Poema: Caso
pluvioso
Carlos Drummond de Andrade
A chuva me irritava.
Até que um dia descobri que Maria é que chovia.
A chuva era Maria.
E cada pingo de Maria ensopava o meu domingo.
E meus ossos molhando, me deixava
Como terra que a chuva lavra e lava.
Eu era todo barro, sem verdura…
Maria, chuvosíssima criatura!
Ela chovia em mim, em cada gesto,
Pensamento, desejo, sono, e o resto.
Era chuva fininha e chuva grossa,
Matinal e noturna, ativa…Nossa!
Não me chovas, Maria, mais que o justo
Chuvisco de um momento, apenas susto.
Não me inundes de teu líquido plasma,
Não sejas tão aquático fantasma!
Eu lhe dizia em vão – pois que Maria
Quanto mais eu rogava, mais chovia.
E chuveirando atroz em meu caminho,
O deixava banhado em triste vinho,
Que não aquece, pois água de chuva
Mosto é de cinza, não de boa uva.
Chuvadeira Maria, chuvadonha,
Chuvinhenta, chuvil, pluvimedonha!
Eu lhe gritava: Para! e ela chovendo,
Poças d’água gelada ia tecendo.
Choveu tanto Maria em minha casa
Que a correnteza forte criou asa
E um rio se formou, ou mar, não sei,
Sei apenas que nele me afundei.
E quanto mais as ondas me levavam,
As fontes de Maria mais chuvavam,
De sorte que com pouco, e sem recurso,
As coisas se lançaram no seu curso,
E eis o mundo molhado e sovertido
Sob aquele sinistro e atroz chuvisco.
Os seres mais estranhos se juntando
Na mesma aquosa pasta iam clamando
Contra essa chuva estúpida e mortal
Catarata (jamais houve outra igual).
Anti-petendam cânticos se ouviram.
Que nada! As cordas d’água mais deliram,
E Maria, torneira desatada,
Mais se dilata em sua chuvarada.
Os navios soçobram. Continentes
Já submergem com todos os viventes,
E Maria chovendo. Eis que a essa altura,
Delida e fluida a humana enfibratura,
E a terra não sofrendo tal chuvência,
Comoveu-se a Divina Providência,
E Deus, piedoso e enérgico, bradou:
Não chove mais, Maria! – e ela parou.
Carlos Drummond de Andrade. Viola de
bolso. São Paulo: Companhia das Letras.
Entendendo o poema:
01 – O verbo chover normalmente é utilizado
para designar um fenômeno da natureza; por isso, é classificado como impessoal
e é utilizado em orações sem sujeito. No entanto, no poema ele é empregado com
um papel diferente. Identifique em cada um dos versos a seguir o sujeito a que
o verbo chover se refere.
a)
“Até que um dia descobri que Maria é que
chovia.” Maria.
b)
“Ela chovia em mim, em cada gesto,” ela.
c)
“Não me chovas, Maria, mais que o justo” tu (desinencial).
d)
“Quanto mais eu rogava, mais chovia.” Maria.
02 – Interprete: Por que o
eu lírico transfere a Maria os atributos da chuva?
Porque ele sente
a presença de Maria na vida dele como uma chuva ininterrupta, permanente, que o
inunda e tira sua tranquilidade.
03 – Crie uma frase em que o
verbo chover seja impessoal.
Resposta pessoal
do aluno.
04 – Para realçar a
expressividade no texto, o autor emprega palavras como “chuvadeira”,
“chuvadonha”, “chuvinhenta”, “chuvil” e “pluvimedonha” na intenção de:
a) ressaltar termos em desuso na língua.
b) reforçar a recorrência de termos com
sentidos semelhantes.
c) suprir a necessidade de um sentido
ideal para termos existentes.
d) especificar novos conceitos por meio da
renovação vocabular.
e) incorporar novos termos ao léxico da
língua.
05 – Você já deve ter ouvido
frases como estas:
A
gente brigamos muito.
A
gente saímos na frente.
Agora responda:
a)
Qual é o sujeito dessas orações?
A gente.
b)
Qual é o núcleo desse sujeito?
Gente.
c)
Na norma-padrão da língua, construções como
essas são consideradas inadequadas. Explique por quê?
Porque o verbo não concorda com o sujeito em número e pessoa.
d)
Levante hipóteses: Por que popularmente se
usa o verbo no plural, mesmo o sujeito estando no singular?
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Porque “a gente” dá ideia de
mais de uma pessoa.
e)
Reescreva as frases de acordo com a
norma-padrão.
A
gente briga muito – Nós brigamos muito.
A
gente saiu na frente – Nós saímos na frente.
Poema belíssimo e questões excelentes.
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