quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

CRÔNICA: MAL TRAÇADAS LINHAS - A NAMORADA - RONALD CLAVER - COM GABARITO

CRÔNICA: Mal traçadas linhas – A Namorada
            

                                       Ronald Claver
        A primeira vez que vi Glorinha, estava na casa da Ritinha. Usava fitas nos cabelos e seus dois olhos verdes saltaram sobre os meus. Foi um encontro casual e eterno. Não consegui ficar em sua presença mais do que um minuto. Foi rápido. O mundo desabou ali mesmo, na frente de todo mundo. Corri para o bardo Tião. Ritinha foi atrás querendo saber o que houve. Eu perdi a respiração e só soube dizer que não houve nada.
        A partir daquele dia, seus grandes olhos verdes me perseguiam e os via em todos os olhos, seu rosto sorria em outros rostos e as fitas estavam em todos os cabelos. Glorinha, certamente, era um anjo – (mau, às vezes) – porque se multiplicava em mim e derramava em todo meu corpo – (às vezes bom) – quando penetrava sorrateiro em meu quarto e preenchia meus sonhos.
        Glória vivia sempre em mim. Era uma outra pessoa que tinha adquirido, ou o travesseiro que faltava. E Glorinha tornou-se uma obsessão. Ela corria em meu sangue. Acordava comigo e não se separava mais. Tomava o café da manhã, almoçava, jantava e era a principal artista de meus sonhos. Até a bola de futebol passou a se chamar Glorinha e foi por isso que resolvi ser goleiro. Não admitia chutar Glorinha. Preferia agarrá-la. Senti-la em meus braços.
        Na escola, a professora era Glorinha, as meninas eram Glorinhas, até a dona Maria da cantina era Glorinha. A imagem de Glorinha me transbordava e fluía em todos os poros. Refletia nos óculos, nos espelhos, nos vidros, nas garrafas de refrigerante. Glorinha me inundava com sua presença, com seus olhos, pelos e cabelos. Glorinha me sugava, me surrava, incomodava. O seu nome me enchia a boca: Glorinha, glória, glória minha, Glorinha era a minha glória.
        Glorinha domingava em mim e foi num domingo que consegui revê-la. Missa das 10, eram 9h45min. Perambulava no adro da igreja quando Glorinha apontou na esquina. Fiquei em pânico. Minhas pernas tremeram. O coração disparou. Me escondi atrás de uma árvore.
        Ela vinha acompanhada de outras meninas e falava sem parar. Estava radiante e vestia vermelho. Ela passou perto da árvore onde estava. Não me viu. O medo e a ansiedade foram tantos que virei raiz, folha, tronco. Era outono e me despenquei lá de cima. Tinha virado uma folha. Uma folha seca. Mas um vento bom não me deixou perdido, à mercê de passos desavisados ou de alguma roda descuidada. A aragem dominical me levou até o templo e me alojou atrás de Glorinha. Se a morte era a glória celeste, Deus em sua infinita sabedoria, provavelmente, não conhecera a Glória terrestre. E ela estava ali, no templo. Perto Dele, orando a Ele, falando a mesma língua Dele.
        E quando a missa terminou, ela saiu como entrara, ruidosa. Mas percebi que ela olhou para um rapaz. E aquilo foi um punhal, uma faca de muitos gumes. Fiquei arrasado e meu primeiro ímpeto foi matar aquele sujeito.
        E meu dia transcorreu violento. Não almocei nem fui à matinê. Conheci o ciúme.
        A noite foi infernal. Arquitetei mil planos para abordá-la. Imaginei cenas, encontros.
        Construí diálogos. Ouvi a sua doce voz penetrando em meus ouvidos e dizendo sim, sim, sim. Neste momento virei palavra. E naveguei todo o quarto. E a palavra Glorinha tinha asas. Era um pássaro de mil cores. E sobrevoei o quarto várias vezes e esse pássaro era Glorinha que voava em mim.
        O sono veio tarde. Delirei. Glorinha transformou-se em Julieta. Depois em Myriam Lane, em Narda e desfilou em mim com vários nomes. Às vezes tornava-se Rapunzel e ficava na torre inexpugnável, pedindo socorro, lançando as tranças para o príncipe encantado. E este príncipe nunca era eu, pena.
        Nesta mesma noite, caminhamos de mãos dadas. Estávamos em silêncio, mudos. O cenário era um pátio de longas paredes que não acabava nunca. Éramos os únicos naquela paisagem. Aproximei-me de seu rosto e ela recuou, negaceou, mas insisti. E quando lábios e olhos se tocaram, tudo evaporou. Acordei.
        E Glorinha continuou no ofício de me percorrer, de me perseguir. De me domingar. E Glorinha me dominou durante muito tempo, quando uma ideia luminosa glorificou todo meu sofrimento: escrever uma carta, era a saída.
        Rabisquei papéis. Rasguei. Não consegui escrever além de seu nome. Mas o Divino Espírito Santo, a terceira pessoa (ou a segunda?) da Santíssima Trindade, me encheu de luz: na segunda prateleira da estante de meu irmão, descobri um livro, o maior de todos: Cartas de Amor, roubei-o.
        Na página 27 estava a minha declaração, a carta que pedira a Deus. O autor era um gênio, descobriu as minhas palavras. Era assim:
        Estas mal traçadas são endereçadas àquela que torna meus dias como este céu de abril
        (Abri a janela e o céu estava horrível, ia chover, e era maio)
        Você é a Dulcinéia que tanto almejo
        (Perguntei ao Bolinha quem era Dulcinéia e ele me disse que achava que era a miss Brasil)
        Sou um cavalheiro errante
        (Troquei “errante” por “certeiro” porque ela podia achar que era um cara cheio de erros)
        Te vejo em todos os lugares. Chegou a hora de unirmos nossas solidões.
        Teu
        Romeu
        Assinei, molhei as pontas do envelope com cuspe, surrupiei uns trocados na bolsa da mãe, comprei selo e coloquei a carta no correio com o coração ansioso.
        Um mês depois, chegou a carta de Glorinha. Fui com sede ao pote. Abri sem cuidado. E fui lendo:
        A resposta está na página 40, do mesmo livro.
        Tua
        Julieta.
        
CLAVER, Ronald. A última sessão de cinema. São Paulo: Melhoramentos, 1986. p.58-60.
                                                      (Prêmio Bienal Nestlé de Literatura Brasileira).
Entendendo o texto:
01 – Tente explicar o significado dos termos destacados. Se precisar, consulte um dicionário.
a)   “Perambulava no adro da Igreja quando Glorinha apontou na esquina.”
·        Adro: terreno em frente ou em volta da Igreja.
·        Apontar: mostrar-se, aparecer.

b)   “A aragem dominical me levou até o templo e me alojou atrás de Glorinha.”
·        Aragem: vento brando, brisa.

c)   “Às vezes tornava-se Rapunzel e ficava na torre inexpugnável [...]”.
·        Inexpugnável: invencível, inabalável.

d)   “Aproximei-me de seu rosto e ela recuou, negaceou, mas insisti.”
·        Negacear: provocar e, em seguida, esquivar-se.

02 – Releia o primeiro parágrafo e responda: qual a razão de o garoto ficar em pânico?
      Ele ficou em pânico porque gostava de Glorinha em segredo e ela estava se aproximando dele.

03 – Numere os fatos abaixo a fim de coloca-los na mesma sequência em que ocorrem na narrativa:
(5) Glorinha responde ao garoto.
(4) O menino decide escrever uma carta para Glorinha.
(1) O narrador vê Glorinha chegando para a missa.
(3) Glorinha é beijada pelo garoto, em sonho.
(2) O narrador planeja conversar com sua amada.

04 – Qual o grande desejo do garoto?
      Era que Glorinha também gostasse dele e fosse sua namorada.

05 – Assinale a alternativa que mostra um obstáculo que impedia a realização do desejo do garoto:
(   ) Ele não sabia escrever cartas de amor.
(X) Ele era muito tímido.
(   ) Glorinha não gostava dele e já estava interessada em outro garoto.
(   ) O garoto era muito ciumento e Glória não gostava disso.

06 – Releia a carta que o garoto mandou à Glorinha e depois procure no dicionário o significado da palavra errante.
a)   O que significa errante?
Aquele que vagueia, que anda sem destino definido.

b)   O que a personagem da história pensava que fosse errante?
Pensava que fosse “uma pessoa cheia de erros”.

07 – Explique o significado das expressões destacadas abaixo:
a)   “E Glorinha continuou no ofício de me percorrer, de me perseguir. De me domingar.”
O autor criou uma nova palavra para expressar as coisas boas que Glorinha desperta na personagem.

b)   Fui com sede ao pote”.
Fazer algo avidamente e sem prudência.

08 – Releia a resposta de Glorinha e depois responda: Qual o significado de suas palavras?
      Glorinha conhecia o livro do qual o menino tinha copiado a carta e indicou-lhe a página em que encontraria a resposta.

09 – Na sua opinião, a carta que o garoto copiou é uma boa carta de amor? Explique sua resposta.
      Resposta pessoal do aluno.




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