Crônica: Carolina
Na minha classe havia uma menina de
nome Carolina Kuckelmann. Tinha os olhos escuros, sobrancelhas escuras e
cabelos castanho-escuros, com uma tiara quase caindo sobre a testa. Na nuca e
na covinha entre o lóbulo da orelha e o pescoço ela tinha uma penugem sobre a
pele, que brilhava ao sol e estremecia de leve ao vento.
Quando ria, com uma
esplêndida voz rouca, ela estendia o pescoço e jogava a cabeça para trás, o
rosto resplandecente de prazer, os olhos quase fechados. Eu seria capaz de
ficar admirando aquele rosto para sempre – como aliás o fazia, sempre que
podia, na aula ou durante o recreio. E sempre sorrateiramente, de modo tal que
ninguém notasse, nem mesmo a própria Carolina, pois eu era muito tímido.
[...]
Certo dia – um sábado –, aconteceu um
milagre. No meio do recreio, Carolina correu na minha direção, plantou-se à
minha frente e disse:
-- Ei, você ainda vai sozinho para a
Vila de Baixo?
-- Vou – respondi.
-- Ah, então na segunda eu vou com
você...
[...]
Comecei então os preparativos. No
sábado e no domingo, rodei pelo bosque à procura de uma rota adequada. Pois de
início estava estabelecido que eu não seguiria com Carolina pelo trajeto
normal. Queria que ela conhecesse meus caminhos mais secretos, queria
mostrar-lhe as curiosidades mais recônditas do bosque. O caminho para a Vila de
Cima deveria empalidecer em sua memória diante das maravilhas que ela
presenciaria ao longo das maravilhas que ela presenciaria ao longo do meu, do
nosso caminho para a Vila de Baixo.
Depois de longa ponderação, decidi-me
por uma rota que, pouco além da orla do bosque, desviava-se à direita do
caminho normal e, passando por um barranco, levava a uma touceira de abetos
jovens, e dali, sempre em terreno pantanoso, seguia até uma área de árvores
encorpadas, antes de despencar abruptamente para o lago. Essa rota era marcada
por nada menos do que seis curiosidades que eu queria mostrar a Carolina, acompanhadas
de meus comentários especializados. Tratava-se mais precisamente do seguinte:
a)
A casinha do transformador da rede elétrica,
quase à beira da estrada, da qual provinha um zumbido contínuo e sobre cuja
porta se via uma placa amarela com um relâmpago vermelho e o aviso: “Cuidado
Alta Tensão Perigo de Vida”;
b)
Um grupo de sete arbustos de framboesas, com
frutos maduros;
c)
Um cocho para corças – por então sem feno
algum, mas com uma grande pedra de sal para elas lamberem;
d)
Uma árvore que, dizia-se, um nazista tinha
usado para se enforcar depois da guerra;
e)
Um formigueiro de quase um metro de altura e
um metro e meio de diâmetro; e finalmente, como ponto alto e final do
passeio...
f)
Uma velha e maravilhosa faia, na qual eu
tencionava subir com Carolina, para desfrutarmos, sentados num sólido galho a
dez metros de altura, da incomparável visão do lago, de modo que eu pudesse
inclinar-me sobre ela e soprar-lhe a nuca de leve.
Roubei biscoitos do armário da cozinha
e um copo de iogurte da geladeira, além de duas maçãs e uma garrafa de groselha
da despensa. No domingo à tarde, fui guardar tudo isso – devidamente empacotado
numa caixa de sapatos – na forquilha de uma árvore, para que tivéssemos
provisões. De noite, na cama, repassei as histórias que contaria a Carolina e
que a levariam às risadas – uma história para o caminho, outra para os momentos
em cima da árvore. Acendi outra vez a luz, procurei minha chave de fenda na
gaveta do criado-mudo e guardei na minha mochila escolar, para presentear
Carolina com o meu mais valioso pertence. De volta para a cama, recapitulei as
duas histórias, recapitulei em detalhes os eventos do dia seguinte, recapitulei
várias vezes as etapas do caminho de a
até f, bem como o local e o
momento para a entrega da chave de fenda, recapitulei o conteúdo da caixa de
sapatos, que já estava à nossa espera na forquilha lá no bosque (ah! nunca um
encontro foi tão cuidadosamente preparado!) e por fim abandonei-me ao sono,
acompanhado das suas doces palavras: “na segunda eu vou com você... na segunda
eu vou com você...”.
Na segunda-feira, o tempo estava lindo,
perfeito. O sol brilhando suave, o céu estava aberto e azul como água, os
melros revoavam pelo bosque e os pica-paus faziam alarde golpeando a madeira.
[...]
Apressei-me. Não podia me atrasar de
jeito nenhum. Durante a aula, estive irrepreensível como nunca antes, para que
o professor não encontrasse o menor pretexto para me deixar de castigo. Estive
manso feito um cordeiro, mas também atento, obediente e aplicado – um
aluno-modelo. Não olhei uma vez sequer para Carolina, forcei-me a não fazê-lo –
ainda não! – proibi-me quase supersticiosamente de fazê-lo, como se pudesse
perde-la por um olhar precipitado...
Quando terminaram as aulas, aconteceu
que as meninas tiveram que ficar uma hora a mais, não sei mais por que, talvez
por alguma aula de trabalhos manuais ou por outra razão qualquer. De qualquer
modo, só dispensaram os garotos. Não considerei trágico o incidente – ao
contrário. Pareceu-me uma prova adicional que eu deveria superar – e superaria!
–, dando ao tão ansiado encontro com Carolina a bênção da singularidade: uma
hora inteira esperando um pelo outro!
Fiquei esperando na bifurcação dos
caminhos à Vila de Cima e à Vila de Baixo, a menos de vinte metros do portão.
Nesse lugar projetava-se do chão uma pedra, uma rocha solta, de superfície lisa
como a de um grande rochedo. A pedra tinha uma concavidade bem no meio, em
forma de casco. Diziam que essa concavidade era uma pegada do diabo: ele teria
pisoteado o chão por raiva aos camponeses do local, que há tempos imemoriais
haviam construído ali uma Igreja. Sentei-me na rocha e fiquei matando o tempo,
remexendo os dedos numa poça d’água que se acumulara na cova do diabo. Sentia o
sol aquecendo minhas costas, o céu estava azul-marinho transparente, eu
esperava e esperava e remexia na poça e não pensava em nada e me sentia
indescritivelmente feliz da vida.
Então, enfim, saíram as meninas.
Primeiro uma verdadeira enxurrada e, só então, por último, ela. Fiquei de pé.
Ela correu em minha direção, os cabelos castanhos saltitavam, a tiara dançando
de lá para cá; ela usava um vestido amarelo-limão, eu estendi a mão para ela,
ela parou na minha frente – como no recreio, alguns dias antes –, eu queria segurar
sua mão, puxá-la par mim, melhor mesmo seria abraça-la e dar-lhe um beijo no
meio da testa, ali mesmo; ela disse:
-- Ei, você estava me esperando?
-- Estava – respondi.
-- Xi, hoje eu não posso ir com você. A
amiga da minha mãe está doente, a minha mãe não vai lá na casa dela, e a minha
mãe disse que...
Seguiu-se um emaranhado de explicações
que eu não consegui ouvir direito, quanto mais lembrar, porque a minha cabeça
ficou meio entorpecida e as pernas meio bambas, e tudo de que me lembro é que,
concluído o falatório, ela deu meia-volta e foi-se embora, toda amarelo-limão,
pelo caminho à Vila de Cima, correndo para alcançar as outras meninas.
SUSKIND, Patrick. A história do senhor
Sommer. São Paulo:
Ática, 1997. p. 29-35
(Título nosso).
Entendendo a crônica:
01 – Releia a descrição que
o narrador faz de Carolina no primeiro parágrafo do texto e responda: o que o
atraía na garota eram as características físicas ou psicológicas?
As características físicas.
02 – Entre os adjetivos
abaixo, circule aqueles que NÃO
podem ser usados para caracterizar o comportamento do narrador em relação a
Carolina.
Violento
– sonhador – apaixonado – egoísta – frio – retraído – tímido.
03 – Relacione cada um dos
trechos abaixo a uma característica do narrador:
A – “[...] procurei minha
chave de fenda na gaveta do criado-mudo e guardei na minha mochila escolar,
para presentear Carolina com o meu mais valioso pertence”.
B – “Durante a aula, estive
irrepreensível como nunca [...]”
C – “[...] esperava e
esperava e remexia na poça e não pensava em nada e me sentia indescritivelmente
feliz da vida.”
D – “[...] recapitulei as
duas histórias, recapitulei em detalhes os eventos do dia seguinte, recapitulei
várias vezes as etapas do caminho [...]”.
(D) Organizado.
(A) Carinhoso.
(B) Estudioso.
(C) Paciente.
04 – Para conquistar
Carolina, o narrador decide visitar com ela uma série de curiosidades e dar-lhe
de presente uma chave de fenda.
a)
O que essas curiosidades têm de especial?
Provavelmente são os pontos que costuma visitar por considera-los
“maravilhosos”.
b)
Por que ele escolheu como presente uma chave
de fenda?
Porque é seu “mais valioso pertence”.
c)
Você acha que Carolina iria gostar desse
passeio e desse presente? Explique.
Resposta pessoal do aluno.
05 – Complete o trecho
abaixo a fim de elaborar um resumo da narrativa:
Depois de combinar com Carolina que
iriam juntos para a Vila de Baixo, o narrador decide aproveitar a situação para
conquistar a garota. Para atingir seu
objetivo ele faz planos: escolhe o caminho, providencia
alimentos, pensa nas histórias que contará a ela e resolve dar a ela sua chave de fenda.
Além disso, durante a aula de
segunda-feira, ele teve um comportamento exemplar,
pois temia ser colocado de castigo. Como
as meninas tiveram que ficar uma hora a mais na escola, o garoto esperou por Carolina. Quando ele a encontrou, veio
a decepção: ela não iria com ele até a Vila de Baixo. Por isso,
pode-se afirmar que o desfecho dessa história é malsucedido,
já que o narrador-personagem não conseguiu realizar seu desejo.
06 – Na sua opinião, o que o
narrador quis dizer ao usar as palavras ou expressões destacadas nos trechos a
seguir?
a)
“[...] eu esperava e esperava
e remexia na poça e não pensava em nada [...]”.
Ele quis reforçar a ideia de que a espera foi longa.
b)
“Então, enfim, saíram as meninas. Primeiro
uma verdadeira enxurrada e,
só então, por último, ela”.
Ele quis mostrar que saíram muitas meninas de uma só vez.
c)
“O caminho para a Vila de Cima deveria empalidecer em sua memória
diante das maravilhas que ela presenciaria ao longo do meu, do nosso caminho
para a Vila de Baixo.”
Ele quis dizer que o novo caminho seria tão bonito que Carolina nem
mais se lembraria do caminho para a Vila de Cima.
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