CRÔNICA: Mal traçadas linhas – A Namorada
A primeira vez que vi Glorinha, estava
na casa da Ritinha. Usava fitas nos cabelos e seus dois olhos verdes saltaram
sobre os meus. Foi um encontro casual e eterno. Não consegui ficar em sua
presença mais do que um minuto. Foi rápido. O mundo desabou ali mesmo, na
frente de todo mundo. Corri para o bardo Tião. Ritinha foi atrás querendo saber
o que houve. Eu perdi a respiração e só soube dizer que não houve nada.
A partir daquele dia, seus grandes
olhos verdes me perseguiam e os via em todos os olhos, seu rosto sorria em
outros rostos e as fitas estavam em todos os cabelos. Glorinha, certamente, era
um anjo – (mau, às vezes) – porque se multiplicava em mim e derramava em todo
meu corpo – (às vezes bom) – quando penetrava sorrateiro em meu quarto e
preenchia meus sonhos.
Glória vivia sempre em mim. Era uma
outra pessoa que tinha adquirido, ou o travesseiro que faltava. E Glorinha
tornou-se uma obsessão. Ela corria em meu sangue. Acordava comigo e não se
separava mais. Tomava o café da manhã, almoçava, jantava e era a principal
artista de meus sonhos. Até a bola de futebol passou a se chamar Glorinha e foi
por isso que resolvi ser goleiro. Não admitia chutar Glorinha. Preferia
agarrá-la. Senti-la em meus braços.
Na escola, a professora era Glorinha,
as meninas eram Glorinhas, até a dona Maria da cantina era Glorinha. A imagem
de Glorinha me transbordava e fluía em todos os poros. Refletia nos óculos, nos
espelhos, nos vidros, nas garrafas de refrigerante. Glorinha me inundava com
sua presença, com seus olhos, pelos e cabelos. Glorinha me sugava, me surrava,
incomodava. O seu nome me enchia a boca: Glorinha, glória, glória minha,
Glorinha era a minha glória.
Glorinha domingava em mim e foi num
domingo que consegui revê-la. Missa das 10, eram 9h45min. Perambulava no adro
da igreja quando Glorinha apontou na esquina. Fiquei em pânico. Minhas pernas
tremeram. O coração disparou. Me escondi atrás de uma árvore.
Ela vinha acompanhada de outras meninas
e falava sem parar. Estava radiante e vestia vermelho. Ela passou perto da
árvore onde estava. Não me viu. O medo e a ansiedade foram tantos que virei
raiz, folha, tronco. Era outono e me despenquei lá de cima. Tinha virado uma
folha. Uma folha seca. Mas um vento bom não me deixou perdido, à mercê de
passos desavisados ou de alguma roda descuidada. A aragem dominical me levou
até o templo e me alojou atrás de Glorinha. Se a morte era a glória celeste,
Deus em sua infinita sabedoria, provavelmente, não conhecera a Glória
terrestre. E ela estava ali, no templo. Perto Dele, orando a Ele, falando a
mesma língua Dele.
E quando a missa terminou, ela saiu
como entrara, ruidosa. Mas percebi que ela olhou para um rapaz. E aquilo foi um
punhal, uma faca de muitos gumes. Fiquei arrasado e meu primeiro ímpeto foi
matar aquele sujeito.
E meu dia transcorreu violento. Não
almocei nem fui à matinê. Conheci o ciúme.
A
noite foi infernal. Arquitetei mil planos para abordá-la. Imaginei cenas,
encontros.
Construí diálogos. Ouvi a sua doce voz
penetrando em meus ouvidos e dizendo sim, sim, sim. Neste momento virei
palavra. E naveguei todo o quarto. E a palavra Glorinha tinha asas. Era um
pássaro de mil cores. E sobrevoei o quarto várias vezes e esse pássaro era
Glorinha que voava em mim.
O sono veio tarde. Delirei. Glorinha
transformou-se em Julieta. Depois em Myriam Lane, em Narda e desfilou em mim
com vários nomes. Às vezes tornava-se Rapunzel e ficava na torre inexpugnável,
pedindo socorro, lançando as tranças para o príncipe encantado. E este príncipe
nunca era eu, pena.
Nesta mesma noite, caminhamos de mãos
dadas. Estávamos em silêncio, mudos. O cenário era um pátio de longas paredes
que não acabava nunca. Éramos os únicos naquela paisagem. Aproximei-me de seu
rosto e ela recuou, negaceou, mas insisti. E quando lábios e olhos se tocaram,
tudo evaporou. Acordei.
E Glorinha continuou no ofício de me
percorrer, de me perseguir. De me domingar. E Glorinha me dominou durante muito
tempo, quando uma ideia luminosa glorificou todo meu sofrimento: escrever uma
carta, era a saída.
Rabisquei papéis. Rasguei. Não consegui
escrever além de seu nome. Mas o Divino Espírito Santo, a terceira pessoa (ou a
segunda?) da Santíssima Trindade, me encheu de luz: na segunda prateleira da
estante de meu irmão, descobri um livro, o maior de todos: Cartas de Amor,
roubei-o.
Na página 27 estava a minha declaração,
a carta que pedira a Deus. O autor era um gênio, descobriu as minhas palavras.
Era assim:
Estas mal traçadas são endereçadas
àquela que torna meus dias como este céu de abril
(Abri a janela e o céu estava horrível,
ia chover, e era maio)
Você é a Dulcinéia que tanto almejo
(Perguntei ao Bolinha quem era
Dulcinéia e ele me disse que achava que era a miss Brasil)
Sou um cavalheiro errante
(Troquei “errante” por “certeiro”
porque ela podia achar que era um cara cheio de erros)
Te vejo em todos os lugares. Chegou a
hora de unirmos nossas solidões.
Teu
Romeu
Assinei, molhei as pontas do envelope
com cuspe, surrupiei uns trocados na bolsa da mãe, comprei selo e coloquei a
carta no correio com o coração ansioso.
Um mês depois, chegou a carta de
Glorinha. Fui com sede ao pote. Abri sem cuidado. E fui lendo:
A resposta está na página 40, do mesmo
livro.
Tua
Julieta.
CLAVER, Ronald. A
última sessão de cinema. São Paulo: Melhoramentos, 1986. p.58-60.
(Prêmio Bienal Nestlé de Literatura Brasileira).
Entendendo o texto:
01 – Tente explicar o
significado dos termos destacados. Se precisar, consulte um dicionário.
a)
“Perambulava no adro da Igreja quando
Glorinha apontou na esquina.”
·
Adro: terreno em
frente ou em volta da Igreja.
·
Apontar: mostrar-se,
aparecer.
b)
“A aragem dominical me levou até o
templo e me alojou atrás de Glorinha.”
·
Aragem: vento brando,
brisa.
c)
“Às vezes tornava-se Rapunzel e ficava na
torre inexpugnável [...]”.
·
Inexpugnável: invencível,
inabalável.
d)
“Aproximei-me de seu rosto e ela recuou, negaceou,
mas insisti.”
·
Negacear: provocar e,
em seguida, esquivar-se.
02 – Releia o primeiro
parágrafo e responda: qual a razão de o garoto ficar em pânico?
Ele ficou em
pânico porque gostava de Glorinha em segredo e ela estava se aproximando dele.
03 – Numere os fatos abaixo
a fim de coloca-los na mesma sequência em que ocorrem na narrativa:
(5) Glorinha responde ao garoto.
(4) O menino decide escrever uma
carta para Glorinha.
(1) O narrador vê Glorinha chegando
para a missa.
(3) Glorinha é beijada pelo garoto,
em sonho.
(2) O narrador planeja conversar com
sua amada.
04 – Qual o grande desejo do
garoto?
Era que Glorinha também gostasse dele e
fosse sua namorada.
05 – Assinale a alternativa
que mostra um obstáculo que impedia a realização do desejo do garoto:
( ) Ele não sabia escrever cartas de amor.
(X) Ele era muito tímido.
( ) Glorinha não gostava dele e já estava
interessada em outro garoto.
( ) O garoto era muito ciumento e Glória não
gostava disso.
06 – Releia a carta que o
garoto mandou à Glorinha e depois procure no dicionário o significado da
palavra errante.
a)
O que significa errante?
Aquele que vagueia, que anda sem destino definido.
b)
O que a personagem da história pensava que
fosse errante?
Pensava que fosse “uma pessoa cheia de erros”.
07 – Explique o significado
das expressões destacadas abaixo:
a)
“E Glorinha continuou no ofício de me
percorrer, de me perseguir. De me domingar.”
O autor criou uma nova palavra para expressar as coisas boas que
Glorinha desperta na personagem.
b)
“Fui com sede ao pote”.
Fazer algo avidamente e sem prudência.
08 – Releia a resposta de Glorinha
e depois responda: Qual o significado de suas palavras?
Glorinha conhecia
o livro do qual o menino tinha copiado a carta e indicou-lhe a página em que
encontraria a resposta.
09 – Na sua opinião, a carta
que o garoto copiou é uma boa carta de amor? Explique sua resposta.
Resposta pessoal
do aluno.
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