?
– O senhor ainda pergunta? Acha que
haveria 200 pessoas diante dele se não tivesse uma boa imagem?
–
Bem…
– E não é só isso – completou o gerente
aproveitando a euforia do público com um gol do Brasil – que outro aparelho
transmite emoções tão fortes?
-- Essa gritaria toda foi diante do
aparelho?
-- Lógico. Esse é o novo televisor
AP-007 dotado de controle de emoção. Só este televisor pode leva-lo do choro
convulsivo à completa euforia.
-- É mesmo? E se eu desejar vê-lo
sentado quietinho na poltrona?
-- Também pode, mas é aconselhável
desligar o botão da emoção, se não o senhor não vai conseguir ficar quietinho
na poltrona.
O cidadão convenceu-se. Disse que ia
levá-lo. O gerente, precavido, pediu-lhe para ir à porta da loja apanhá-lo. O
cidadão não teve dúvidas. Ignorando aquela massa toda diante do seu aparelho,
foi lá tranquilamente e cleck. Desligou-o.
O que aconteceu depois eu deixo por
conta da imaginação de vocês.
NOVAES, Carlos Eduardo e
outros. Para gostar de ler. São Paulo: Ática, 1991. p. 67-70.
Entendendo a crônica:
01 – O início da crônica
apresenta uma cena comum: um homem vai a uma loja de eletrodomésticos para
assistir, da calçada, a um jogo de futebol em um dos televisores à venda.
Depois disso, no entanto, já não podemos dizer que o que acontece é tão
frequente assim. Responda: que situações incomuns ou inesperadas ocorrem desde
o início do texto até o momento em que o homem se senta na calçada?
Ele pergunta ao
vendedor qual televisor vão ligar na hora do jogo e ainda cobra atenção
especial. Além disso, senta-se no meio da calçada com uma almofada.
02 – Quando o personagem
Juvenal Ouriço senta-se na calçada, um mendigo puxa conversa com ele. O que
pode ser considerado incomum entre as coisas que o mendigo lhe diz?
O mendigo revela
que tem casa com TV em cores e considera que o que está fazendo é um trabalho
difícil. Além disso, oferece o chapéu a Juvenal, para que ele também peça
esmola.
03 – Situações incomuns ou
inesperadas são utilizadas pelos escritores em diversos gêneros textuais, mas
com objetivos diferentes. Por exemplo, em histórias de terror, o inesperado é
usado para dar sustos e causar medo; em histórias de aventura, um acontecimento
inesperado pode dar mais ação à narrativa e ajudar a prender a atenção de quem
está lendo. No caso dessa crônica, com que finalidade você acha que as
situações inesperadas foram utilizadas?
Elas foram utilizadas para gerar humor.
04 – A crônica “No país do
futebol” foi publicada na década de 1970 em um jornal do Rio de Janeiro. Como
outras crônicas, ela está baseada em acontecimentos reais do dia-a-dia e,
graças a isso, a narrativa nos permite conhecer características da época em que
foi escrita. Levando isso em conta, responda às questões a seguir.
a)
Transcreva do texto trechos que mostrem que
muita gente já gostava de futebol naquela época.
“Aos poucos o público foi aumentando [...] já não havia mais lugar
diante das lojas de eletrodomésticos”; “As lojas concentravam multidões”; “Em
jogos da Seleção [...] os motoristas ficam muito mais ligados no rádio do que
no transito”; “Na porta da loja onde estava Juvenal havia umas 200 pessoas do
lado de fora [...]”; “[...] um cidadão que não se interessava por futebol (um
dos 18 que a cidade abriga)...”.
b)
Quando está falando com o mendigo, Juvenal se
espanta de ele possuir um televisor em cores em sua casa. Levando em conta a
situação dele, por que você acha que ele se espantou?
Provavelmente porque, além de ser inesperado para a época um mendigo
ter televisor, os aparelhos em cores deviam ser muito caros, já que se tratava
de uma novidade no país.
c)
Atualmente, é comum as pessoas se reunirem em
praças públicas para assistir em telões, em clima de festa, aos jogos da Copa
do Mundo. Levando em conta as informações anteriores, por que você acha que
naquela época as pessoas iam assistir ao jogo na rua, diante de uma loja? O
motivo seria o mesmo de hoje?
Provavelmente não. O motivo de as pessoas iam para as ruas para
assistir ao jogo devia ser o de que o televisor era um artigo muito caro e
inacessível para boa parte das pessoas, especialmente o televisor em cores.
d)
Que trecho do texto mostra que a cidade
estava preparada para esse tipo de aglomeração durante os jogos?
O trecho no qual se diz que ocorriam muitos atropelamentos porque os
pedestres eram obrigados a circular pelas ruas, já que muita gente assistindo
aos jogos nas calçadas, diante das lojas.
05 – No final da crônica, um
homem entra na loja para comprar um televisor. Que características do aparelho
são apontadas pelo vendedor e o que ele utiliza para comprovar sua qualidade?
O vendedor fala
de características como a boa imagem e a existência de um “controle de emoção”.
Para comprovar a qualidade disso, utiliza a multidão que está diante do
aparelho vendo o jogo.
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